*Por Xico Sá

Na poeira, mais do que no universo esportivo dos profissionais, não é apenas futebol. Não mesmo. O futebol moderno é fichinha diante da natureza épica do terrão aqui no campo do Ajax, Jardim Nakamura, zona sul da capital paulistana.

Não é apenas futebol. É ação social direta, é samba, é batalha de rima, é encontro de amigos debaixo da árvore na ribanceira, é o sagrado direito ao lazer, apesar dos pesares e das imposições brabas da rotina. É um fio que se puxa a cada frase, a cada zoeira, a cada coro da torcida, um fio que se junta a outro fio para tecer a rede da memória coletiva.  

Meninos, eu vi, fui testemunha ocular da história. Não é apenas um jogo, é a 2ª Copa Sesc de Futebol de Várzea, promovida pela unidade Campo Limpo. Humildade, procedimento, espírito esportivo, respeito na quebrada. As palavras de ordem dos times, expostas em faixas no muro e no alambrado, também adentram as quatro linhas da peleja. O território está demarcado a cal e dignidade.

Chegou fim de semana, todos querem diversão, diz o manifesto dos Racionais aqui da área. O juiz chama os capitães, vai começar as semifinais. Na Unidiversidade do Samba, soa solene dona Ivone Lara.

Os times do Ajax e do Pantanal, salve salve, perfilados na elegância de um domingão de sol. Jefferson John da Silva Santos, organizador do evento, leva a palavra em nome do Sesc: viva a potência do esporte, o valor da educação, o lazer em segurança.

Até o vira-lata respeita o momento e deixa solenemente o terreno de jogo. A bola rola, começa a peleja. Ninguém pensa em retranca. O couro come. O jogo é free-style como no repente e na batalha de rimas. Aqui não tem VAR, viva a Várzea, no lance polêmico — foi pênalti ou não foi para o time da casa? — vale o olho vivo do juiz e nada mais. Impera o respeito, mesmo com democráticas discordâncias.

Trila o apito final: deu Pantanal 2×0. O Ajax, de tantas conquistas na ZS, honrou a camisa laranja, fez bonito. Ian, autor de um dos gols da equipe vitoriosa, exaltou a importância do futebol amador na vida de várias gerações de famílias da quebrada. O atacante Gabriel perdeu a partida, mas não a filosofia da parada: a poeira da várzea forja o caráter de um homem.

Não é apenas uma Copa, é o que se estreita na relação do Sesc com a comunidade. O árbitro Juarez Ferreira, com 28 anos de atuação nos campos da periferia de São Paulo, revela a sua sabedoria para o segundo embate domingueiro. “Ninguém está aqui por dinheiro, amanhã é segunda e todo mundo vai trabalhar, não é isso?”, alerta aos capitães de Real Atlético x Letícia. “Vamos jogar bola com respeito, parceiros”.

E assim seguiu a rodada. Sol, suor e poeira. No placar, Letícia 2×0. O juiz fez o gesto dramático de fim do espetáculo. De tão veemente, aquele apito parecia soar em todo o planeta. O grupo de samba, porém, continuou daquele jeito. Arlindo Cruz, na cadência bonita da várzea, deu a letra:

“Mas iremos achar o tom
Um acorde com um lindo som
E fazer com que fique bom
Outra vez, o nosso cantar
E a gente vai ser feliz
Olha nós outra vez no ar
O show tem que continuar”.

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Saiu o pastel no galpão da Unidiversidade. Queijo, carne, pizza… O espetinho de morango com chocolate é outro clássico. As vendedoras e a clientela contam histórias do Nordeste. Até os cangaceiros de Lampião entram na resenha domingueira. O DJ afina e esquenta a  aparelhagem com soul e charme.

Depois das batalhas futebolísticas dos manos, a vez das minas. Os times UniSant’Anna x Real Atlético fizeram uma partidaça, debaixo de um sol de mais de trinta graus na moleira. Muita classe, categoria e jogo bonito. Sem esquecer o esquema tático. Um show de candidatas a novas Martas e novíssimas Formigas. O UniSant´Anna levou a melhor na disputa.

Não é só futebol, na várzea a responsa é outra. A camisa pesa com o suor da dignidade periférica. Os organizadores da Copa Sesc sabem disso. Não é à toa que a final da competição foi marcada para 20 de novembro, o feriado nacional do Dia da Consciência Negra.

No mesmo campo de terra onde Cafu, o capitão do tetra, bateu um bolão no início da sua trajetória, o Pantanal sagrou-se campeão. A decisão foi 1×0 no bravíssimo Letícia. Os dois times mostraram suas raízes fincadas na história do futebol amador da ZS.

No feminino, quem levou a taça foi a equipe da UniSant´Anna — bateu Jaçanã por 1×0. Com maior visibilidade na mídia, com direito a transmissões no horário nobre da tv aberta, o futiba das mulheres vê o seu crescimento também nos terrões e quadras soçaites das escolas e subúrbios paulistanos.

Depois de levantar poeira no Capão Redondo e no Jardim Ângela, a próxima parada da Copa Sesc de Futebol de Várzea será no Jardim São Luís. Conhecido na mídia como “triângulo da morte” até a primeira década dos anos 2.000, essa área foi recordista em vários índices de violência urbana no país.

Ações sociais, artísticas ou esportivas, sempre foram essenciais para mudar o panorama dessa quebrada. Muitos dos jogadores que estiveram em campo nesses últimos jogos tiveram alguém da família ou da vizinhança atingido por essa barbárie. Os boleiros sabem e cantam a jogada: não é apenas futebol. Nunca foi. É memória coletiva, é fortalecimento dos laços no território. Gol de letra do Sesc Campo Limpo. Por um tempo em que a expressão “que várzea” seja sinônimo de respeito e vida digna.

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Xico Sá é escritor e jornalista cearense, um dos principais cronistas esportivos do Brasil, com carreira iniciada nos anos 1980. É autor de livros como A Pátria em sandálias da humildade e A Falta. Trabalhou em veículos como Placar e Jornal do Commercio, e participou de programas como Cartão Verde (TV Cultura) e Redação (Sportv). Na Folha de S. Paulo, manteve uma coluna de futebol com personagens de sátira, como o Corvo Edgar.

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Vem ver fotos de alguns momentos das competições:

E também rolou transmissão ao vivo das finais. Veja aqui: