Foto: Paulo Otero
* Por Fernanda Almeida
O uso de drogas como uma expressão da questão social
“Em casa de menino de rua, o último a dormir apaga a lua”.
Giovani Baffô
Você já deve ter escutado a frase: “a maconha é a porta de entrada para o uso de outras drogas mais pesadas!”. No imaginário da maioria das pessoas encontra-se estabelecida a crença num padrão universal para iniciação no uso de drogas. Para o senso comum existe uma porta de entrada e, ao passar por ela, o sujeito inicia seu percurso no conjunto de etapas preestabelecidas diante das quais têm apenas duas alternativas: seguir adiante rumo à autodestruição ou voltar para trás e manter-se “limpo”. Se a decisão for retroceder, o sujeito deverá trancar a porta, jogar fora a chave para nunca mais entrar nesta arapuca e, preferencialmente, esquecer tudo o que aconteceu no “mundo das drogas”. Esse pensamento trabalha com a ideia de que todo uso de drogas é uma relação de causa e efeito.
Ocorre que esse entendimento é tão absurdo quanto fantasmagórico, pois não tem qualquer sustentação tangível, ao mesmo tempo em que produz uma falaciosa narrativa ideológica que torna ainda mais complexo o emaranhado campo de disputas em torno das questões que envolvem o uso de substâncias psicoativas. Para não ser acusada inadvertidamente, afirmo de início que sim, existe um número significativo de pessoas que estabelecem um uso complicado e até mesmo nocivo com as substâncias psicoativas, mas daí até a generalização da gravidade do uso, assim como das simplificações em torno do possível vício ou dependência química, existe um longo caminho que mistura de um lado interesses difusos no campo moral e na arena do puritanismo religioso, e ao mesmo tempo, alicerça os paradigmas proibicionistas da falida guerra às drogas.
Parto da reflexão de que é necessário estabelecer algumas premissas para a discussão que aqui proponho. A primeira e mais importante é que o uso das substâncias psicoativas é uma prática milenar, própria do desenvolvimento da humanidade. As drogas sempre existiram e sempre vão existir, portanto, seus usos e suas formas precisam ser compreendidos em cada lugar e tempo histórico. A segunda premissa se vincula à primeira e diz da necessidade de localizar historicamente o uso, suas formas e a relação que as sociedades foram estabelecendo com as substâncias psicoativas, e a partir disso, como foram sendo construídos os parâmetros de proibição e finalidade. A terceira e última premissa é um desdobramento das primeiras. Penso ser fundamental compreender que o uso de substâncias psicoativas na sociedade capitalista contemporânea ganhou contornos ainda mais multifacetados, afetado pela complexidade da sociabilidade hiperconsumista, sobretudo pela consolidação daquilo que a racionalidade neoliberal trouxe para as relações humanas e, consequentemente, modificou a relação dos sujeitos com as substâncias e com seus modos de uso.
Foto: Paulo Otero
Tomando como referência as premissas apresentadas, volto para a imagem da “porta de entrada” com algumas indagações: faz algum sentido pensar que a “porta de entrada” deixará um dia de existir? Tem algum cabimento pensar que eliminando a “porta” o comportamento de “destrutividade” desses sujeitos terá encontrado seu fim? Tem alguma lógica supor que o uso de substâncias psicoativas terá sempre o mesmo percurso e o mesmo resultado para todos os sujeitos? Fato é que se a sociedade fosse chamada a pensar sobre o assunto, séria e criticamente, poderíamos ver que não há qualquer sustentação racional na suposição de que eliminando “as drogas” se colocará fim ao “problema”. Em verdade, a questão é: estamos preocupados com qual droga e com quais problemas? Quais são os sujeitos-usuários que tiram o sono e sossego de setores da sociedade?
Como podem notar, há complexidade na questão, no entanto, parece existir um esforço insano para simplificar, rotular e estigmatizar, pois é mais interessante que tudo seja tratado apenas no campo moral e ideológico. O contrário disso é reconhecer que o “fantasma das drogas” subtrai de sua assombração as determinações sociais que fazem com que as experiências com as substâncias psicoativas sejam socialmente determinadas. Dito de outra maneira, o problema do uso de drogas na sociedade contemporânea diz mais sobre as vicissitudes da própria sociedade do que sobre os efeitos das substâncias em si.
Com isso, compreendo que antes de ser um problema de segurança ou de saúde, como se faz crer no jogo encarniçado das disputas discursivas, o uso de substâncias psicoativas é uma prática social abrangente e como tal precisa ser compreendida. Seus supostos males são, antes de tudo, expressões do modo como a sociedade organiza suas dimensões política, econômica, social e cultural.
Em vista disso, consolida-se uma base moral e ideológica que impede parcelas da sociedade de perceberem que os interesses daqueles que defendem a proibição de determinadas substâncias psicoativas – extraídas fundamental e basicamente da cannabis, coca e papoula –, nada ou quase nada têm a ver com a preocupação legítima de proteger os sujeitos, tampouco com a suposta periculosidade atribuída isoladamente a cada uma destas substâncias. Os aludidos interesses fingem ignorar que a dependência química e a devastação que as drogas operam na vida dos sujeitos têm muito menos a ver com as substâncias em si e muito mais com as determinações da vida social e com suas trajetórias e histórias de vida. O modelo societário, a vida cotidiana, e a forma como nos relacionamos com as coisas e com as pessoas têm maior relação com as adicções. Afinal, a mesma sociedade que demoniza as “drogas” é aquela que busca de toda maneira medicalizar qualquer manifestação sintomática do psiquismo. Como diz o historiador Henrique Carneiro: “Drogas para trabalhar, para dormir, para fazer sexo, para vencer a tristeza, o cansaço, o tédio, o esquecimento, a desmotivação. Cada vez mais a modelação e modulação química da subjetividade se tornam determinantes não só na economia estrito senso das sociedades, mas nas economias psíquicas”.
O psicanalista Décio Gurfinkel afirma que a “questão das drogas” tem por princípio a multidisciplinaridade e que qualquer generalização será empobrecedora e reducionista. Tomando emprestada sua prescrição metodológica, justifico minhas lacunas e ratifico que meu objetivo é problematizar alguns aspectos sociais, pois percebo que da mesma maneira que proibicionismo se impõe como ideologia estruturante das políticas públicas no campo de álcool e drogas – construindo respostas que atendem ao controle social dos corpos – ele atravessa as subjetividades dos sujeitos trazendo-lhes sofrimentos ainda maiores, pois, muitas vezes, a culpabilização é maior e mais danosa do que os efeitos da substância em si. Assim, a singularização das causas de problemas com as drogas joga a pesada carga das contradições sociais sobre os ombros dos sujeitos, individualmente.
O neurocientista afro-americano Carl Hart já esteve no Brasil algumas vezes. Suas passagens pelo país foram registradas em fértil material, que está disponível na internet. Hart alia pesquisa científica em renomados laboratórios universitários com uma leitura engajada da vida e da luta social. Com a audaciosa proposta de desconstruir mitos sobre as drogas, em especial sobre o uso do crack, ele demonstra que o que afeta e marca a vida dos sujeitos empobrecidos e marginalizados nos grandes centros urbanos, tais como nos EUA, na Cidade do México, e igualmente no Brasil, são as estruturas hierárquicas e desiguais que têm como sustentáculo a descomunal concentração de renda alicerçada no racismo estrutural. Crítico do termo “cracolândia”, ele diz que esses territórios brasileiros são expressões de um tipo de apartheid e o que ocorre nesses espaços é resultado de um modo de fazer política.
Nesses territórios de exclusão, homens e mulheres maltrapilhos levam a alcunha de zumbis. É notório que há um interesse em mirar os holofotes para a imagem distorcida desses sujeitos, pois para a mídia sensacionalista e populista é muito mais interessante e lucrativa a venda dos thrillers policiais do que dar voz para essas pessoas. Ao mesmo tempo, o apagamento das subjetividades desses sujeitos é vantajoso para os governos, pois a simplificação das questões legitima as respostas massificadas, higienistas e carcerárias.
Foto: Paulo Otero
Atuo em um CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas) e meu trabalho consiste em organizar projetos terapêuticos singulares que auxiliem os sujeitos a reverem sua relação com as substâncias psicoativas que lhes trazem transtornos e agravos para a saúde. Ainda que majoritariamente a demanda inicial seja a interrupção imediata e total do uso da droga, nem todos conseguem sustentar tal objetivo. O que eu percebo é que muitas vezes a demanda pela abstinência não tem relação direta com o desejo genuíno dessa pessoa, o que ela manifesta é uma espécie de ambivalência entre seguir seu desejo e atender aos anseios dos outros. O que esta ambivalência oculta é que o uso de drogas traz em alguns casos alívio para as angústias que são imanentes à vida humana. Ora, como já afirmei, a vida cotidiana em nosso tempo histórico é marcada por individualismo e consumismo. Nesse mundo absolutamente competitivo não há espaço para o descontentamento ou para as frustrações. Suportar o mal-estar dos nossos dias exige um corpo subjetivo com capacidade de simbolizar, de dar formas ao inominável, transformando assim alienação em experiências de vida mais enriquecedoras.
Peço-lhes licença para contar brevemente a história do Sabiá, nome fictício que darei a um paciente do CAPS-AD. Sabiá é um rapaz negro, tem 26 anos, é soropositivo para o HIV. Sua família é muito pobre, a mãe é empregada doméstica e o pai vende doces no farol. Ele nasceu e cresceu no centro da capital paulista. Na infância morou em prédios de ocupação e cortiços. Sabiá descreve o pai como um homem silencioso, no entanto, bastante amoroso. Ele conta que o pai está sempre “doidão de cachaça” mas que não enche o saco de ninguém.
– …meu pai bebe para apagar a tristeza, sóbrio eu nem escuto a voz dele.
Já sobre a mãe, conta que era excessivamente agressiva e violenta na infância. Ele conta que nunca passou fome, mas diz que teria renunciado a qualquer prato de comida para escapar das surras de fio que levou da mãe. No fundo, se sente culpado, pois percebe ser um “estorvo” na vida desta mulher. Diz ele em tom de murmúrio:
– …ela seria muito mais feliz se eu não existisse, o dinheiro dela seria suficiente para ela se sustentar, mas foi ter filho…
Sabiá tem um sorriso lindo, um semblante tranquilo, seu pensamento é organizado, ele tem um discurso que traz poesia e simbolismo ao descrever a própria vida. Ele conta que tem um filho de 6 anos, seu amor maior e única fonte de motivação na vida. Quando fala do filho, deixa transbordar o orgulho que sente, ele diz que o filho é a única coisa boa que fez na vida, sua melhor obra. Quando está com o menino, lembra que ainda é bom de futebol.
Sabiá reconstitui sua trajetória e narra que começou a usar drogas quando estava com 13 anos, na porta da escola, foi no mesmo período que começou a trabalhar para ajudar a família. Com sorrisão no rosto, ele conta que gostava mais de ficar com os amigos jogando futebol e fumando maconha do que trabalhando. O dinheiro que ganhava no trabalho entregava todo para a mãe. Se os primeiros treze anos de sua vida correspondem à trajetória de um menino negro e pobre criado no centro da cidade, os treze anos seguintes são marcados por ciclos de violência, solidão e aprisionamento. Fundação Casa, internações em comunidades terapêuticas e alternadas entradas e saídas no sistema penitenciário. Dos treze anos subsequentes às primeiras experiências com maconha, Sabiá esteve recluso nessas instituições por uma década. Nos três anos que esteve em liberdade, ele morou na rua e usou muita droga, contraiu o HIV e teve o filho amado. Diz ter perdoado a mãe, espera ser um pai melhor que o seu para seu filho, mas reconhece ter muita dificuldade de estar em “liberdade”. Diz que prefere estar preso, assim não faz ninguém sofrer. Pouco estudou, não tem profissão, nunca teve emprego formal.
Com a história do Sábia em mente, eu peço que retornemos à imagem da “porta de entrada”. Teria sido aquele baseado fumado na porta da escola aos 13 anos a motivação de tudo que se passou na vida do Sabiá? Qual é a história de sua mãe, qual é a trajetória de seu pai, são vítimas ou são algozes? A história do Sábia e as de outros meninos-passarinhos são marcadas por inúmeras “portas de oportunidades” fechadas e “gaiolas” de aprisionamento prontas para recebê-los.
Aqueles que com o copo de whisky nas mãos e comprimidos de ansiolíticos na mente falam de “porta de entrada para o mundo das drogas”, mal sabem que para meninos e meninas com histórias de vida semelhantes à do Sabiá não há portas, o que existe, em verdade, são bifurcações estreitas, são emboscadas, são tocaias e, por conseguinte, as gaiolas. A história de Sabiá evidencia que não existem respostas simples para questões complexas. Sabiá descortina nossa ignorância, indiferença e leniência diante da real, concreta e estruturante desigualdade étnico-racial.
Sábia não apareceu mais em nosso território, perdemos o contato com ele e com sua família, ele me disse que estava pensando em voltar para uma comunidade terapêutica, tinha medo de ter uma recaída. Em um dos últimos atendimentos eu lhe digo:
– Rapaz, você já se deu conta que passou quase metade da sua vida preso? Quer mesmo voltar?
O sorrisão que é seu cartão de visitas imediatamente se desfaz. Ele me encara em silêncio e diz:
– Devo ser como esses pássaros que depois que são presos na gaiola não sabem mais voar. A liberdade é minha natureza, mas eu não sei aproveitar dela.
Oxalá que a sociedade entenda! É necessário criar portas de oportunidade e acesso a direitos e desmontar todas as gaiolas. A liberdade é terapêutica!
* Fernanda Almeida é assistente social, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da FAPSS-SP. Atua na Rede Pública de Saúde (SUS) em Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Psicanalista em formação, aluna do Curso Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
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