Como os músicos brasileiros estão se adaptando à rotina de abrir a porta de casa para se apresentar ao vivo
Débora Lopes é jornalista e apresentadora. Seus últimos trabalhos foram os documentários “Cigarro do Crime” e “PCC: Primeiro Cartel da Capital”. Cresceu dentro do movimento punk/hard core feminista de São Paulo e rodou boa parte do Brasil fazendo shows na adolescência e reportagens na vida adulta. Foi ganhadora do segundo lugar no V Premio Latinoamericano de Periodismo Sobre Drogas (2016), que recebeu na República Dominicana.
Dentro de seu apartamento no centro de Belo Horizonte, o cara que compôs as gigantes “Um Girassol da Cor do seu Cabelo” e “Trem Azul” estava puto. A pandemia estourou no Brasil e Lô Borges não poderia mais apresentar ao vivo seu disco recém-lançado, Dínamo. Estava tudo pronto. Os ensaios foram feitos, a data estava marcada na agenda. “Com certeza eu vou”, comentou uma fã no post do Instagram que anunciava o show de lançamento. Mas ela não foi, pois o evento nunca aconteceu. Era março de 2020 e no próximo um mês e meio o parceiro de Milton Nascimento no consagrado Clube da Esquina não iria encostar em nenhum de seus instrumentos. Nenhum. Naquele lar, o piano e o violão também entraram em quarentena. Sigmund Freud muito teorizou sobre isso: o estado de negação, um sistema de defesa do ego. Acontece com nós, reles mortais enfurnados em nossos pijamas durante a quarentena, e acontece também com um artista no naipe de Lô Borges.
“Foi uma defesa minha”, ele contou, por telefone, durante a entrevista. “Eu fiquei muito desapontado por estar ensaiando pra fazer show, pra lançar o meu disco e não poder fazer nada disso.” Mas essa foi a primeira fase da quarentena na vida do artista, que diz estar seguindo à risca as recomendações de distanciamento social — seu único filho, que mora a quatro quarteirões, recebe poucas visitas do pai e vice-versa.
“Me sinto um aprendiz. É uma nova realidade lidar com o público sem ver o público. Fica aquele silêncio, você e um técnico de máscara te olhando. É muito bizarro”
A fase freudiana de negação foi embora quando Lô sentiu, repentinamente, vontade de compor e acabou cedendo aos instrumentos. Depois, topou alguns convites que recebeu para fazer lives dentro da própria casa. Mas abrir as portas do apartamento em que vive sozinho em BH para os fãs online teve e continua tendo suas estranhezas. “Me sinto um aprendiz. É uma nova realidade lidar com o público sem ver o público. Fica aquele silêncio, você e um técnico de máscara te olhando. É muito bizarro”, disse, entre uma risada e outra.
Difícil existir um ser humano no mundo que não teve sua rotina sacudida pela pandemia. Esse baculejo todo mundo levou. Do pijamão lifestyle até a improdutividade. Do acúmulo de tarefas até a dificuldade de criar. Assim como Lô, dentro do rol dos grandes compositores contemporâneos está Chico César, nascido em Catolé do Rocha, interior da Paraíba. Por e-mail, lhe enviei uma entrevista, perguntando se até uma mente brilhante como a dele tem sofrido com a problemática recorrente do momento quarentenesco. Ele — que é jornalista formado pela Universidade Federal da Paraíba, aliás — agradeceu o elogio e respondeu: “Minha mente é muito mais inquieta que brilhante”. Prova disso são as cerca de 50 músicas que compôs nos primeiros três meses de isolamento — não é à toa que, ao longo da carreira, além dos nove discos autorais lançados, o artista teve suas composições interpretadas por vozes consagradas como as de Gal Costa e Maria Bethânia.
Chico é uma máquina de criar. Mistura poesia e política em suas músicas, sempre atrevidas, transgressoras. “Respeitem meus cabelos, brancos / Chegou a hora de falar / Vamos ser francos / Pois quando um preto fala / O branco cala ou deixa a sala / Com veludo nos tamancos”, cantou em “Respeitem Meus Cabelos, Brancos”, música que nomeia seu álbum de 2002.
Apesar de ter produzido bastante e feito muitas lives nesse período, ele sente saudade do que os palcos lhe permitiam, como enxergar o público e ver “a transformação do estado anímico trazido pelas canções naquele ambiente de encontro”, pontuou. “E sinto falta do que isso, somado à presença dos músicos e da luz, provoca em mim.”
“De algum modo eu ‘saco’ a reação das pessoas. É doido, mas eu busco um estado de presença que me coloque em conexão com elas.”
Muito se fala sobre a frieza dos tempos digitais e do impacto que isso tem nas nossas relações. Com os artistas não parece ser diferente. Talvez, a sensibilidade aguçada deles faça com que essa distância seja minimamente dizimada durante suas apresentações. “De algum modo eu ‘saco’ a reação das pessoas. É doido, mas eu busco um estado de presença que me coloque em conexão com elas”, explicou Chico. Certamente, o calor humano propicia a quem está em cima do palco um estado de espírito diferente de quem empunha o violão diante de uma câmera e um técnico de som de máscara, como pontuou Lô Borges.
Pelo mundo todo, as lives têm tomado diferentes proporções: de Andrea Bocelli cantando ao vivo de dentro da Catedral de Milão, que até o momento soma mais de 40 milhões de visualizações no YouTube, a artistas independentes fazendo uma jam session para seus seguidores no Instagram. No Brasil, marcas de cervejas surfaram a onda e patrocinaram lives de artistas grandes como Gilberto Gil, com direito a aparato de luz, banda e palco, até performances mais intimistas, como a do cantor Silva tocando violão dentro de casa.
No mainstream, os sertanejos comandam o pódio das lives mais assistidas (e todas patrocinadas ou com anúncios), caso da cantora Marília Mendonça, medalha de ouro, que somou 54 milhões de visualizações no YouTube.
No quesito “tática de guerrilha”, uma artista brasileira tem sido preponderante: Teresa Cristina. Desde o início da quarentena, a cantora carioca publicou mais de 80 lives musicais até o momento. Com o próprio celular, ela tem convidado nomes como Caetano Veloso, Alceu Valença, Mônica Salmaso, Gilberto Gil, Xande de Pilares e Bebel Gilberto para cantar e papear em transmissões ao vivo pelo Instagram. Há quem empunhe violão ou cavaquinho, mas, muitas vezes, a coisa acontece na força do gogó mesmo. A proatividade, inclusive, já rendeu a Teresa Cristina a alcunha de “Rainha das lives”.
“Ao vivo a interação sempre é maior, me sinto parte daquilo. Acho a live um formato meio frio, até sem graça na maioria das vezes.”
Aficionado por música, o gerente de redes sociais Eduardo Monteiro aproveitou os últimos dias de pura felicidade em forma de artistas em cima de um palco: viu quatro shows no fim de semana que precedeu a quarentena, entre eles o do nigeriano Femi Kuti. “Eu ia, pelo menos, umas três, quatro vezes por mês em show”, contou. Apesar de todo esse fervor por música, ele se nega a assistir apresentações ao vivo pela internet. Perguntei o motivo. “Ao vivo a interação sempre é maior, me sinto parte daquilo. Acho a live um formato meio frio, até sem graça na maioria das vezes”, discorreu.
Uma que parou para ver foi a do Gil, citada acima. Mas foi exceção. “Nas poucas lives que vi, o formato era mais intimista, não é muito meu rolê. Rola pouco espaço pra improviso, o negócio é meio mecânico, sabe? Prefiro pegar um show antigo no YouTube e assistir.”
Grandes marcas têm sustentado boa parte do mercado musical nesses tempos, mas as estratégias — e, muitas vezes, o mau gosto — desagradam. “Parece que eu estou vendo um programa de auditório, de tanto anúncio”, reclamou a publicitária mineira Júlia Boynard. E olha que ela assistiu todo tipo de live: Zeca Pagodinho, DJ Marky, Black Alien e Seu Jorge junto de Alexandre Pires. “Mas é muito diferente de show. O artista não parece tão animado.”
O baque da quarentena na esfera musical atingiu também a “graxa”, ou melhor, o setor dos trabalhadores técnicos, que sentem falta da energia única dos palcos, da demanda de trabalho e de dinheiro para pagar as contas. “Show ao vivo é sempre mais emocionante, com som, luz e público”, diz Rodrigo Paciência, técnico de áudio que trabalhou na live do Dead Fish, banda de hardcore capixaba que, em março, apresentou pela internet parte da turnê do álbum Ponto Cego (2019). “Como a equipe é reduzida para lives, acaba que muitas pessoas ficam sem trabalho”, falou o profissional, que tem passagens pela MTV e por grandes estúdios da cidade de São Paulo, como Bebop e Mega.
Durante a apresentação, o Dead Fish disponibilizou link e QR Code de um fundo de apoio às equipes e profissionais da “música rebelde brasileira”, como traz a própria descrição. A meta era arrecadar R$ 10 mil, mas as doações já ultrapassaram os R$ 18 mil. “A intenção de abrir esse fundo é dar suporte às pessoas que trabalham por trás, no backstage, viabilizando que a música antifascista, punk e alternativa continue funcionando num país já sabidamente precário em seu suporte à classe artística”, informa o texto.
“Com as lives, ganho por volta de 40% do que eu recebia anteriormente. Alguns parceiros estão dependendo de cesta básica. Está bem difícil”
Chico César comentou uma das primeiras preocupações que teve ainda em março: “Senti medo, pois boa parte do que ganho vem dos cachês dos shows e das bilheterias. Temi não apenas por mim, mas pelas pessoas envolvidas: músicos, técnicos, pessoal de produção. Eles também vivem disso”.
Guilherme Ramos, conhecido como Mark, é um profissional de áudio com um currículo impecável: iniciou a carreira no Theatro Municipal da cidade de São Paulo, trabalhou em muitas óperas e ganhou prêmios, como o Broadway Awards Brazil 2018 e o Prêmio É Sobre Musicais 2020. Prestou serviços para Bibi Ferreira, Elza Soares e Douglas Germano. Mas nada disso o isentou da crise atual. “Com as lives, ganho por volta de 40% do que eu recebia anteriormente. Alguns parceiros estão dependendo de cesta básica. Está bem difícil”, lamentou.
Apesar de trabalhar em lives remotas e presenciais, ele afirmou que o cenário é desanimador para a categoria enquanto as casas de show e os teatros estiverem fechados.
“Estamos com muitas dificuldades. A grande maioria está parada. E não temos perspectiva de retorno. No meu caso, a minha principal fonte de renda, que são as cantoras Elza Soares e Fortuna, fazem parte do grupo de risco. Em casa, só minha esposa está trabalhando.”
Se você tem acompanhado a Zumbido nos últimos tempos, deve ter lido que, para as mulheres, o universo da música é sempre mais complexo. Uma imagem impactante nessa quarentena foi a cantora e pianista carioca Maíra Freitas se apresentando na live #EmCasaComSesc com a filha recém-nascida, Zinga, no peito. “Não estou aqui pra romantizar”, disse a artista, quando perguntei o porquê de tocar junto com a bebê. “Na verdade, é a forma que encontrei de fazer o que eu faço com ela. Mesmo porque artista não tem licença maternidade, então, é a forma que eu tenho de trabalhar.”
O DNA familiar de Maíra traz a música na genética: ela é filha de Martinho da Vila e irmã de Martin’ália. Pianista clássica de formação, cantora, compositora e arranjadora, lançou dois discos. Com a quarentena, sua filha mais velha, Zambi, de dois anos, ficou sem ir à creche. Seu parceiro só teve 20 dias de licença paternidade, por isso, ficou para ela a incumbência de cuidar das meninas nesse período.
Além de ter tido shows e projetos cancelados ou adiados, a maternidade acaba ocupando boa parte do seu dia. “Isso torna a minha rotina artística, de produzir conteúdo, de estudos, músicas pra lançar, enfim, mais difícil”, falou.
Para ela, live é live e show é show. Cada um tem seu charme. “A live é uma forma mais intimista. É muito interessante você planejar uma apresentação íntima, como se as pessoas estivessem te vendo tocar em casa.” E elas estão.
Agora, nesse momento sem precedentes para as últimas décadas, as lives são o futuro. É muito difícil saber quando um artista poderá pisar num palco novamente — apesar de já estarem rolando shows drive-in em estádios, onde o público só pode entrar de carro. “E vamos fazendo live até a gente poder ir pro teatro”, acrescentou Lô Borges, que está aproveitando a quarentena para produzir um novo disco, já quase pronto.
Aproveito e pergunto se Chico César faz planos para o futuro e ele se mostra pé no chão ou, talvez, com poucas perspectivas: “Prefiro não planejar nada. E acho louco quem planeja, principalmente vivendo no Brasil”. Entretanto, Chico enfatiza que respeita quem faz planos. “Mas penso que o vírus, a pandemia, o isolamento, a política e a falta de ministro da Saúde estão aí pra mostrar que impera o acaso. E muita vezes de modo perverso. Ou pelo menos ao revés de nossa expectativa. Melhor viver cada dia e alegrar-se com ele.”
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