A psicanalista Maria Rita Kehl no Sesc Jundiaí.
Foto: Cris Komesu
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
A obrigação à felicidade, cantada nesses versos da canção de Chico Buarque, poderia ter um efeito contrário na prática? Para a psicanalista Maria Rita Kehl, sim. Ela cita Sigmund Freud, criador da psicanálise, para afirmar: “Se quiser tornar algo impossível, torne-o obrigatório”.
Em conversa com técnicos do Sesc, no aquecimento para o Dia Mundial da Saúde, a psicanalista e escritora falou sobre a depressão como um sintoma social: “Nós vivemos num mundo de felicidade obrigatória. Primeiro porque a felicidade é um ingrediente essencial para a sociedade de consumo. Você só vende coisas mostrando pessoas felizes com aquele produto. A partir dos anos 70 e 80, a felicidade, o prazer e o erotismo passaram a ser associados a mercadorias. Assim, a felicidade se torna um imperativo e as depressões aumentam”.
Confira alguns destaques da conversa:
– Trabalho, família, lazer. E o que mais?
– Por que a adolescência é um período crítico?
[Sigmund] Freud considerava a capacidade de amar e trabalhar como a síntese da saúde mental. Mas eu arriscaria acrescentar que é a capacidade de amar, trabalhar e criar. Tudo bem, criar também está ligado a trabalhar. Mas criar não é necessariamente nem trabalho, nem amor, e nem é preciso ser um artista para criar.
Trabalho, família, lazer. E o que mais?
Acordar, ir trabalhar (se tiver a sorte de ter um trabalho), cuidar das famílias que formamos ou às quais pertencemos, ter fins de semana de lazer… a vida não é muito mais que isso. No entanto, se descrevermos assim, as pessoas podem dizer: então vou pular da ponte. A vida é isso? É. Mas o que nós temos que é infinito? A cultura.
Nós temos uma capacidade inesgotável de navegar na linguagem, seja musical, pictórica, verbal. É nesse mundo simbólico que você encontra o tesouro inesgotável da humanidade, que vai da arte rupestre até a mais contemporânea.
A depressão existe, mas ela não precisa ser um fenômeno social numa sociedade que tem riqueza cultural.
A pessoa que tem que postar fotos tempo todo dizendo que está feliz, mas sua vida vai se empobrecendo. Ela vai aos lugares e não consegue curtir porque está o tempo todo fazendo fotos de que está ali, mas quando percebe não esteve exatamente em lugar nenhum e tem uma sensação de um vazio que não sabe de onde vem.
Não é só o Facebook, mas esses dispositivos todos de internet, em que as pessoas tem que produzir para os outros o tempo todo efeitos de felicidade.
Talvez o mais importante seja desligar um pouco da conexão das imagens que circulam no mundo. Estou falando da publicidade que nos diz o tempo todo o que é ser feliz. O tempo todo você é bombardeado – tá vendendo um tênis, uma bicicleta, etc – mas o que é agregado? A felicidade. É como se aumentar um pouco nosso poder aquisitivo pra circular um pouco mais no mercado, nos objetos de consumo, fosse nos dar essa felicidade.
No entanto existem objetos infinitos, gratuitos no mundo, que nos enriquecem muito mais que mais um colar, um vestido, um sapato, um carro.
Por que a adolescência é um período crítico?
Na nossa sociedade de consumo, o padrão das publicidades para mostrar que a pessoa está feliz é o adolescente. Em geral, quando é um anúncio de cerveja, de carro, de férias, o que tem de jovem curtindo numa boa é impressionante. Mas a adolescência é uma das fases da vida mais difíceis. É a perda da infância, um momento em que você tem que simular que já está pronto pra uma vida adulta, coisa que você não está. Seus colegas também estão simulando, mas você acredita neles e acha que só você não consegue. Todos estão fazendo pose, todos estão se sentindo meio deslocados.
Na sociedade do espetáculo, em que a regra é ser feliz e tirar selfie pra mostrar que está tudo maravilhoso, a adolescência é bastante infernal.
>> No mês de abril, a saúde mental ganha atenção especial na programação do Sesc, em comemoração ao Dia Mundial da Saúde. Confira a programação completa aqui.
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