Na saúde e no afeto

02/05/2023

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foto: Alexandre Leopoldino

por Bárbara Iara Hugo

O que nos vem à cabeça quando pensamos nos termos “saúde” e “população LGBTIAP+” juntos? Saúde sexual? Infectologias? ISTs? Hormonioterapias? Práticas cirúrgicas de redesignação dos corpos? Pensamos sobre a importância do uso correto de preservativos? Ou as novas possibilidades de autocuidado com a chegada das PEPs e PrEPs? Aliás, a população cisgênera e/ou heteroafetiva¹ conhece essas siglas? Sabe-se das diferenças entre a Profilaxia Pós-Exposição e a Profilaxia Pré-Exposição na prevenção ao HIV? Por outro lado, a cisgeneridade imagina os efeitos biológicos dos andrógenos em corpos transmasculinos ou estrogênios e antiandrógenos em corpos de mulheres trans e travestis, como eu? Termos difíceis né? Mas será que a população LGBTIAP+ se resume a isso quando o tema é saúde?

O Dia Internacional de Luta Contra a LGBTfobia no 17 de maio, rememora que nesta mesma data de 1990 a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou oficialmente a homossexualidade de sua lista internacional de transtornos mentais. Ainda assim, durante os 28 anos seguintes, a transexualidade permaneceu na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID). Só em 21 de maio de 2019 fomos oficialmente retiradas da lista, ao implicar que não mais necessitaríamos de tratamento psiquiátrico visando uma “cura” para a considerada “patologia”. A norma vigente a partir de então, determinou que cada país participante da 72ª Assembleia Mundial da Saúde se adaptasse até o dia 1º de janeiro de 2022. Ano passado!

Ainda hoje vivemos os resquícios da, talvez, maior pandemia do século XXI. A partir de março de 2020, nos enclausuramos por medo da exposição ao Coronavírus. Mas é que tentaram me convencer por anos a não me expor enquanto travesti. Para me/te proteger? Quase trinta desses anos, vivi em quarentena. Não é de hoje que minha mãe vive no medo da minha exposição, por exemplo. Pra/por ela, eu jamais sairia de casa pra rua. Da casa dela, inclusive. #fiqueemcasa, ela dizia. “Não vai pra rua assim desse jeito!” Sair de casa também começou a expor pessoas cisgêneras², como minha mãe, ao perigo iminente.

Atualmente bem resolvidas sobre minha identidade e vacinadas contra a Covid19, minha mãe e eu podemos olhar seguras para o ápice desta pandemia? Em janeiro de 2021, o “Mapeamento das pessoas trans no município de São Paulo” foi realizado pelo Centro de Estudo de Cultura Contemporânea (Cedec) da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania do Município de São Paulo. Neste relatório de pesquisa, quando pessoas trans foram perguntadas sobre suas principais necessidades, o direito ao emprego e renda apareceu com 87,3%, seguido de acesso à saúde (geral e específicas às questões de transição de gênero), educação, segurança e moradia. Além disso, 58,6% declararam pertencer ao chamado “grupo de risco para a Covid 19”. ³

Estamos aqui para expor as conquistas (não privilégios) de nossas existências e resistências! Se a expectativa de vida de uma pessoa trans nascida no Brasil é 35 anos (contra 75 anos de uma pessoa cis), cerca de 80% das mulheres trans e travestis saíram do ambiente familiar na infância ou adolescência, 90% dessas mulheres precisa da prostituição para a sobrevivência (em sua maioria negra), apenas 12% destas concluíram o ensino superior e que a porcentagem desta população em universidades federais é de 0,3%, podemos afirmar que vivas, somos exceção!

Eu, mulher preta de pele clara e travesti brasiliense, nascida e criada em uma amorosa família liderada por minha mãe sergipana e seu consorte, meu pai alagoano, estudei em escolas públicas desde o jardim de infância até entrar no curso de Educação Artística, na Universidade de Brasília, em 2005. Ao pegar o diploma da licenciatura, decidi vir para São Paulo em 2011.

Aqui, tentando a vida como artista nas performances, cenografias e figurinos de teatro, sou aprovada no processo seletivo como Animadora Cultural do Sesc SP em 2015, lotada no Sesc Santana, e posteriormente Sesc Ipiranga, Sesc Avenida Paulista e Sesc Pompeia. Em 2020, com a parceria entre o Sesc SP e o Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sou admitida com bolsa integral para realizar a pesquisa de Mestrado. Hoje, estou Gerenta Adjunta de Desenvolvimento de Produtos do Sesc SP.

Agora, depois de adulta, ouvi minha mãe contar que fui uma criança visivelmente alegre até entrar na pré-adolescência quando parei de sorrir. Identificamos esta fase na minha chegada à 5ª série do Ensino Fundamental correlacionada, entre outras situações, à puberdade. Dentre tantas transformações físicas e sociais, cada vez mais eu me distanciava corporalmente das outras meninas que eu conhecia. Nem o mesmo banheiro que o das minhas amigas eu estava autorizada a usar. De lá para cá, só hoje posso afirmar que volto a ser uma mulher feliz e, consequentemente, saudável.

Nossa saúde está para além das medicinas e farmacologias. Nossa saúde vem da cidadania feliz, dos nossos direitos jurídicos ampliados, do acesso ao trabalho digno e bem remunerado, de voltar para nossas casas seguras, de fazer travessias seguras pelas urbanidades que nos cercam, de conviver! Conviver com vocês diferentes de nós, nas famílias, nos colegas de trabalho, nas redes de amigos, nos relacionamentos afetivos, e sermos vistas como legitimamente iguais. Nossa saúde é especialmente a do afeto.

Ecoando a atriz santista travesti Renata Carvalho, em vídeo de sua conta no Instagram, “legitimamos, validamos e naturalizamos nossas identidades quando colocamos pessoas trans em narrativas positivas e abalamos o imaginário do senso comum do que é ser uma pessoa como nós”.⁴

Estamos vivas!


Bárbara Iara Hugo é travesti, mestra em Educação: Currículo pela PUC-SP e Gerenta Adjunta de Desenvolvimento de Produtos no Sesc São Paulo.


¹ A relação heteroafetiva se dá entre pessoas heterossexuais: aquelas que sentem atração sexual e/ou afetivas com pessoas do gênero oposto ao seu. Exemplos: um homem cisgênero ou transgênero se relaciona com uma mulher trans ou cis.
² Pessoa cisgênera  se identifica com o gênero que foi atribuído à sua genitália antes ou durante o nascimento. Como exemplo, caso o ultrassom revele uma vagina no bebê, será lido como mulher a partir de então.  Durante o parto, se a pessoa obstetra ver um pênis no neném, anunciará como um homem recém-nascido.
³ Os dados apresentados foram colhidos no “Mapemento das pessoas trans no município de São Paulo” do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) apresentado em 2021. Disponível em <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/LGBT/AnexoB_Relatorio_Final_Mapeamento_Pessoas_Trans_Fase1.pdf>.
⁴ CARVALHO, Renata. Isso é representatividade trans positiva. Vídeo disponível em <https://www.instagram.com/p/CRZ8ZPMnEze/>. Acesso em 17 de julho de 2021.

>>> O projeto Legitima Diferença acontece no mês de maio em diversas unidades do Sesc SP e promove encontros, bate-papos e apresentações investigam vivências e produções da população LGBTQIAP+, fomentando o respeito, a garantia de direitos e o acesso à saúde. Saiba mais: sescsp.org.br/legitimadiferenca

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