Por Erica Malunguinho*
A música Sorriso Negro é composta por Adilson Barbado e Jorge Portela, grandes nomes do cancioneiro brasileiro. Ambos são responsáveis por criar o hino imortalizado na voz de Dona Ivone Lara. Juntos foram destinados a eternizar um dos maiores clássicos da música negra e brasileira.
Toda vez que ouço essa canção, principalmente quando o é em tantos sambas espalhados neste Brasil, à medida que embarco na música, eu observo a roda de samba. Observo a pretada cantando aquilo vindo lá de dentro. Nessa cena épica que, graças às deusas, podemos repetir sem ser a mesma coisa, e, sim, um reviver da magia negra que é a própria história contada em primeira pessoa, escuto algo além das afirmações e graus de consciência sobre a inevitável negritude poetizada por um dos baluartes da arte e da cultura que é Dona Ivone Lara. Me atrevo a interpretar que aquilo se trata de vanguarda. “Negro é a raiz da liberdade” fala de emancipação, longe e principalmente quando não havia grilhões, fala daquilo que é tão difícil mensurar, mas que é tão desejada: a liberdade. Liberdade que, segundo a canção, é traduzida pelo “sorriso e um abraço negro”, e quando nos falta algo, como um emprego, “fica sem sossego”.
Essa tal liberdade nos levou a movimentos cruciais que fizeram insurgir o que conhecemos por cultura brasileira. Foi esse sentimento-motivo-desejo-ímpeto-humanidade, numa resposta objetiva à tragédia chamada escravidão que fez-se levantar os quilombos e, consequentemente, o Quilombo/Nação dos Palmares, uma nação livre durante a colonização. A Nação Palmares, foi, entre muitas coisas, um ato de defesa propositiva capaz de criar um lugar, um território anti colonial, sendo vista pelo sistema como um ato de insurreição.
É neste contexto que o registro da materialidade preta no Brasil se amalgama: dos Maracatus, com a celebração para coroação dos Reis do Congo, Maculêles como prática de dança e luta, à capoeira, entre outros. O fato é que em defesa de nossas humanidades, que era a própria exaltação aos anteriores, demarcamos o território da cultura, recriando as tradições e, quando necessário, literalmente contragolpeando.
Esse complexo sistema de formulação cultural foi se traduzindo em processos de conscientização, senso de coletividade, auto proteção, curas, existência e humanização. Celebrar os Reis do Congo, além de um afronte à dominação europeia, era situar de que se existia uma coroa, a nossa não era a portuguesa.
O Candomblé, como lugar da espiritualidade nos evocando para dimensão do sagrado, deu sentido e fundamentos habituais de todos esses passos, pois, assim, regia nossa experiência de vida, nossa força vital, o axé. Portanto, além da metafisica, o candomblé é uma organização social e política. Para ser mais honesta e profunda, nenhum desses elementos estavam dissociados, fazem parte do ser, agir e pensar.
É imprescindível mencionar as Irmandades, em especial a Irmandade da Boa Morte, que majestosamente nos ensina as ligações entre o outro mundo, o da “morte” (orun) e este o que vivemos (aiyê), nos levando a um processo de cura coletiva das violências vividas pela escravidão. E que, aqui, toma contornos do que deveria ser dois fundamentos da sociologia brasileira: raça e gênero. A Irmandade da Boa Morte é um culto permanente de saudação às Mães.
Xica Manicongo merece um capítulo à parte. É a primeira transexual que se tem notícia no Brasil. Xica foi trazida do Congo para o Brasil em 1591, na condição de escravizada, e viveu pelas ruas de Salvador de acordo com seu gênero, até ser delatada para inquisição por um português. Xica, mesmo recusando a usar vestimentas masculinas, foi obrigada a fazê-lo pelo receio das penalidades da coroa. E, ainda sendo violentamente apagada do exercício de sua identidade, Xica nos deixa como herança, assim como o Orixá Oxumaré, a certeza da diversidade. Recentemente, aprendi com a preciosa intelectual Egbomy Cici, ou Vovó Cici, que Logunedé e Yemanjá Ogunté são intersexo.
Entretanto, nem tudo diz respeito a uma luta, a resistir no sentido da contraposição, pois, embora tentassem veementemente se colocar neste lugar, a Europa e o ocidente não eram nosso centro, estava mais para encosto, empecilho, atravessando o rolê, fura zóio… Nossos caminhos transcorriam também por outras veredas, o afrocentro como epicentro, trata-se de preservação, identificação e continuidade… Era e é sobre pertencimento. E foi por meio de uma negociação forçada que se trilharam os caminhos para os quilombos físicos e do além físico que seria a tecnologia quilombistica, uma tecnologia social preta, capaz de buscar soluções para a difícil equação que deveria resultar em liberdade. Neste sentido, todos os batuques, umbigadas, sambas e interpretações diversas das sonoridades, performance, dança, plasticidades, espiritualidade e do nosso próprio corpo, como suporte e expansão da estética, foram/são as águas de um rio que suntuosamente desenha o chão até o encontro do seu sonho mar. Diz respeito a fertilizar o solo, perceber as adversidades deslocando rochas, criando limo, ou mudando de rota. É da natureza que somos e não apenas habitamos.
Diz respeito a uma fonte inesgotável do ato criador.
Diz respeito à raiz da liberdade.
Essas Áfricas que construímos nas Américas não são iguais às Áfricas nem daquele tempo, tampouco de agora. Está mais para “Améfrica Ladina” de Lélia Gonzales. Nada seria possível se os pretos que falo aqui não fossem também os “negros da terra”, como eram chamados os povos originários/indígenas do Brasil. Foi no fazer das peneiras para o ouro, do facão para o corte da cana, das moendas para farinha, no plantio da mandioca, na lavagem das roupas, nas lavouras de café, e no fazer dos próprios quilombos, que literalmente tecemos as redes que não iriam pescar apenas peixes, mas construir uma relação de povos ligados às tecnologias mais fundamentais para preservação da vida. São essas o que as pessoas passaram a conhecer como sustentabilidade, desenvolvimento sustentável, economia criativa e preservação ambiental…
Por isso, devemos – para o bem de todes e felicidade geral da nação – ser protagonistas de uma real alternância de poder, e que, para tanto, reintegremos a posse de todos os bens materiais e imateriais historicamente saqueados. Chamam isso de reparação, eu não.
*Erica Malunguinho é educadora e agitadora cultural. Mestra em Estética e História da Arte. Tornou-se a primeira deputada estadual trans eleita no Brasil em 2018 no estado de São Paulo. É gestora da Aparelha Luzia e listada pela 74ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) entre 100 Afrodescentes Mais Influentes do Mundo em 2020.
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