Naquela manhã

28/11/2024

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Por Ignácio de Loyola Brandão 

Ilustrações Juliana Russo 

Leia a edição de DEZEMBRO/24 da Revista E na íntegra

Naquela manhã de março de 1957, meu pai levou-me à estação ferroviária de Araraquara, onde nasci, para o momento decisivo de minha vida. Partir para São Paulo. Minha decisão foi dolorida para minha mãe. “Filho, fique! Arranje um bom emprego, case, tenha uma família, você precisa de segurança. Vá para a estrada de ferro, como se dizia.” Era a ferrovia. Havia duas que passavam pela cidade. A Paulista e a Araraquarense, a qual meu pai pertencia, ali ele fez carreira, passou a vida. Mamãe acrescentava, repetidas vezes: “Busque segurança, Ignácio. Preste concurso no Banco do Brasil ou na Caixa Econômica.”  

Eu, do alto de meus 21 anos, já tendo assistido à Juventude transviada (1955), aderido ao rock de Elvis Presley e tendo James Dean como ídolo, respondi: “Não, mãe! Vou para São Paulo. Quero ser jornalista ou mexer com cinema, teatro, talvez escrever. Aqui não tem nada disso”. O “talvez” era mentira, escrever era tudo o que eu queria. Tive uma infância repleta de livros. Aos dez anos li um, achei espantoso, me comoveu. Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll. Um soco no estômago. Libertador. Ainda hoje releio fascinado. Foi dele a primeira grande lição de escrita que tive. A de que a realidade pode ser modificada, inventada, ser diferente, sem deixar de ser realidade. Ao crescer descobri que o mundo real é mais espantoso, às vezes absurdo, disparatado, ridículo.  

Outro livro que li aos dez anos, e hoje mantenho na minha estante, é Robinson Crusoe, de Daniel Defoe. Um clássico publicado na Inglaterra, em 1719, com muito sucesso, e várias vezes adaptado para o cinema. Ainda releio, principalmente edições comentadas, para ver o que perdi e reganhar. Robinson sofreu um naufrágio e acabou isolado em uma ilha, onde ficou por 28 anos. Sozinho, como ele enfrentou? Em lugar de se deixar dominar pelo desespero, porque estava no meio do oceano imenso, sem a mínima possibilidade de comunicação, tratou de construir uma vida, erguendo uma casa, aprendendo a pescar, caçar e plantar para comer. Desde então, nunca mais tive medo da solidão, fico a imaginar como resolvê-la. O que eu queria e quero é viver. Hoje, vocês podem perguntar: e se Robinson tivesse um celular? Claro, resolveria. Porém o primeiro celular surgiu no mundo em 1973, ou seja, 254 anos depois do livro ter sido escrito.  

As leituras foram herança de meu pai que, no início dos anos 1940, tinha uma biblioteca de mil volumes, comprados um a um, durante anos, fazendo economia tostão a tostão, como se dizia. Seria hoje centavo a centavo. Mas voltando à minha mãe, ela tinha razão. Minha avó Cecilia morreu quando mamãe tinha 13 anos e passou a cuidar de seis ou sete irmãos. Ela não terminou os estudos fundamentais. Ela pensou em segurança a vida inteira e sabia que meus caminhos eram “aventureiros”, não fixos. Uma pergunta recorrente de minha mãe ao meu pai era: “Totó, tem certeza de que não vamos perder a casa?”. Mas não me arrependi de um só passo que dei.  

Trabalho ou emprego?  

Naquele momento em que me colocava no trem, despedindo, meu pai perguntou:  

– Ignácio, você quer trabalho ou emprego?  

– Qual é, pai? É a mesma coisa!  

– Não, filho, é diferente. Emprego você tem para ganhar um salário a fim de pagar as contas, a comida, a escola dos filhos e algum para o divertimento. No trabalho, além de tudo isso, você coloca um sonho. Querer ser alguma coisa que faça sua vida diferente. Que te deixe sem fôlego pela alegria, ou sem fôlego pela dúvida.  

Hoje, depois de publicar 56 livros, entre romances, contos, crônicas, viagens, biografias, infantis, depois de viajar pelo mundo e estar em duas academias, a Brasileira e a Paulista, e ser doutor Honoris Causa pela Unesp Araraquara, vejo que eu queria trabalho e sonho. E como sonhei.  

Passei por muitos riscos, mas a vida é isso. O quanto hesitei ao passar de um jornal para uma revista, de uma revista para outra. Um dia, decidi abandonar tudo por um ano. Tentar a vida em Roma, enorme sonho. Cobri a morte do papa João XXIII, entrevistei Federico Fellini e Orson Welles, estive frente a frente com Elizabeth Taylor e vi que ela realmente tinha olhos violetas. Arrisquei, passei apertado, mas nunca passei fome. Entrei em canais errados, afundei. Fiquei mal. Mas, deixei para lá. Disse Churchill, um dos grandes primeiros-ministros da Inglaterra, que durante a Segunda Guerra Mundial ergueu e segurou o ânimo do seu país, que na vida a gente pode fracassar o quanto for, desde que continue entusiasmado.  

Decidi pelo jornalismo. Ele me levou à literatura, às viagens, ao cinema, ao palco. Duas professoras do Fundamental, Lourdes Prado e Ruth Segnini, me diziam: “Quer inspiração? Olhe pela janela! Saia à rua. Observe. Pergunte. Anote”. Um dia, aos 23 anos, perguntei a Nelson Rodrigues, o maior dos modernos dramaturgos, onde ele se inspirava para seus romances, crônicas e peças. Ele: “Olhando pela janela. A vida está toda aí, recolha. Mas saiba recolher e principalmente saiba olhar”. Terminou: “E saiba escrever”.  

Assim vivi o Brasil, este país que sempre retratei. Jurandyr Gonçalves, professor de português no ginásio, me deu uma lição fundamental. Na aula de português, ele pediu que a classe lesse e comentasse o romance de Franz Kafka, A metamorfose (1915). Lemos com espanto e prazer a história de um jovem que acorda, certa manhã, transformado em um estranho inseto. Muitos dizem que seria uma barata, mas o tradutor Modesto Carone, em belíssimo trabalho, se refere ao bicho como repulsivo inseto. E o livro inteiro é narrado do ponto de vista deste bicho. E assim, atravessamos entre problemas do cotidiano humano, das dores, angústias, sonhos. Todos os problemas e angústias dos humanos estão aqui, o bem e o mal, as relações em família, a sociedade complexa. Quando, ao ser arguido, disse ao professor que tinha adorado, mas achado absurdo demais, ele respondeu: “Não tenha medo, a vida é mais absurda que o próprio absurdo”.  

Arrisquei. Hoje sou escritor, estou em duas academias, viajei o mundo, sou cronista, faço palestras por este país afora, conversando com estudantes e professores. Velhos amigos me abraçam: “Está na boa, hein? Em todos os jornais, televisão, famoso”. Replico: “Não ganho por notícia, ganho pelo trabalho, pelo que escrevo”. Não sou um homem solitário. Sempre penso que, em algum momento, alguém esteja lendo uma página que escrevi, afinal são 56 livros e 10 mil crônicas em jornal. Ao ler e gostar, essa pessoa transfere este amor para mim.  

Confesso que ouço com frequência uma pergunta insólita. Amigos de muitos anos, ou recentes, indagam:  

“– Ignácio, você não trabalha? Não faz nada? Só escreve?”.  

A princípio, eu imaginava que trabalhar era aquilo que meu pai fazia. Acordava cedo, tomava café, ia para o escritório, voltava para o almoço, regressava à escrivaninha, mexia com papeis, contas etc. A rotina clássica, a repetição, a mesmice. Aquela geração envelhecia cedo. Um dia, anos 1960, repórter do jornal Última Hora – que desapareceu – fui entrevistar Vinicius de Moraes, poeta, compositor, cantor e casador. Casou-se nove vezes com interessantes mulheres. Conta-se que um dia se aproximou da linda baiana Gessy Gesse e indagou: “Quer ser minha viúva?”. Ela quis. Naquela tarde, Vinicius estava sentado na varanda de um restaurante, a imprensa toda à sua frente, o filme Orfeu Negro, por ele escrito, tinha ganhado o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O compositor-escritor tinha sobre a mesa um litro de uísque, um copão e um balde de gelo. E ia respondendo e bebendo, mantendo-se impecável. Um jornalista não resistiu: “Que bela vida o senhor leva, hein? É famoso, casado com belas mulheres, cinco da tarde está aqui dando entrevista, sentado, tomando um uíscão, despreocupado”.  

Vinicius olhou:  

“– Você não entendeu nada? Não percebe que isso é parte do meu trabalho? O que faço em casa, o suor, a busca de uma ideia, elaborar o poema, isso ninguém vê”. Desde então, mudei meu conceito de trabalho. Ele não é apenas suor e angústia, é também divertimento, fairplay, prazer, sonho, a delícia de fazer o que gosta, mesmo que tenha muito trabalho.  

Chegado aos 88 anos, viajo e faço palestras. Ainda há pouco, em Aracaju (SE), terminada uma fala com estudantes, uma jovem perguntou:  

“– Qual é o seu segredo? Nesta idade, viaja, fala, não tem voz de velho… Qual é sua fórmula? A receita? Não fuma, não bebe, faz exercícios especiais? O quê? Como chegou até aqui?”  

Fiquei me perguntando: O que é voz de velho? Envelhecer. A mídia está coalhada de fórmulas e remédios para tudo. Ora pro nobis, massagens, colágenos, fitoterapias para ter cabelo, não ter ruga.  

Respondi:  

“– Fórmula? Receita? Sabe por que estou aqui?”. Aos 88 anos? Simples: Porque não morri”.  

Foi uma gargalhada só. Estou aqui porque na minha frente sempre tem um projeto, um sonho, algo a fazer. E corro atrás. Li uma frase, creio que de Bertrand Russell, o filósofo pacifista que aos 95 anos ainda tomava parte em passeatas em Londres: “Quando uma pessoa se aproxima do fim, procura saber o sentido da vida”. Descobri isso aos 16 anos, quando escrevi meu primeiro texto, uma crítica de cinema. Com a escrita entendi, retratei o Brasil e os brasileiros. E ainda tenho projetos. Caminho, eles também.  

Assim continuo indo em frente.  

  • Ignácio de Loyola Brandão, jornalista e escritor, nasceu em Araraquara (SP), em 1936. Tem 56 livros publicados, entre romances, contos, crônicas, infantis, biografias e uma peça teatral. É vencedor do Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2016, como Mestre da Narrativa. Seu mais conhecido romance, Não verás país nenhum (Global, 2008), tornou-se clássico do ambientalismo no Brasil. Pertence às Academias Brasileira e Paulista de Letras e é doutor Honoris Causa pela Unesp Araraquara.  
  • Juliana Russo é artista visual, desenhista, curadora, montadora, ativista pelos direitos dos povos originários, pelo direito à moradia e profundamente interessada pelas propriedades curativas das plantas. Desde 2004, mescla seu trabalho autoral com ilustrações para revistas, jornais e livros. Em 2015, lançou seu primeiro livro autoral, São Paulo Infinita (Gustavo Gili).

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