Por Duda Leite
A cineasta e feminista Nina Menkes é um exemplo vivo de como a indústria cinematográfica de Hollywood pode ser machista e misógina. Apesar de seus filmes terem sido exibidos em diversos festivais pelo mundo, como Sundance, Rotterdam, Berlim e Toronto, foram muito pouco vistos por um público mais amplo. O cinema transcendental de Nina continua sendo uma iguaria para poucos. Entre suas obras estão títulos como “Magdalena Viraga” (1986), “Queen of Diamonds” (1991), e “The Bloody Child” (1996), todos estrelados por Tinka Menkes, irmã de Nina, que a diretora gosta de chamar de co-autora. Seus filmes de ficção são misteriosos, enigmáticos, políticos, flertam com o surrealismo e buscam uma ascese através do sexo e da religião.
Por essas e por outras, a chegada de Brainwashed: Sex Camera Power, na plataforma gratuita Sesc Digital, deve ser celebrada. “Brainwashed” é o sexto filme dirigido por Menkes e seu primeiro documentário. “Todos meus outros filmes vieram de dentro de mim para fora. Esse veio de fora para dentro”, contou a diretora por Zoom, de seu escritório em Los Angeles. “Brainwashed” nasceu de um convite para transformar uma série de palestras que Nina ministrava ao redor do mundo, sobre o famoso “male gaze“, ou seja, “olhar masculino”. Usando cenas de 175 filmes, entre eles clássicos do cinema como “O Desprezo” (1963) de Jean-Luc Godard, “O Touro Indomável” (1980) de Martin Scorsese e “Faça a Coisa Certa” (1989) de Spike Lee, Nina analisa minuciosamente como os cineastas homens – e algumas mulheres – objetificam a figura feminina, causando danos irreparáveis à psique e até mesmo estimulando diferentes tipos de abusos fora das telas.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista com a diretora Nina Menkes.
DUDA LEITE – Seus filmes, apesar de reconhecidos e premiados internacionalmente, são ainda pouco conhecidos fora do restrito circuito dos festivais. Por que acredita que seus filmes continuam sendo pouco vistos?
NINA MENKES – Eu não tenho dúvida de que isso está ligado ao machismo. Eu fui uma estudante da UCLA, onde realizei “Magdalena Viraga“, com apenas U$5.000 em 16mm. Esse filme ganhou o prêmio dos críticos de Los Angeles naquele ano e foi exibido em festivais ao redor do mundo, incluindo Toronto. Na época, eu pensei: “sou bem jovem, fiz esse primeiro filme de sucesso, vou receber vários telefonemas e ofertas para fazer filmes com orçamentos maiores”. Mas não foi o que aconteceu. E o motivo para isso foi a grande discriminação contra mulheres diretoras. O segundo motivo foi o tema do filme, que eu menciono em “Brainwashed”. A maneira como eu filmei a personagem feminina. Ela nunca tira a roupa, nunca é sexualizada. Ela é muito brava e alienada ao mundo. Há nove cenas de sexo em “Magdalena Viraga“, e só vemos o rosto dela. Acho que isso assustou o público. Fizemos uma exibição para o diretor do Festival de Roterdã, que na época era o Hubert Bals, e após quinze minutos de projeção, ele disse: “parem esse filme!”. Existia uma enorme resistência e um ódio contra os filmes dirigidos por mulheres. Mulheres que expressavam seus sentimentos através do cinema eram um grande tabu. Paguei um preço bem alto por isso, mas nunca mudei meu estilo.
DUDA – Você abre “Brainwashed” com uma citação de James Baldwin que diz: “nem tudo pode ser mudado, porém nada vai mudar até que seja encarado”. Você acredita que houve uma mudança na indústria em relação às mulheres nos últimos anos, ou é apenas uma mudança para que tudo permaneça igual?
NINA – Acho que são as duas coisas. As mudanças começaram em 2015, com Maria Giese, que está no filme. Foi ela quem começou as mudanças, quando ela levou os resultados das estatísticas das mulheres em Hollywood, para a ACLU (American Civil Liberties Union), uma organização muito poderosa de direitos civis nos Estados Unidos. Ela mostrou as estatísticas e eles ficaram chocados. Eles levaram os dados para o Governo Federal, que por sua vez, levaram para o comitê de Oportunidades Igualitárias no trabalho. E como as estatísticas eram tão extremas, e mostravam como Hollywood estava trabalhando com uma discriminação severa de oportunidades de trabalho, eles optaram por negociações fechadas com os estúdios em 2015. Foi um pouco decepcionante que o Governo Federal optou por não processar os estúdios, pois dessa forma o caso teria se tornado público. Houve uma grande pressão para que isso não ocorresse. Eles optaram pelas negociações em sigilo. Basicamente o governo ameaçou os estúdios com multas de milhões de dólares por discriminação de gênero, caso eles não mudassem seu processo de contratação. Foi isso que começou a mudança. E, pouco tempo depois, em 2017, surgiu o movimento do Me Too, que veio na rebarba da ação de Maria. Sem esse processo contra os estúdios, não creio que o Me Too teria acontecido. Portanto, a combinação dessas duas ações causaram uma mudança concreta na indústria. E agora, temos um filme como “Barbie“, dirigido por uma mulher, com conteúdo feminista, quer você goste ou não. Sem dúvida é o primeiro blockbuster hollywoodiano abertamente feminista. E acaba de se tornar a maior bilheteria da história da Warner. Isso é uma mudança concreta. Por outro lado, o segundo maior filme da temporada “Oppenheimer” tem um elenco só de homens, e só há duas mulheres, que estão peladas boa parte do filme. Portanto, nem tudo mudou. Mas só o fato de eu ter conseguido dinheiro para filmar “Brainwashed” já é uma prova dessa mudança.
DUDA – O que você achou de “Barbie“?
NINA – Eu não amei o filme, por vários motivos. Achei bobo, divertido em alguns momentos, mas não fez minha cabeça. Acho que é um filme feminsita, porém você tem Margot Robbie como a Barbie perfeita, e todo mundo quer ser a Margot Robbie. Todo mundo quer ser rico e lindo. E a Margot recebeu U$50 milhões pelo filme. Mas é claro que eu prefiro que “Barbie” tenha ficado no topo das bilheterias, em vez de “Oppenheimer“. “Barbie” mostra que o feminismo pode ser algo desejado pelo público. Existe um grande público para o filme, e que aceitou a mensagem do filme. Um público que está cansado de só ver filmes de guerra com homens. Porém, “Barbie” perpetua ideias capitalistas. Outra questão que acho relevante, é que a Mattel está evidentemente vendendo milhões de bonecas Barbie, que são feitas de plástico, e estão contribuindo com o aquecimento global. Por que a Mattel não pensou em criar bonecas biodegradáveis, que poderiam durar um ano, e em seguida se desintegrariam?
DUDA – Como surgiu a ideia de transformar suas palestras sobre o “olhar masculino” no filme “Brainwashed”?
NINA – Após esses dois movimentos que eu citei, eu costumava ministrar para meus alunos um seminário sobre o olhar masculino, com talvez dez cenas como exemplo. De repente, surgiu um grande interesse pelo tema e fui convidada a dar minha palestra em festivais e instituições como Roterdã, o BFI (British Film Institute) em Londres e o AIF Festival em Los Angeles. E as pessoas ficavam muito animadas com minha apresentação. As pessoas chegavam para mim e diziam: “você tem que transformar isso em um filme”. Portanto, foi um processo bem diferente dos meus outros filmes, que eram bem intimistas, espirituais e que vinham de dentro de mim, para fora. Esse filme foi o contrário: veio de fora pra dentro. E é um filme, digamos, bastante concreto. É completamente diferente dos meus outros filmes. Eu apresentei a ideia para Tim Disney, e ele amou a ideia. Ele e suas duas irmãs, Abigail e Susan Disney entraram como investidores e o filme aconteceu.
DUDA – Curioso esse ser um filme “Disney”.
NINA – Sim, mas eles não têm nenhuma ligação com a corporação que atualmente cuida dos negócios da sua família.
DUDA – Você usou 175 clipes de filmes em “Brainwashed”. Como foi esse processo de escolha das cenas?
NINA – Foi bem difícil. Eu queria incluir umas 600 cenas, mas tivemos que optar por essas 175. A escolha foi muito baseada em qual seria o melhor exemplo para cada tema. E quais cenas levariam a história adiante. A estrutura desse filme foi bastante complexa, porque tínhamos as entrevistas, as cenas que poderíamos usar, foram várias razões pelas quais escolhemos essas cenas. Mas não foi por falta de cenas, ao contrário, senão o filme duraria 4 horas!
DUDA – Uma das entrevistadas diz em certo momento que o filme não deve ser levado de forma literal, ou seja, que ainda podemos assistir aos filmes analisados com um certo prazer. Você investiga filmes considerados obras-primas como “A Dama de Shanghai” (1947) de Orson Welles, ou “O Desprezo” de Godard, entre tantos outros. Qual sua posição a esse respeito?
NINA – Eu sou contra a cultura do cancelamento. Nunca direi para queimar um livro ou um filme. Jamais. Para mim o importante é ter essa compreensão. Por exemplo, “E o vento levou” (1939) foi considerado um dos grandes filmes da história por muito tempo, mas com o tempo, entendemos o que o filme dizia sobre o racismo, e que o filme perpetuava aquilo. Então, hoje ainda podemos ver “E o vento levou“, mas quando o filme é exibido mencionamos “estamos exibindo esse filme, porém entendemos que é um filme onde há racismo e isso faz parte do filme”. Da mesma forma, você pode assistir a “O Touro Indomável” e dizer que é um filme poderoso, mas que está perpetuando o olhar masculino, ao mesmo tempo que pretende ser uma crítica sobre ele. Portanto, minha posição é ter o conhecimento, mas não cancelar os filmes.
DUDA – No filme, você usa dois exemplos de mulheres cineastas que têm o “olhar masculino”: Sofia Coppola e Kathryn Bigelow. Seria possível encontrar diretores homens com, digamos, um “olhar feminino”?
NINA – Em quem você está pensando?
DUDA – Em Rainer Werner Fassbinder e Pedro Almodóvar, por exemplo.
NINA – Eu digo no filme que o chamado “olhar masculino” – que é um conceito cunhado por Laura Mulvey que também está no filme – descreve uma forma monolítica de olhar. Não importa se você é um cineasta homem ou mulher, não importa a década que o filme foi feito, não importa o contexto. São fórmulas que se repetem. Elas deveriam ser originais, mas estão sempre se repetindo. É quase como uma lei. Porém, não gosto da expressão “olhar feminino”. Não dá para dizer que é algo tão monolítico. O que eu busco é um “olhar individual”, onde cada cineasta possa trazer sua poética e sua visão individual. Mas se você está se referindo a filmar mulheres como temas e não como objetos, sim, é possível encontrar em filmes como “Era uma vez em Tóquio” (1953) de Yasujiro Ozu. Um dos meus filmes favoritos. Ou também em Fassbinder. Almodóvar traz um olhar interessante, porque ele normalmente filma seus atores homens, principalmente os homens queer, como se fossem mulheres. Ambos os cineastas que você citou são gays. Então, quando temos homens supostamente “feminilizados”, eles podem filmar como uma mulher. Tínhamos uma parte do filme dedicada a isso, mas achamos que era fugir muito do tema central. Portanto, sim, existem alguns homens gays e não gays, como era o caso do Ozu, que filmam mulheres como pessoas.
DUDA – Nos seus primeiros filmes de ficção, você lidava bastante com a alienação da sociedade e a solidão. De onde você acredita que vieram esses temas?
NINA – Eu sempre achei que vinha do fato de ser mulher. Desde o início eu sabia que tinha talento. E que estava fazendo bons filmes, portanto achava que o mundo me receberia bem. E que me dariam dinheiro e me mandariam para Cannes. Mas isso nunca aconteceu. Então fui me tornando cada vez mais brava e alienada. Mas em 1996 ou 97, fui convidada para uma retrospectiva dos meus filmes em Viena, na Áustria. E, a curadora chefe me fez a mesma pergunta: “de onde vinham toda essa tristeza e alienação”. Eu respondi que era tudo feminismo. Mas ela me disse: “você não acha que essa tristeza e alienação não tem ligação com a história da sua família?” Minha família havia conseguido escapar dos nazistas em Berlim e fugiram para Jerusalém. Meu pai conseguiu escapar, mas sua família foi toda morta nos campos de concentração na Áustria. De repente, eu fiquei chocada. Eu nunca havia pensado nisso de forma consciente, mas era evidente que ela tinha razão. Era algo que estava no meu DNA. Portanto eu acho que é uma combinação de feminismo e holocausto. Curiosamente, fui assistir a “Jeanne Dielman” (1975), o filme de Chantal Akerman, dois anos após dirigir “Magdalena Viraga“, lançado em 1986. Quando eu vi o filme de Chantal em uma sala de cinema de arte em Los Angeles, fiquei chocada com as semelhanças entre os dois filmes. Bom, mas pensei: é claro. Ela é uma feminista e sua família sobreviveu ao holocasuto. Eram elementos comuns a nós duas. É interessante porque essa combinação cria essa terrível solidão e alienação. E, claro, Chantal, cometeu o suicídio. Eu acredito que poderia ter cometido em algum momento. Não sei porque, mas não cometi. Porém, sim, eu acredito que essa terrível combinação de solidão vem daí.
DUDA – Quais são seus próximos projetos?
NINA – Estou com dois roteiros prontos. Um deles é Minotauro Rex, com o qual participei de um workshop em Locarno, e conheci alguns produtores poderosos que se interessaram. É baseado no mito do Minotauro, mas é uma fábula política que lida com a questão da Palestina e Israel. E tenho um outro que é mais parecido com meus outros filmes, chamado “Heatstroke“, sobre duas irmãs, tema que também aparece em “Phantom Love”, e em “Magdalena Viraga“. Também estou desenvolvendo uma série baseada em “Brainwashed“. Esses são meus três próximos projetos.
BRAINWASHED: SEX-CAMERA-POWER
Dir.: Nina Menkes | EUA | 2022 | 107 min | Documentário | 14 anos
Em “Brainwashed: Sex-Camera-Power”, a diretora Nina Menkes mostra a jornada reveladora pela política de gênero do design de cenas nos filmes. Usando mais de 175 clipes de filmes, bem como entrevistas com cineastas e acadêmicos, “Brainwashed” revela uma estrutura sinistra de misoginia e paternalismo que, desde o início do cinema até os dias atuais, se infiltra em alguns de nossos filmes favoritos.
Assista gratuitamente em sescsp.org.br/cinemaemcasa
Disponível até 23.02.2023
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