Impulsionado pela força das redes sociais, o movimento brega é reconhecido internacionalmente e conquista novos públicos
Por Lucas Veloso
Leia a edição de NOVEMBRO/24 da Revista E na íntegra
Nascida em Jurunas, bairro da periferia de Belém (PA), a menina Gabriela Amaral dos Santos cantava no coral da igreja Santa Teresinha do Menino Jesus. Sua voz chamava a atenção dos vizinhos, da comunidade e chegou aos ouvidos de alguns donos de bares da capital paraense. Na época, sem dinheiro e se virando com o pouco que tinha, seguia sua vida artística de forma bem precária. No dia a dia, os desafios incluíam baixar programas de computador em inglês, mesmo sem falar uma palavra do idioma, traduzindo, aprendendo e manuseando. O primeiro teclado foi financiado em 60 vezes para que ela pudesse fazer seus shows.
Décadas depois, Gabriela é reconhecida internacionalmente como Gaby Amarantos. Cantora, compositora e apresentadora, ela é responsável pela popularização do tecnobrega, um estilo musical originado na periferia de Belém. Também é reconhecida por sua militância em prol da cultura amazônica, e por incorporar elementos do pop e da música eletrônica em suas produções. A história de ascensão da artista é entrelaçada com a trajetória da música brega no Brasil, que surgiu como um rótulo pejorativo para gêneros musicais populares, especialmente aqueles produzidos pelas classes mais baixas.
De acordo com o jornalista e pesquisador musical GG Albuquerque, o brega romântico criou raízes nos anos 1960 e 1970, consolidado por artistas como Waldick Soriano (1933-2008), Odair José, Amado Batista e Reginaldo Rossi (1944-2013), tratando de temas amorosos e melodramáticos, influenciados por bolero e seresta. “Nos anos 2000, o tecnobrega emergiu em Belém do Pará, com batidas eletrônicas e influências caribenhas, ganhando popularidade com as aparelhagens e artistas como Banda Xeiro Verde”, observa o pesquisador. “Já em Recife, o brega funk mesclou o funk carioca com batidas mais rápidas e letras sobre o cotidiano periférico”, completa GG.
Além de Gaby Amarantos, são expoentes do tecnobrega artistas como Manu Bahtidão, Dona Onete, e Manoel e Felipe Cordeiro, a Banda Xeiro Verde e DJ Mary. Já entre os representantes do brega funk estão o MC Leozinho, MC Troia e MC Metal.
Apesar das definições gerais, o pesquisador admite que o termo “brega” é um guarda-chuva que “engloba muitos gêneros musicais, mas também não os define claramente”. Do brega funk dos MCs de Recife ao tecnobrega acelerado de Belém e à seresta romântica, o campo é muito amplo. O próprio termo “brega” muitas vezes foi usado para designar coisas de “mau gosto”, inclusive a música produzida por pessoas mais pobres, mas, ao longo dos anos, os músicos deram a ele novos significados.
Embora o brega seja geralmente relacionado a temáticas ligadas a dores de amor e traição, GG defende que problemas sociais também são abordados. Por exemplo, nos anos 1970, durante a ditadura, surge uma divisão entre a MPB, vista como música militante, tendo como representantes nomes como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o brega, que era tratado como música alienada. “Mas alguns artistas populares, como Odair José, abordavam temas sociais de forma subversiva. A música ‘Pare de tomar a pílula’ criticava uma política de controle de natalidade. Havia, também, as canções que retratavam personagens marginais com carinho e respeito”, exemplifica o pesquisador.
Ao valorizar o tecnobrega, estamos celebrando a diversidade cultural do Brasil e fortalecendo a nossa identidade como povo
Gaby Amarantos, cantora e compositora
Foto: Ricardo Ferreira
Na opinião do jornalista GG Albuquerque, nas últimas décadas, o gênero brega passou de marginalizado e criticado, por estar ligado às classes populares, para ser considerado Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado do Pará e de outras regiões, presente até mesmo na universidade. “Embora o brega seja amplamente reconhecido por seu valor social, como uma música das classes populares que dialoga com a sociedade brasileira de forma transversal, falta um debate mais amplo sobre seu valor artístico”, constata.
Para GG, o circuito artístico brasileiro, historicamente dominado por uma elite branca, tem dificuldade em reconhecer a criatividade vanguardista que surge nas periferias. Além disso, as políticas culturais que valorizam o brega ainda são limitadas. Muitas vezes, mais voltadas para espetáculos e eventos do que para o estímulo e desenvolvimento contínuo da música e dos jovens criadores.
O pesquisador também menciona que algumas políticas públicas em estados como Pará e Pernambuco têm buscado reconhecer o brega como patrimônio, mas que é necessário implementar políticas culturais de longo prazo que estimulem a criação musical.
O ímpeto criativo dos artistas foi essencial para o brega ocupar outros espaços. Uma das estratégias mais curiosas foi o uso que os artistas fizeram da pirataria; antes vista como inimiga, tornou-se meio de difusão, tanto em Pernambuco quanto no Pará. Camelôs, barraqueiros e pequenos comércios de CDs e DVDs nas periferias recebiam diariamente materiais de artistas e compositores interessados em ter seus trabalhos “pirateados”, pois isso garantiria acesso a outros públicos e espaços. A esperança de alcançar uma rádio ou um produtor estava por trás desse movimento.
Assim, artistas construíram seus próprios meios de circulação e de divulgação, à margem dos tradicionais. Nas próprias músicas, mandar um “alô” ou divulgar um número de telefone também foram estratégias para fechar shows e gravações em estúdios profissionais. Hoje, essa difusão ocorre também em plataformas digitais, como o YouTube.
“Meu maior sonho era ligar o rádio e ouvir as nossas músicas, vê-las na televisão, em abertura de novela, filmes, séries, propagandas, em todos os lugares. Isso está acontecendo fortemente”, comenta Gaby Amarantos. Com hits como “Ex mai love” e “Xirley”, Gaby popularizou o ritmo e se tornou um símbolo de empoderamento feminino e representatividade da mulher negra. Suas músicas já fizeram parte da trilha sonora de novelas, como Cheias de Charme (TV Globo, 2012). Além disso, a artista já se apresentou em grandes eventos, como o Rock in Rio.
A cantora paraense coleciona diversos feitos em sua carreira, como a conquista, no ano passado, do Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa com o álbum Tecnoshow, e o reconhecimento de sua obra como Patrimônio Cultural e Imaterial do Pará, em setembro deste ano.
Ela lembra que, ao começar a trabalhar com o estilo, tudo o que ouviu foi: “Você vai acabar com a sua carreira”; e “Essa música não mostra o seu potencial vocal, você é muito melhor e maior que isso”. “Mas foi essa aposta que me deu tudo, me fez ser reconhecida”, pontua. “Tudo o que sou vem da música da periferia de Belém do Pará, desse movimento tão lindo, tão importante, tão brasileiro, tão autêntico, que começou do nada, sem estrutura, como tantas coisas que a gente, que é brasileiro, cria”. Gaby comenta que nunca imaginou que a música que tanto amava alcançaria tamanha projeção. “Foi uma pororoca de sonhos que se transformou nessa grande imensidão”, destaca.
Apesar de viver em um cenário cada vez mais favorável à sua música, ainda há obstáculos que a cantora enfrenta na carreira para emplacar o gênero. Mas Gaby Amarantos entende que os desafios são comuns a qualquer estilo musical que emerge da periferia. “Se pensarmos no samba, no funk carioca e agora no tecnobrega, veremos que a história se repete: um som que nasce nas favelas, nos lugares que a elite e a burguesia discriminam.”
A artista crê que o tecnobrega, assim como o samba e o funk, ainda sofre discriminação, porém deve se fortalecer graças à força do público e à qualidade da música. O fato de artistas do movimento serem premiados, consumidos e cada vez mais presentes em plataformas digitais e festivais mostra o alcance da produção musical da periferia amazônica. “A música que produzimos aqui tem valor e merece espaço. Vejo-a no seu lugar de direito no cenário musical brasileiro, ao lado de outros gêneros”, destaca Gaby.
Na mesma linha de raciocínio da artista, os irmãos e produtores culturais Jeft Dias e Gerson Júnior, moradores do Pará, promoveram, em maio deste ano, a primeira edição do Festival do Tecnobrega e Aparelhagem. Em quatro dias, o evento reuniu artistas, produtores e público para pensar o gênero em nível nacional. “A gente trabalhava com meu pai, copiando CDs e DVDs a noite toda. A gente fazia parte desse circuito desde o início”, lembra Jeft.
A ideia do festival é criar um espaço para discutir e pensar o cenário da música brega no país, para que esse movimento se torne o maior mercado cultural do estado. “O festival serviu como um palco para os artistas, mas também como um espaço para registrar e estudar a história dessa cultura”, resume. Além do evento, os irmãos também são os realizadores do Festival Psica, um dos principais da Amazônia, e que, neste ano, chega à sua 12ª edição. A atração reúne, nos mesmos palcos, nomes famosos e menos conhecidos do mercado musical nacional, privilegiando artistas da cena cultural amazônica.
A cantora e compositora Dona Onete é reconhecida como “rainha do carimbó” e atrai uma legião de fãs da nova geração.
Foto: Adriano Fagundes
Uma mostra da popularidade do brega na cena paulistana tem como protagonistas os DJs Tide e Madruga. Desde 2014, a dupla organiza uma festa quinzenal na maior cidade da América Latina. Nela, centenas de pessoas interessadas no som que toca nas aparelhagens do Pará, e nas vertentes que se espalham pelo Brasil, como o tecnobrega e o brega funk. A festa batizada de Je Treme Mon Amour surgiu como uma iniciativa para integrar ritmos, especialmente o brega, com a proposta de levar música a públicos que não conheciam esse estilo. Idealizada por um grupo que inclui DJs e músicos com forte ligação com a cultura latino-americana, a festa começou quando havia pouca oferta de eventos com esse propósito.
Hoje realizado no Centro da cidade, o evento se destaca pela fusão de diferentes ritmos, experiência que atrai um público crescente, em média de 700 a 900 pessoas por edição. No Carnaval, a festa também se adaptou a um trio elétrico, reunindo centenas de pessoas nas ruas com sons cotidianos da região Norte. Editor de som, produtor musical e um dos responsáveis pela Je Treme, DJ Tide diz que a festa é a oportunidade das pessoas que “já ouviram a música brega no rádio dos porteiros de seus prédios e acharam ruim poderem desconstruir essa ideia”.
Também pesquisador musical, Tide destaca que a produção sonora no Pará chama a atenção pela grande estrutura e facilidade no processo de criação, gravação e divulgação, resultando em um mercado vibrante e diversificado. “A democratização do acesso à tecnologia e às redes sociais permitiu que artistas locais criassem versões inovadoras de músicas internacionais, como no estilo tecnobrega”, comenta.
Viajando o Brasil e o mundo com sua música, Gaby Amarantos enxerga o movimento brega com potencial de crescimento, gerando renda e melhores condições de trabalho para os envolvidos no mercado. Para garantir um cenário cada vez mais favorável, sua aposta é em políticas públicas, algo que considera fundamental. “Precisamos de mais ações concretas para preservar e valorizar o nosso patrimônio cultural”, define. “A iniciativa de declarar o tecnobrega como patrimônio cultural, proposta por uma deputada estadual negra que também veio da periferia, é um grande passo”, emenda. Gaby defende a criação de leis e projetos que valorizem a cultura do tecnobrega. “Imagine o impacto de incluir o tecnobrega no currículo escolar. As crianças e jovens teriam a oportunidade de conhecer a nossa história, a nossa música e os nossos artistas”, destaca.
Parte do trabalho já está sendo visto, garante a artista. Alguns exemplos são as festas juninas com quadrilhas ao som do tecnobrega, além de pessoas dançando carimbó em São Paulo. “Ao valorizar o tecnobrega, estamos celebrando a diversidade cultural do Brasil e fortalecendo a nossa identidade como povo. O tecnobrega é a música brasileira que pulsa na Amazônia, e o mundo precisa conhecê-la”.
Rodolfo Magalhães
Rainha do tecnobrega, a cantora e compositora Gaby Amarantos teve sua obra reconhecida como Patrimônio Cultural e Imaterial do Pará, em setembro deste ano.
Álbum do Selo Sesc e programações no SescTV e no Sesc Vila Mariana celebram fusões entre ritmos regionais e a diversidade da música brega
A pluralidade da música popular presente na cultura brasileira é celebrada em diversas programações do Sesc. Lançado pelo Selo Sesc, o álbum Levadas de Festa reúne o frevo e o maracatu de Pernambuco; o rock e o samba do Rio de Janeiro; o carimbó e o brega do Pará, apresentando o trabalho do maestro Manoel Cordeiro, ícone da guitarra amazônica.
O projeto instrumental é resultado de uma colaboração entre Cordeiro, Alexandre Kassin, Pupillo e Marlon Sette. Segundo Cordeiro, esse disco tem esse espírito festivo, de comunhão e celebração da vida.
Idealizada pelos DJs Tide e Madruga, a festa Je Treme Mon Amour surgiu como uma iniciativa para integrar diferentes ritmos do Brasil, especialmente o brega, e alcançar novos públicos na cidade de São Paulo.
Foto: Lucas Kappaz
Neste mês, o SescTV exibe episódios das séries Passagem de Som e Instrumental Sesc Brasil com Manoel Cordeiro e Sonora Amazônia, num repertório que dialoga com a estética do brega. No Sesc Vila Mariana, o projeto Bregue-se, realizado no mês passado, também celebrou as múltiplas facetas desse movimento musical, que vai da música romântica ao bregafunk. Com ações formativas e shows, o projeto ofereceu reflexões sobre a evolução histórica do brega e suas inúmeras manifestações.
SELO SESC
Levadas de Festa
De Manoel Cordeiro, com Alexandre Kassin, Pupillo e Marlon Sette, esse disco mistura diversos ritmos brasileiros.
Disponível nas principais plataformas de streaming e no Sesc Digital: sesc.digital
SESCTV
Passagem de Som e Instrumental Sesc Brasil – Manoel Cordeiro e Sonora Amazônia
Os episódios apresentam repertório que dialoga com a estética do brega.
Dia 19/11. Terça, a partir das 20h30, em sescsp.org.br/sesctv
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