Leia a edição de novembro/22 da Revista E na íntegra Ilustrações: Luyse Costa
Ele caminhava pelo mercado como se o chão fosse de flores,
paramentado, de turbante na cabeça, roupa de brocados e
rendas, pano da costa, anéis e bengala, que eu nunca soube
se era para ajudá-lo a caminhar ou signo de autoridade de
quem bate no chão chamando os ancestrais por onde passa.
O Babá se dirigiu a uma barraca de peixes. Eu o avistei
da loja de queijos. Finalizei minha compra e fui até ele.
Bandagira Babá, muito bom dia! Mukuiu!
Mukuiu Nzambi, minha filha! Que Oxum lhe dê saúde!
Asé ó, Babá! Vim aqui lhe cumprimentar
e tomar sua benção.
Eu lhe vi ali na barraca de queijos. O dia está
ensolarado, bom para vir ao mercado.
Sim, senhor.
E como você está, minha filha? Como estão
os trabalhos? Vi que lançou livro novo.
Sim, senhor, Babá, lancei. Está tudo bem, obrigada.
Em movimento. E o senhor, como está?
Eu estou como orixá manda, não é minha filha?
Com Iaô recolhido. Casa de candomblé, você
sabe como é, aquela luta de sempre.
Imagino, Babá. Imagino.
Você precisa aparecer lá em casa. Vai ter barco de
Xangô no mês que vem. Vou recolher logo quatro
e vão sair no dia dele, com uma fogueira grande
no terreiro. Eles voltam para a camarinha, que é o
lugar deles, mas a gente vai festejar no tempo.
Vou sim, Babá. Obrigada pelo convite, deixa anotar
logo o dia na agenda. Opa, nem precisa, 24 de junho.
Venha mesmo. Esse povo diz que vem e não aparece.
Sim, senhor. Será uma alegria estar como vocês.
Só não vou se tiver alguma viagem da qual
não me lembro agora. O senhor sabe, gente
autônoma trabalha mais do que gostaria.
Sim, minha filha. Eu sei como é. Mas faça um
esforço, se puder, vá. Será bom para você.
Sim, senhor. Sempre é. Se puder, irei.
Meu filho, escolha bem esse peixe, viu? Não quero
saber de olho morto, nem de carne mole. Quero carne
tenra. Olhe sua vida, viu? É comida para Orixá.
E ria o Babá, aquele riso bom e estrondoso.
O funcionário da loja sorria também e mantinha
o mesmo peixe escolhido, sinal de que, para o Babá,
ele já havia mesmo selecionado o que havia de melhor.
Eu pedi licença, agradeci pela prosa e tomei meu rumo.
Aquela foi a última vez que encontrei o Babá Francisco de
Oxum antes da pandemia, o homem que me lembrava as
imagens bonitas de Joãozinho Da Gomeia, só que pelas ruas
de São Paulo. Em reuniões políticas também o encontrava.
Zeloso pela Casa, sabia da necessidade de brigar nas esferas
de poder dominadas pelos homens brancos, para garantir
respeito aos direitos das religiões de matrizes africanas.
Passados mais de dois anos sem vê-lo, sem encontrá-lo
no mercado, em sua casa no Quilombo da Saracura ou
em outros lugares públicos, soube de sua morte. Quando
vi uma filmagem da cerimônia fúnebre com outro Babá
que conheço da Bahia, seu provável irmão de santo ou
filho, puxando os cânticos sagrados, seguido por um
pequeno grupo de pessoas a acompanhar o funeral,
fiquei pensando em quanta gente ele deve ter cuidado
ao longo da vida e quantos puderam estar ali, ainda num
momento pandêmico. E tive vontade de compartilhar o
vídeo, e o fiz para engrossar o coro do não esquecimento.
Em mim, Babá, além de sua elegância oxúnica,
ficaram outras duas coisas impressas na memória.
A primeira, sua recusa aos olhos mortos no peixe, um
dos marcadores do frescor do alimento. Desde então,
penso sobre a capacidade de enxergar dos peixes que
focam em um ponto e o ampliam de maneira circular.
O senhor tinha olhos de peixe vivo, não é Babá? Por
isso olhava para os filhos e revelava suas almas por
ângulos que nem o drone mais potente alcançaria.
A última lembrança foi sua benção, quando nos
despedimos no mercado. O senhor me desejou
que Xangô me desse fartura e viço. Asé ó, Babá.
O Grande Rei tem me alimentado. Aweto!
A EDIÇÃO DE NOVEMBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
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