Narrativas sonoras

02/01/2025

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Leia a edição de JANEIRO/25 da Revista E na íntegra

“Galileu está de cama e sem dinheiro. Uma maravilhosa invenção surge em Veneza e se transforma em uma chance para ele mudar de vida”, descreve o episódio “Mensageiro das estrelas”, do podcast Vinte Mil Léguas, criado e apresentado por Leda Cartum e Sofia Nestrovski. Para os ouvintes, a narração dessa imagem inusitada do astrônomo, físico e matemático italiano Galileu Galilei (1564-1642) desperta curiosidade: afinal, que reviravolta está reservada ao pai da ciência moderna?  

Enganchado pela trama de um podcast como este, dedicado à ciência e à literatura, ou a tantos outros voltados a diferentes gêneros e assuntos, o Brasil se tornou o segundo país do mundo em consumo e criação de podcasts, segundo levantamento do tocador de áudios Spotify. Ao disseminar histórias, sensibilizar ouvintes e construir vínculos, os podcasts conquistaram um território próprio, com direito ao Dia Nacional do Podcast (21/10), que remete à veiculação do pioneiro no país, em 2004, em formato já extinto.  

Para a jornalista e pesquisadora Paula Scarpin, diretora de criação da produtora Rádio Novelo, ainda que o podcast se inspire na produção radiofônica, ele apresenta diferenciais, principalmente, nas formas de consumo. “Quando um produto é criado para ser exclusivamente veiculado como podcast, é seguro extrapolar que este conteúdo pode exigir mais atenção do ouvinte – além, é claro, da possibilidade de se criar produtos voltados para públicos específicos, criando canais para discussões que muitas vezes não encontram espaço na mídia de massa. Mas, talvez, a conclusão mais importante do consumo individual, com fones de ouvido, seja o enorme potencial dos podcasts de criar uma relação íntima entre produtor e ouvinte”, analisa. 

Doutora em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e apresentadora do podcast Livros no Centro, Rita Palmeira credita o sucesso de público dos podcasts à possibilidade das pessoas se reconectarem com a história narrada. “Me parece que a resposta para o sucesso dos programas narrativos em áudio residiria antes no prazer milenar de escutarmos histórias. E, sublinhe-se, as mais variadas histórias: os tocadores oferecem histórias de mistério, de terror, de amor, de ficção científica etc. Com isso, atraem um público sortido”, observa. Neste Em Pauta, Scarpin e Palmeira equalizam o debate sobre formatos, modos de consumo e desafios dessa jornada sonora.  

Podcasts e os desafios de Brecht 

Por Paula Scarpin  

Entre 1927 e 1932, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) escreveu uma série de ensaios que, mais tarde, compilaria em Teoria do rádio. Nesses ensaios, Brecht chama a atenção para o fato de que o novo meio – então, com poucas décadas de existência e menos ainda de popularização – vinha se desenvolvendo sem muita reflexão, e limitando-se a imitar instituições que o antecederam. Por exemplo: em vez de pensar o radiojornalismo, ia-se pouco além de ler notícias do jornal impresso. No lugar de se pensar um teatro radiofônico, popularizaram-se as transmissões ao vivo de peças de teatro.  

O rádio, assim como a TV, o jornal – e, mais tarde, o blog, o podcast – não é um gênero, mas um meio. Uma peça de teatro transmitida pelo rádio não é menos rádio do que uma peça de teatro produzida especialmente para os ouvidos. Nada mais natural do que aproveitar, num novo meio, o conteúdo que foi produzido para outros. Quando a Apple lançou o iPod, em 2001, o aparelho logo foi lido como uma miniatura de walkmans, de fitas cassetes ou CDs – agora com a possibilidade de se fazer download de conteúdo em áudio direto para o aparelhinho. Tudo o que estivesse disponível online poderia ir parar no seu bolso. O conteúdo, óbvio, era música. Talvez aulas de idiomas… Mas – por que não? – clipes de programas de rádio também. Eram os podcasts. 

Em pouco tempo, no entanto, assim como o YouTube revolucionou e democratizou a produção de conteúdo em vídeo, os podcasts fizeram o mesmo pelo conteúdo em áudio. E, mesmo quando o gadget que deu o nome aos podcasts, o iPod, foi descontinuado em 2022, os smartphones já tinham absorvido e popularizado ainda mais esse mercado. Pode-se dizer ainda que, assim como o que era transmitido na TV serviu de modelo para o que era produzido no YouTube, a rádio, inevitavelmente, inspira o que é feito em podcast. É preciso levar em conta ainda que a produção televisiva e radiofônica de cada país é resultado de muitas variáveis, de incentivos financeiros a referências culturais. De novo: são meios, não gêneros.  

Talvez, a conclusão mais importante do consumo individual, com fones de ouvido,
seja o enorme potencial dos podcasts de criar uma relação íntima entre produtor e ouvinte 

Mas a provocação de Brecht de quase cem anos atrás ainda faz sentido na seguinte medida: será que cada meio – pela especificidade de suas técnicas de produção e pelas características de seus hábitos de consumo – não oferece possibilidades singulares de comunicação? Vamos focar, daqui em diante, nos podcasts e tomando o rádio como meio de comparação. Primeiro ponto: ambos os meios se prestam a transmitir tanto conteúdo ao vivo quanto material gravado e editado. No entanto, considerando o consumo sob demanda dos podcasts, se ele não exige, necessariamente, a edição caprichada dos conteúdos, ao menos oferece condições que propiciam isso.  

Mesmo podcasts veiculados várias vezes por dia gozam de mais tempo para revisão, checagem de fatos e edição mais cuidadosas do que conteúdo veiculado em tempo real. E por mais que seja possível e desejável circular no dial produtos bem trabalhados – pesquisados e investigados por meses a fio, roteirizados, com pós-produção dedicada a desenho de som e mixagem –, essas peças encontram lugar ideal nas plataformas de áudio sob demanda (como Spotify, Apple Podcasts, Deezer etc.), onde podem ser consumidas como produto perene. 

O segundo ponto desta comparação também tem estreita relação com a forma de consumo. Por um lado: sim, o consumo de conteúdo em áudio, seja rádio, seja podcast, não poderia ser mais favorável para o multitasking – informar-se ou entreter-se ao mesmo tempo em que se executa outras tarefas, como o transporte, a limpeza da casa etc. – por não exigir a atenção dos olhos e oferecer mais liberdade de movimento. Por outro lado, em geral, enquanto a escuta de rádio se dá em alto-falantes – em casa, no carro, em estabelecimentos comerciais etc. – e muitas vezes de forma coletiva, pesquisas apontam que ouvintes de podcasts costumam usar fones de ouvido. Essa pode parecer uma diferença pequena, mas é possível fazer algumas inferências importantes a partir dela. Por exemplo: como o consumo coletivo abre espaço para distrações, o conteúdo veiculado no rádio precisa ser mais claro, mais reiterativo e voltado para um público mais abrangente.  

Quando um produto é criado para ser exclusivamente veiculado como podcast, é seguro extrapolar que este conteúdo pode exigir mais atenção do ouvinte – além, é claro, da possibilidade de se criar produtos voltados para públicos específicos, criando canais para discussões que muitas vezes não encontram espaço na mídia de massa. Mas, talvez, a conclusão mais importante do consumo individual, com fones de ouvido, seja o enorme potencial dos podcasts de criar uma relação íntima entre produtor e ouvinte. Se os fones forem intra-auriculares, então, estamos falando de emitir informação, literalmente, dentro da cabeça do ouvinte. 

Se reduzirmos ainda mais o foco, quando falamos em podcasts narrativos, essa conexão estreita se alia à mais antiga das tradições comunicacionais: a da contação de histórias. Quando criamos a Rádio Novelo, há cinco anos, queríamos apostar nessa fórmula. Com a série Praia dos Ossos, nosso primeiro original, não poupamos os recursos que tínhamos disponíveis para experimentar como seria produzir conteúdo jornalístico narrativo em áudio com tempo indeterminado de pesquisa e apuração, com captação de som, roteiro e mixagem de cinema, com longos debates sobre o que aquele conteúdo tinha a informar para além da fórmula de sucesso do true crime. 

Mais recentemente, criamos um desafio: como seria se combinássemos essa fórmula do podcast narrativo e alguns dos aspectos que marcam a eficiência comunicacional centenária do rádio: a constância, a abrangência do público-alvo, a clareza na comunicação? Queríamos oferecer um produto que os ouvintes pudessem criar o hábito de ouvir, que se encaixasse em suas rotinas. Um canal plural, onde jornalistas de todas as partes do país pudessem publicar suas reportagens. Essa aposta, que acaba de cumprir dois anos no ar, se chama Rádio Novelo Apresenta, e se tornou nosso laboratório de fé no jornalismo em áudio. Isso sem abrir mão dos princípios que nos estimularam a criá-lo – inclusive monitorando a diversidade regional, racial e de gênero – e tentando alcançar a sustentabilidade financeira do projeto.  

O resultado, que superou nossas expectativas, é de crescimento consistente da audiência, que hoje gira em torno de 150 mil ouvintes semanais: ouvintes que participam ativamente, repercutindo os temas, pedindo mais detalhes, elogiando ou criticando a abordagem e, principalmente, propondo novas histórias. Em sua teoria do rádio, entre os muitos desafios que Bertolt Brecht lançou para o novo meio, estava: “o rádio deve deixar de ser um meio de distribuição para se transformar num aparato de comunicação”. Talvez estejamos chegando lá.  

  • Paula Scarpin é diretora de criação da produtora Rádio Novelo. Jornalista formada pela Universidade de São Paulo (USP), estudou teoria da narrativa radiofônica no mestrado entre Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Sorbonne Paris Cité 7. Foi repórter da revista Piauí por 12 anos, onde criou e dirigiu os podcasts da revista até idealizar a Rádio Novelo, com Branca Vianna e Flora Thomson-DeVeaux. 

De volta à era do rádio?   

Por Rita Palmeira 

O surgimento e o fortalecimento dos podcasts no Brasil poderia ensejar a questão que nomeia este texto, de que estaríamos de volta à chamada “era do rádio”. Bom, seria falsa, porque o rádio nunca caiu exatamente no ostracismo por aqui. A despeito da força e popularização da TV, o rádio se manteve como meio de informação e entretenimento tanto nas capitais e maiores cidades do Brasil, como em suas localidades mais distantes. Que uma nova forma de comunicação por áudio se dissipe pelo país diz mais, me parece, de uma nova forma de organização de conteúdos vários (agora descentralizada, quando deixa de ser exclusividade das grandes empresas de rádio) que são, ao mesmo tempo, personalizados (os famosos “customizados”).  

Em vez de seguir a programação de uma estação de rádio, o ouvinte pode selecionar, nas plataformas de podcast, os programas que deseja escutar. Esse comportamento curatorial, que se espraia por aí, é bem desses tempos, o que faz cair por terra, de uma vez, a ideia de um retorno à era do rádio. Em primeiro lugar, porque o rádio continua firme e forte, sem permitir que a mera ideia de retorno ganhe espessura, e em segundo lugar, porque podcast não é rádio, em sua acepção mais ampla, porque personaliza seu conteúdo. 

Esse preâmbulo serve como premissa para o que se segue aqui – um conjunto de impressões sobre os podcasts, e particularmente os podcasts narrativos. Faço isso não como especialista na área (que não sou), mas como narradora e coeditora de roteiros de um podcast narrativo. Faz dois anos que mergulhei no universo dos podcasts. Até então era uma ouvinte ocasional, mais ou menos fiel, de um ou outro podcast de notícias, e bastante interessada em programas que contassem histórias – os tais podcasts narrativos. Isso, claro, não é à toa.  

Trabalho há 25 anos com livros – editando-os, resenhando-os ou dando aulas sobre eles. Eu gosto, portanto, de narrativa. E prefiro sempre as peripécias de uma boa história à objetividade (quase sempre fria) do noticiário. Trato então de minhas impressões quando, digamos, mudo de lugar na cadeia: passo da ouvinte ocasional para a de apresentadora de um programa quinzenal que em agosto de 2025 entrará em sua terceira temporada. 

Interrompo para explicar melhor de onde falo. Quando decidimos criar um podcast da livraria onde sou curadora – Livraria Megafauna, em São Paulo –, a primeira ideia que nos ocorreu foi transformar em programas as várias mesas que acontecem regularmente na livraria, como os tantos e ótimos programas de entrevistas com autores de livros que há por aí. Seríamos mais um programa de entrevistas e, posso apostar, bom e interessante, como costumam ser os debates na livraria. Esse seria, talvez, o caminho mais fácil, porque mais à mão. Foi preciso que, aí sim, uma especialista em rádio e em podcast (que se tornaria a idealizadora do Livros no Centro) nos mostrasse que uma rota mais trabalhosa combinaria mais com um espaço de contar histórias, como é uma livraria. Por que não narrar as histórias de leitores? E dos livreiros que trabalham lá? E de ouvintes que tiveram a vida mexida por algum episódio envolvendo um livro em especial ou livros em geral? 

Tinha uma ideia que animava esse caminho – dessacralizar o universo da literatura, no sentido de aproximá-la de quem a consome. Os livros, obviamente, não existem sem as pessoas – quem escreve, quem traduz, quem edita, quem vende, quem lê. Transformar, porém, essa gente em protagonista de uma história era tirar a literatura de uma espécie de pedestal, e isso parecia uma boa aposta e estava de acordo com o que pensávamos. Assim fizemos. Começamos a recolher histórias de leitores inusitados, de livreiros com trajetórias romanescas e de livrarias importantes, e a transformá-las em roteiros de áudio. 

Num roteiro de podcast, o espaço é narrado, as sensações são narradas, os gestos são narrados. Vai-se além quando as palavras se juntam à trilha e aos efeitos sonoros – por ali, você conduz o ouvinte. Constrói-se com o encadeamento de palavras o que uma imagem revela num átimo. Na comunicação em áudio, o visual se forma na cabeça do ouvinte; a supremacia da imagem está enterrada. Seria fácil arriscar que estamos todos tão tomados pelo excesso de tela que descansamos os olhos com os ouvidos. Pode ser.  

Cada podcast é uma espécie de aldeia, em que são transmitidas histórias de assuntos da predileção do ouvinte,
que as escuta no momento de sua preferência e do jeito que lhe aprouver 

Mas me parece que a resposta para o sucesso dos programas narrativos em áudio residiria antes no prazer milenar de escutarmos histórias. E, sublinhe-se, as mais variadas histórias: os tocadores oferecem histórias de mistério, de terror, de amor, de ficção científica etc. Com isso, atraem um público sortido. Quem escuta as histórias que narro, por exemplo, dificilmente será alguém que não se interessa por livros. Não precisa ser um frequentador de livrarias – faltam livrarias nesse país de poucos leitores – nem mesmo de bibliotecas, apenas alguém que goste de ler e que goste do objeto livro, sem (volto a isso) a fetichização ou a sacralização do livro ou da literatura.  

Quando contamos a história de um jogador de futebol que se refugiava no chuveiro do vestiário para terminar um capítulo e depois dedicava o gol que fez a um personagem de Victor Hugo [1802-1885, romancista francês do século 19, autor de Os Miseráveis, entre outras obras]. Ou quando contamos a trajetória de um livreiro que saiu do Piauí para São Paulo, num caminhão pau-de-arara, ainda criança, e conseguiu, sem nunca ter feito faculdade, se estabelecer como livreiro em uma das maiores universidades do país. Ou a vez em que contamos de uma mulher centenária, refugiada do nazismo, que no exílio, por causa de um livro, se casa com um tradutor. Quando contamos tudo isso, estamos também contando às pessoas que os livros são, e devem ser, parte da vida cotidiana de todos nós; que a leitura e o acesso aos livros é um direito, não um privilégio; que os livros promovem encontros, às vezes, os melhores da vida. 

Narrar esses encontros em áudio deixa ao ouvinte a imaginação das cenas, assim como acontece com o leitor e seu livro. Se o leitor tem seus escritores favoritos, o ouvinte tem sua voz preferida, aquela que diária, semanal ou quinzenalmente o acompanha, o conduz através de uma narrativa. Essa voz, a menos que o ouvinte recorra ao Google, não tem rosto definido – ela é parte do conjunto de imagens criadas pelo podcast. E, no entanto, o ouvinte espera o momento de reencontrá-la em seu tocador como faziam os ouvintes das histórias dos velhos narradores, quando reunidos em sua aldeia. 

Cada podcast é uma espécie de aldeia, em que são transmitidas histórias de assuntos da predileção do ouvinte, que as escuta no momento de sua preferência e do jeito que lhe aprouver – um episódio por vez, vários em sequência ou segmentando cada episódio em várias partes. Essa possibilidade de personalizar a forma de escutar sem perder a conexão com o outro, que está, afinal, narrando histórias, é talvez uma pista de porque não estamos de volta à era do rádio, mas testemunhando novas formas de consumir novos programas de áudio – o áudio que, contudo, sempre nos acompanhou.  

  • Rita Palmeira é editora e crítica literária, doutora em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em teoria literária pela Universidade de Campinas (Unicamp), curadora de livros da Livraria Megafauna e apresentadora do podcast Livros no Centro. 

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