Por Kelly Adriano de Oliveira*
Para além das percepções mais comuns do carnaval como símbolo de folia, bagunça, entre outros elementos e, em tempos de isolamento social, seu cancelamento por ser festa que motiva aglomerações e, ainda mais, nesse momento de tantas perdas, o fato de não haver motivos para celebrar… ainda assim, é muito importante olhá-lo pelas lentes da historicidade crítica, artística, política, socioeducativa e cultural, seus impactos como memória e resistência popular, por ser espaço de contestações e, por fim, por sua grande contribuição para composições musicais que marcam e enriquecem o cancioneiro popular nacional.
O carnaval é um momento social disparador, inspirador e muito rico em conteúdos históricos, sociais e simbólicos em todo o país. Aqui, convidamos para olhares e escutas de alguns aspectos especificamente dos sambas de enredo das escolas de samba de São Paulo e Rio de Janeiro.
Antes da oficialização dos desfiles de escolas de samba no carnaval do Rio de Janeiro, no final da década de 30, e em São Paulo, no início da década de 60, as manifestações criativas e espontâneas, principalmente as que eram atravessadas pelos marcadores de diferenciação social de raça, classe e gênero, eram repreendidas pelo Estado, por serem aproximadas com o crime de vadiagem, que consta no primeiro código penal de 1890, bem no contexto do pós – abolição, depois virou lei em 1942 e assim seguiu até 2012, há menos de 10 anos atrás.
No contexto da oficialização dos desfiles como dispositivo para colocar “ordem na desordem”, o regulamento oficial trazia a obrigatoriedade de temas com “motivos nacionais”, de “finalidade nacionalista” nos enredos das agremiações. Importante lembrar que, naquela época, havia ainda um componente a mais: a ditadura e suas censuras. Essa imposição dos temas nacionais começou a “tomar corpo” no Estado Novo, com Getúlio Vargas, o nacionalismo e o fortalecimento de um entendimento de identidade nacional, mas sua efetivação se deu entre 1946 e 1948, no governo Dutra.
Muitas dessas composições ultrapassaram o âmbito carnavalesco e se transformaram em clássicos da MPB. As escolas de samba eram “celeiros” de compositores e, principalmente, refúgio para músicos negros que não compunham só no Carnaval e estavam ali também porque eram uns dos poucos espaços de convivência cotidiana, de troca de experiências e ideias, em momentos de forte repressão e racismo.
A obrigatoriedade dos temas nacionais e a força da ditadura impactavam na produção de letras ufanistas. Na tentativa de driblar os dispositivos de controle, como cronistas sociais do seu tempo, carnavalescos e compositores, dialogavam com a literatura brasileira e também aproveitavam as oportunidades que surgiam e usavam a escola de samba e os enredos para narrar histórias e personagens que não constavam nos livros oficiais.
Apesar de poucas composições contemporâneas procurarem manter o equilíbrio entre as exigências do formato do samba enredo e as referências que vão além das sinopses, para não ficarem presos no âmbito da encomenda que se esquece no ano seguinte, de tempos em tempos, algumas escolas trazem à luz temas críticos com conteúdos e mensagens sócio históricas, usando o carnaval como difusor e registro de legados.
Assim, colocando alegria como resistência em tempos hostis, as escolas de samba e suas narrativas, atingem um número grande de pessoas que desfilam e que assistem, alcançando possibilidades de conhecimento e fruição artística diferenciada, com pertencimento e protagonismo, no tempo efêmero do carnaval, e, em alguns casos, para além dele, ganhando outros espaços de reverberação dentro das memórias e referências da música popular brasileira.
* Kelly Adriano de Oliveira é cientista Social, educadora, gestora e articuladora cultural, pesquisadora e Gerente Adjunta da Gerência de Ação Cultural do Sesc SP. É também a curadora da Playlist O Brasil no Samba Enredo, que reúne composições de grandes compositores da Velha Guarda do samba brasileiro. Ouça aqui:
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