NÃO HAVIA BANHEIRO FEMININO | Conto de Luiza Romão ilustrado por Fereshteh Najafi

27/10/2023

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POR LUIZA ROMÃO  

ILUSTRAÇÕES FERESHTEH NAJAFI 

Leia a edição de NOVEMBRO/23 da Revista E na íntegra

Entre a cumplicidade e a estranheza, os três homens à minha frente indicam passe, passe. Com a bexiga estourando, agradeço numa mistura de espanhol e árabe. Quem mandou esperar até o intervalo, Luiza? Desacostumada a vestidos longos, enrolo a barra com um nó nas pernas, tiro o lenço, equilibro o casaco no ombro direito. Melhor essa bacia que o mictório de alguns estádios, mentalizo enquanto firmo os coturnos na louça. Cada um acerta o que pode, diria um artilheiro à beira do campo. Péssima de chutes, eu derrubo o casaco no meio da latrina. Merda: azar no banheiro, sorte no jogo, volto levemente otimista pro segundo tempo.  

Antes de recomeçar a partida, o garçom se esgueira entre as mesas repondo os copos vazios. Cerveja? Não. Chá de hortelã. Isso mesmo: chá de hortelã. A essa altura da viagem, estou quase acostumada a substituir a cevada pela infusão de folhas verdes. Dois cubinhos de açúcar e pimba! Até esqueço do enjoo.  

De Marrakech até ali foram quatro horas num táxi compartilhado. Da estrada, só lembro as curvas infindáveis flertando com desfiladeiros: paisagem rosa-alaranjada, algumas ovelhas e no meio de um montanha pedregosa, duas traves de futebol. Nem sinal de povoado e aquelas traves recortando a paisagem desértica. Les gusta el fútbol como a ustedes, comenta o poeta chileno espremido ao meu lado. Devo ter respondido algo sobre os campos de várzea no Brasil, sobre essa paixão que transforma qualquer terreno em motivo de jogo, que te faz perder o sono em dias decisivos, que te hermana com desconhecidos do outro lado do mundo. Ou simplesmente respondi sí sí, os olhos inquietos no relógio. Ouarzazate não chega nunca?  

Alguns quilômetros depois, saltamos do carro. Mochila nas costas, corre pro primeiro bar, quer dizer, primeira casa de chá, tá lotada, vira a esquina, outro café, hay espacio al fondo, cadeiras lado a lado pique sala de cinema. Só tem homem, deixa eu cobrir a cabeça, reviro a mochila. Cadê aquele lenço? Alguém abre espaço, que vontade de ir no banheiro, os dois televisores presos no alto, pareces un poco mareada cariño, uma nuvem densa de tabaco, seguro até o intervalo. Vamos ao que interessa: quanto tá o jogo?  

Zero a zero.  

É terça-feira, dia 6 de dezembro de 2022, por volta das 16h18, entrada do deserto do Saara: pela primeira vez, o Marrocos tem chances de passar para as quartas de final da Copa do Mundo. Mais que isso: numa revanche histórica contra a Espanha. Quem diria: estou aqui com um enjoo lascado e acompanhada por um hincha da Universidad Católica. Nem o mais auspicioso dos comentaristas teria imaginado uma campanha dessas. Nem minhas mirabolações insones conseguiriam juntar tantos elementos improváveis numa mesma cena. O futebol é uma parada que, olha! Atordoada, viro mais uma xícara. O juiz dá início ao segundo tempo e…  

Nada acontece.  

Na moral: antes uma goleada com pênaltis e expulsões que esse marasmo sísifo. O inacreditável a um corta-luz de distância e os caras preferem a retranca. É bololô no meio do campo, ninguém arrisca, a bola chora. Que custa finalizar, minha gente? O tempo regular termina numa frustração nervosa. Alguns arrastam a cadeira, outros se assomam no balcão, quase todos pegam o isqueiro. É a vez do chileno ir ao banheiro. Eu não aguento e peço um cigarro pro senhor ao lado. Son de España? A desconfiança se dissipa quando digo: No, soy brasileira. Junto com o tabaco, me lança um sorriso, o mesmo que tantas vezes encontrei nas arquibancadas alviverdes: esse pacto anônimo que se dá a conhecer quando duas camisas amigas se cruzam na rua, essa aposta infundada e categórica de que seremos.  

Já diria Arrigo Sacchi, o futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes. Conforme a tarde cai, a existência humana parece depender dos vinte e dois jogadores que voltam ao campo para prorrogação. É agora ou nada. O jogo esquenta. Aos 12 minutos, o camisa 8 avança pela defesa espanhola, allez allez, se desvencilha de dois marcadores, boa parte dos torcedores se levanta, Cheddira recebe sozinho na marca dos pênaltis, palmas compassadas se espalham pelo salão, Cheddira limpa, é só bater no canto palmas palmas palmas e…  

Ele finaliza no corpo do goleiro.  

Geral suspira. Engulo o grito. Sento de volta, meio constrangida, meio possessa. En português, hay una expresión qué diz Quem não faz toma. Comento com o chileno a impiedade da bola e, sem querer, sou tomada pela lembrança de Palmeiras e River Plate: jogo dominado, desperdiçamos o quarto gol, a conta veio com juros no duelo de volta. O estômago revira só de lembrar. Vai dar ruim. Não bastasse isso, Cheddira desperdiça uma segunda chance, já era, já era, não pode perder gol assim. A descrença rumina entre os presentes. Menos de um minuto para acabar a partida. Estava tão perto. Quarenta e dois segundos pra ser mais precisa. Dói mais quando é por quase. Um cruzamento longo da esquerda pra direita pega a defesa marroquina desprevenida, sai sai sai, Sarabia recebe desmarcado e de bate-pronto manda em direção ao gol.  

A bola passa raspando pelo travessão esquerdo.  
Pronto.  
Zica reversa.  
Vai dar bom.  
Pode vir pênalti, pode vir o que for.  
Quem não faz toma.  
A cabeça de quem torce é uma parada que, olha!  

Dito e feito: o mesmo Saraiba perde o primeiro penal. Nesse momento, é chá, fumaça e tontura. O homem da noite se coloca, vamo Bounou, fecha a porteira e o Marrocos abre 2×0 nas cobranças decisivas. A partir daqui, só flashes: Bounou dançando no meio das traves, um salto preciso, as luvas de Bounou, a bola resvala. Eu poderia morar no sorriso desse goleiro. Última cobrança, se fizer essa. O batedor se prepara, palmas palmas, cavadinha carismática, mete a bola no centro. A casa de chá explode, gente que corre pra fora, é grito é canto, bandeira bordô e oliva, êêêê ôôôô. Se fosse na Caraíbas nesse momento eu já estaria pulando agarrada a uma multidão desconhecida, mas não estou no Brasil e aqui não há banheiro feminino. Um aperto de mãos hesitante.  

Não sabemos comemorar essa parada.  


 

Luiza Romão é poeta, atriz e slammer. Autora dos livros Sangria (selo doburro, 2017); Também guardamos pedras aqui (Nós, 2021) – vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Poesia e Melhor Livro do Ano de 2022; e Nadine (Quelônio, 2022). É bacharela em Artes Cênicas e mestra em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP).  

Fereshteh Najafi é ilustradora iraniana, nascida em Teerã e residente no Brasil. Autora de livros publicados em vários países, já apresentou suas ilustrações nos cinco continentes, em exposições como: Noma Concours for Picture Book Illustrations, no Japão, Nami Concours, na Coreia do Sul, Bienal de Ilustrações de Bratislava, na Eslováquia, e na Feira do Livro Infantil de Bolonha, na Itália. 

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