Narrativa(s) e Memória: Sonhar e Construir Futuro

19/03/2024

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Por Helena Silvestre*

Quantas vezes você pensou, que sua história não tinha valor? Que em sua vida não há nada interessante ou digno de ser contado?Ensinaram-nos que as grandes histórias não são feitas por gente como nós, que as histórias que valem a pena ser contadas e celebradas são aquelas em que heróis homens realizaram grandes proezas.

Mas quem eram as mães dos heróis das histórias conhecidas? Aquelas que sangraram os seios nutrindo pequenas criaturas que só seguiram vivas graças ao seu cuidado? Quem eram suas filhas, aquelas que cresceram sem a presença e cuidado dos que seguiam mundo afora desbravando o desconhecido? Quem eram suas irmãs, geniais mulheres ofuscadas pelo peso dos trabalhos que
só recaíam sobre suas costas?

As narrativas heroicas nos lembram grandes realizações de gente que não cozinhava a própria comida, que não lavava as próprias roupas, gente que parece ter sido inventada de um modo mágico, como quem nascesse pronto e no momento da vitória. Essa é a narrativa colonizadora, patriarcal e branca. Mas cada herói já foi uma criança cuidada por alguém, já foi um adolescente em crise com as mudanças da vida e que precisou de alguém que lhe ouvisse, acolhesse, orientasse. Numa outra perspectiva do passado, nem um único grande feito seria contado sem que a cozinha fosse o lugar onde se prepara a vida e um possível bem-viver. Numa outra perspectiva, nenhum futuro será possível sem que o corpo esteja nutrido e cuidado. É no presente que se produz passado e futuro. É no presente que as histórias contadas antes de dormir e as cantigas de ninar produzem as memórias que desenham nossa imaginação e caráter.

A mente antecipa o que está por vir, fica ansiosa com o que ainda não é, mas só no presente existe o corpo que sustenta com músculos, carne e ossos as ações que desenham o caminho onde pisamos como comunidade humana. É aqui e agora que nascem e se constroem os ancestrais do futuro. É aqui e agora que o movimento de nossos passos define onde estaremos amanhã.

As mulheres possuem o poder ou o fardo de sustentar a história. Nesse momento crítico que a humanidade atravessa, nós precisamos urgentemente recontar a história, reescrever as cantigas de ninar, reconectar o que somos com aquilo que fi zeram de nós, para libertar imaginações que nos ajudem a escolher o que faremos de nós daqui pra frente. A história de cada mulher é cura para si mesma e para o mundo.

Nenhum futuro bom é possível sem que seja um futuro ancestral, afro-indígena – que além de seguir adiante possa regenerar os danos que os heróis causaram. Todas nós, mulheres, devemos assumir nosso protagonismo na celebração de bem-viver que vamos produzir com nossas mãos, pés, passos, vozes e maneiras de reexistir.


*Helena Silvestre é escritora, militante de lutas por moradia e território, coeditora da revista Amazonas no Brasil e educadora popular na Escola Feminista Abya Yala, em São Paulo.Paulo – um espaço de partilha de conhecimento, estudo coletivo, fortalecimento e cuidado entre mulheres ativistas na periferia

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