O jornalista, a freira e o banco 

02/01/2025

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Por Hada Maller 

Ilustrações Izabela Bombo 

Leia a edição de JANEIRO/25 da Revista E na íntegra

Goioerê, uma cidade pequena no interior do noroeste do Paraná, tinha 30 mil habitantes reunidos em um ambiente tão pacato quanto as novidades no jornal que Suzano distribuía religiosamente às 5h pelo comércio. Quem morreu, quem nasceu, quem se casou, quem viajou. Qual empresa precisa de novos funcionários e qual decretou falência. Como anda o comércio e quantas safras de milho já foram doadas para a festa da cidade. Quando será a próxima corrida beneficente. Como pode o prefeito não se pronunciar sobre os presos que invadiram a escola. Tudo estava lá.  

Se tudo desse certo, ele terminaria os estudos e ingressaria na graduação de jornalismo. O plano era muito simples: estudar, estagiar no jornal do seu Bento como escritor e fotógrafo, se formar e se tornar o editor do periódico. Mas, para isso, ele precisava terminar de entregar os papéis do dia antes que os comerciantes chegassem nas lojas.  

A cidade tinha quatro ruas principais: a das farmácias, a do mercado grande, a das lojas de roupa e a dos bancos. Só faltava a última para que seu trabalho do dia estivesse completo. Depois, voltaria para casa, tomaria um banho e seguiria para a escola. Quando a bicicleta virou a esquina, ele freou. Uma movimentação esquisita no Banco do Brasil o fez parar para olhar, juntos aos curiosos.  

– Que é que tá acontecendo ali? – perguntou para uma senhora que se apoiava em uma vassoura em frente à sua casa.  

– Tem uns bandidos fazendo um povo de refém lá dentro.  

– Essas horas? – disse olhando o horário no celular.  

– Tá desde madrugada, mas o cara que faz a negociação tava dormindo até agora há pouco. Acho que ele já deve estar chegando, olha lá o carro da polícia – apontou para uma viatura a toda velocidade.  

Rapidamente, o menino sacou o celular e fez algumas fotos da movimentação. Largou a bicicleta na frente da casa da senhora e começou a caminhar em direção ao banco. Um segurança fez menção de barrar a aproximação do menino:  

– Pode não, menino, tá maluco?  

– Mas eu tenho que entregar seis jornais aí senão não recebo meu pagamento – respondeu segurando a resma que continha as folhas.  

Enquanto o segurança pensava, o menino pôde enxergar melhor a situação. A entrada principal do banco dava para dois acessos: à esquerda, um vidro possibilitava a visão dos caixas eletrônicos, e à direita, as persianas fechadas obstruíam a vista de outra sala. E do sequestro.  

– Deixa comigo e rapa daqui – concluiu o segurança tomando os jornais da mão de Suzano.  

Durante todo o seu trajeto de volta para a bicicleta, não desgrudou os olhos da persiana. Até que uma delas foi levemente abaixada e surgiu um olho. Coisa de segundos, e sumiu.  

A viatura já havia estacionado e de dentro saíram quatro policiais armados, um deles segurava um megafone. Por ele, tentava comunicação com os bandidos, em busca de um acordo. Além disso, pediu para que os sequestradores anotassem um número de telefone, ato muito comum na época, para que a negociação seguisse via ligação.  

Suzano pegou sua bicicleta, terminou de entregar os jornais que faltavam na rua e voltou à sede para receber seu pagamento. Chegando lá, contou tudo que viu ao seu Bento. Ofegante, disse que estava acontecendo o sequestro do ano, do século, do milênio. O chefe prontamente lhe entregou uma câmera e um crachá de credencial de imprensa, e o mandou voltar ao local do crime.  

– Mas eu tenho que ir para a escola – contestou Suzano.  

– Você vai aprender muito mais com isso. Bora lá que o Jonas tá de atestado, você me ajuda e a gente faz essa matéria – disse o editor já saindo em direção ao carro.  

Quando chegaram, a multidão já havia se aglomerado. Rapidamente, seu Bento foi falar com o chefe da polícia, aquele que estava com o megafone, e voltou com as informações principais: havia três bandidos e quatro reféns. O que os sequestradores queriam? Uma forma de escapar com armas e dinheiro de forma segura. Assim, todos os reféns seriam liberados. Enquanto Suzano tirava as fotos, dessa vez com câmera profissional, pensava em como aquilo seria bom para seu portfólio. Logo, conseguiria o estágio com seu Bento e poderia fazer aquilo todo dia – claro que demorou algum tempo até Suzano perceber que aquela situação era atípica na cidade.  

Após algumas horas, os bandidos já tinham tudo que precisavam: um carro, capas que cobririam eles e os dois reféns e gasolina extra no porta-malas. O objetivo era que eles se cobrissem para evitar que a polícia os enganassem e atirassem no percurso até o veículo, afinal, eles não arriscariam a vida dos reféns remanescentes. Amarraram os outros dois inocentes dentro da agência, se vestiram com as capas passadas pela janela e, no percurso, os policiais reconheceram um dos bandidos pelos calçados: um par de chuteiras coloridas. Quando ouviram o ecoar da bala, rapidamente voltaram para a agência do Banco do Brasil.  

Os curiosos, que até então prendiam a respiração, soltaram murmúrios e lamentações.  

– Mas esse policial é muito burro mesmo, né?  

– Tava na cara que isso ia acontecer.  

– Tem que ser muito otário para acreditar em polícia.  

– Tem que ser muito otário para acreditar em bandido, isso sim.  

Suzano ouvia tudo sem prestar atenção, afinal, estava absorto demais em sua própria felicidade: aqueles cliques poderiam ir até para o Jornal Nacional! Sua mãe ficaria tão orgulhosa. Esfregaria na cara do irmão.  

O que poderia ter durado algumas horas se transformou no sequestro mais longo que o Brasil já presenciou. Os bandidos não confiavam mais na palavra da polícia, que estava sendo pressionada pelos políticos para acabar logo aquele circo. Já passavam cinco dias sem novidades, exceto uma freira que se compadeceu com os reféns e se disponibilizou para levar água e comida para os que estavam dentro do banco. Irmã Letícia fazia esse vaivém com suplementos, produtos de higiene, comidas e bebidas, sempre com um sorriso no rosto.  

No sexto dia, perguntou ao ladrão se poderia rezar para ele. Em voz alta, começou o Pai Nosso com todos os presentes, que já tinham se dissipado após as incontáveis horas. Suzano, que já havia arranjado briga com a mãe por estar plantado dia e noite em frente ao banco, abaixou a cabeça em sinal de respeito, pois a família nunca foi de ir à igreja. No fim da oração, o bandido entregou uma pistola à Irmã Letícia, como sinal de paz. Poderiam dar um fim naquilo. E Suzano tinha o clique de seus sonhos: a freira com uma arma na mão. Com certeza sairia em todos os jornais do país, afinal, se o leitor não se atentasse, poderia interpretar de maneira equivocada.  

Com isso, o plano estava orquestrado: trocaria os dois reféns por Irmã Letícia, que levaria um carro blindado até a porta do banco. Ela mesma guardaria o dinheiro roubado e as armas, e ajudaria os criminosos a entrarem no veículo. Em seguida, seguiriam até um helicóptero, pilotado por alguém de confiança da freira, que os levaria até um lugar que eles decidissem na hora, sem chances de a polícia alcançar. A religiosa os acompanharia em todo o trajeto, e se os policiais sequer pensassem em fazer algo, sua vida estaria em risco.  

Como o combinado não sai caro – exceto para o banco –, tudo foi feito de acordo com o trato. Irmã Letícia e o piloto voltariam logo em seguida, jurando por Deus e o mundo que nunca contariam o paradeiro dos homens.  

– Nós confiamos em Deus e na salvação dos nossos irmãos – disse a freira aos jornalistas do local, antes de embarcar no helicóptero.  

Após a decolagem, Suzano finalmente foi para casa descansar. Mas sabia que logo pela manhã deveria estar no jornal para saber das novidades que a freira traria para casa. Depois de um bom banho e uma lasanha à bolonhesa que sua mãe havia preparado para o jornalista mirim, ele mostrou a toda a família as fotos em sua câmera.  

Na manhã seguinte, seu Bento o abordou assim que chegou ao emprego. Contou que foi até a igreja colher mais informações sobre Irmã Letícia. Acontece que ninguém lá a conhecia. Nem sequer o padre, que era próximo de todos. A freira não voltou, nem naquele dia, nem nunca mais.  

Foi assim que Goioerê ficou nacionalmente conhecida como a cidade enganada por uma freira.  

*esse texto foi baseado em uma história real, mas não se compromete com a verdade.  

  • Hada Maller é escritora e designer. Formada em comunicação e multimeios pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), foi finalista do Prêmio Jabuti, na categoria contos, com seu livro A ilha dos sentimentos perdidos (Selo Jovem, 2018).  
  • Izabela Bombo é artista visual dedicada à ilustração, com trabalhos que exploram a essência do cotidiano. A simplicidade de detalhes e o minimalismo são o eixo de sua obra, percorrendo temas que vão desde a cultura pop até política, identidade e gênero.  

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