O legado da cantora brasileira Leny Eversong, que conquistou palcos mundo afora, mas segue desconhecida no próprio país
Por Manuela Ferreira
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Ser uma estrela cadente cruzar os céus é um momento que, de tão inusual, costuma emocionar o espectador. Estes corpos siderais são meteoros que, ao entrar na atmosfera terrestre, deslocam-se em alta velocidade, em combustão, deixando um rastro de brilho para trás. É preciso um olhar atento, uma noite clara e alguma sorte para avistá-los: o rasgo de luz move-se por segundos, vertiginoso, a ponto de causar dúvidas sobre a natureza do que se viu. Os eventos que fundamentam a vida de uma pessoa podem se assemelhar ao fenômeno, às vezes pela singularidade, outras pela beleza ou brevidade. Na música brasileira, a trajetória de uma cantora extraordinária esteve apagada por muito tempo, tal qual a matéria estelar dispersa no cosmos após atravessar o horizonte. Seu nome: Leny Eversong (1920-1984), um sucesso radiofônico dos anos 1950 e cuja fama, enquanto artista brasileira nos Estados Unidos, poderia ser equiparada apenas à da cantora e atriz Carmen Miranda (1909-1955).
Coube ao escritor, jornalista, historiador e crítico musical Rodrigo Faour investigar a trajetória da artista e homenageá-la no recém-lançado A incrível história de Leny Eversong ou A cantora que o Brasil esqueceu (Edições Sesc São Paulo, 2023). Na obra, Faour redimensiona o apogeu e o declínio de uma estrela ainda pouco conhecida em seu próprio país – e dona de uma biografia marcada por tragédias e proezas. “Nunca ouvi uma voz feminina de tamanha amplitude na história de nossa música popular. Também salta aos ouvidos a musicalidade dela: uma mulher que não falava nenhuma língua, além do português, e que conseguia cantar perfeitamente em inglês, francês, espanhol e italiano, é algo impressionante”, destaca Faour. Segundo o biógrafo, Leny recebeu críticas positivas nos Estados Unidos e na França, algo que poucos artistas estrangeiros conseguiram. “Dentre os brasileiros, nunca vi uma cantora ser comparada em nível de excelência a ícones deles, como Billie Holiday (1915-1959). Leny cantou nos palcos de um dos maiores cassinos de Las Vegas, enquanto Sarah Vaughan (1924-1990) e a orquestra de Count Basie (1904-1984) atuavam em palcos menores, no foyer dos cassinos”, detalha o autor.
Leny pertence a uma geração de intérpretes brasileiros de voz marcante que se criaram na chamada Era do Rádio, na qual se incluem nomes como Angela Maria (1929-2018), Cauby Peixoto (1931-2016), Dolores Duran (1930-1959) e Claudette Soares (1937-), sobre quem Faour também já escreveu. “Em cada livro, escolhi um enfoque. No da Leny, entendi que, embora fosse dessa mesma época, ela não foi uma típica cantora de rádio, pois seu sucesso retumbante não foi exatamente no rádio, mas muito nos palcos internacionais e na televisão, ainda que a alavanca tenha sido sua participação na inauguração da Rádio Mundial do Rio de Janeiro, em 1955, cidade onde realmente as coisas aconteciam artística e culturalmente”, analisa. Segundo o pesquisador, Leny Eversong é difícil de ser classificada por permanecer fora dos padrões, sejam eles vocais, corporais, estéticos ou musicais. “Ela passou por vários estilos e, de raspão, em alguns movimentos musicais, além de ter feito cinema, teatro e TV, equilibrando-se entre a cantora e a atriz bissexta que também foi”, ressalta.
Hilda Campos Soares da Silva (nome de batismo de Leny) nasceu em Santos, no litoral paulista, e cantava desde os 12 anos na Rádio Clube Santista. Adolescente, ficou órfã e, aos quinze, casou-se. “Por volta de 1935, conheceu Carlos Baccarat, gerente da Rádio Atlântica de Santos, que lhe daria sua identidade artística. E Hilda Campos foi rebatizada de Leny ‘Eversong’ – literalmente, ‘sempre canção’ [em tradução para o português]. Nessa fase, mesmo já entoando seus foxes, queria mesmo era ser cantora de ópera, mas ele [Baccarat] a convenceu de que ela morreria de fome se optasse por tal carreira, porque o canto lírico era algo muito elitista naquela época e uma atividade promissora apenas para moças da alta sociedade que pudessem incrementar os estudos na Europa ou nos Estados Unidos”, escreveu Faour em seu livro. “[A cantora] Inezita Barroso (1925-2015) também a considerava ‘uma das vozes mais lindas do Brasil’ e uma pessoa ‘muito querida, sem frescura – não era chata!’. Trabalharam na mesma emissora (Rádio Nacional de São Paulo) e num show coletivo em 1955. A voz dela empolgava quando cantava ‘Babalu’ (1958), bem antes de Angela Maria gravar”, relatou o jornalista.
A artista demorou para conquistar a fama. Ancorou no Rio de Janeiro em 1937, cantou na Rádio Tupi e no Cassino da Urca, mas voltaria para São Paulo pouco depois. Foi crooner de orquestras e, até 1951, cantava apenas em inglês – ainda que não dominasse a língua. Quando chegou aos EUA, já era uma das cantoras brasileiras do rádio mais bem pagas. Lotou temporadas em casas de espetáculos e, na televisão estadunidense, fez uma histórica participação no programa The Ed Sullivan Show, em 1957. Suas interpretações eram intercaladas com apresentações do cantor e compositor Elvis Presley (1935-1977), à época um jovem roqueiro em ascensão. Leny também encantou plateias na França, Argentina, Chile e Cuba, entre outros países. Foram mais de 700 shows no exterior.
“O fato de cantar em vários idiomas e de ter feito mais sucesso com músicas em outras línguas também a fazia diferente. Por isso, resolvi problematizar questões como o nacionalismo da imprensa e da intelectualidade da época, que não achava seu trabalho tão ‘brasileiro’ ou digno de comparação a outros que cantavam ritmos da terra e em nosso idioma, e a gordofobia que ela sofreu, para além dessa, digamos, dificuldade de classificação do seu legado”, reflete Rodrigo Faour. Em gravações como “Jezebel” (1957) e “Granada” (1955), Leny exibe a plena dimensão de seu alcance vocal, ora flertando com o jazz, ora se aproximando da dramaticidade de uma primadonna. Apesar do talento, da voz poderosa e do sucesso internacional, a vida pessoal da artista se sobrepôs à carreira em momentos significativos.
Era julho de 1941 quando teve seu único filho, Álvaro Augusto de Campos Filgueiras. Traída pelo marido, optou pela separação – no processo, perderia a guarda do menino, que pôde visitar a mãe apenas uma vez por mês, ao longo dos sete anos seguintes. “Ela chegou a ser considerada a mulher mais bonita de Santos. Era, inclusive, esportista. Praticou arremesso de peso, além de vôlei, na posição de levantadora no Vasco da Gama de Santos”, narrou Faour em seu livro. Aos 21 anos, o biógrafo conta que Leny teve um desequilíbrio hormonal e engordou muito. “Por volta dos 30 anos, passou a usar os cabelos oxigenados, ornando um belo rosto, de sorriso cativante. Era uma figura que chamava a atenção”, escreveu o autor.
A beleza e a vivacidade que Leny exibia, no entanto, ocupariam menos espaço na imprensa da época frente às críticas ao seu físico, algo que, segundo o escritor, contribuiu para o apagamento da história da cantora. “Basta fazer um levantamento das atrizes, vedetes e cantoras que se celebrizaram no século 20. Se não sofressem por fatores estéticos, isso era compensado pela incompreensão, ciúme ou sabotagem de seus maridos, namorados e empresários. No caso de Leny, um corpo gordo como o dela era muito incômodo. Os cronistas – tanto homens, na maioria, mas também algumas mulheres – não conseguiam puramente elogiar o trabalho dela sem fazer alusão à gordura. Ela, por sua vez, entrava na brincadeira (de mau gosto) porque se não o fizesse, falariam da mesma maneira, o que acabou se tornando uma espécie de marketing perverso”, explica o jornalista.
Em agosto de 1973, Leny sofreria outro profundo baque. Seu segundo marido, Francisco Luís Campos Soares da Silva, desapareceu sem deixar pistas enquanto viajava de carro da capital para o litoral paulista. O corpo jamais foi oficialmente encontrado ou reconhecido. Acredita-se que ele tenha sido assassinado por agentes da ditadura militar ao ser confundido com um sindicalista. Tomada pela tristeza, e com graves problemas de saúde, a cantora afastou-se dos palcos definitivamente, em 1978. O desaparecimento do marido traria uma adicional dificuldade à cantora. Impossibilitada de comprovar o óbito, também não podia movimentar as economias que reuniu ao longo da carreira, administradas em conjunto com o marido.
Leny nunca quis morar nos Estados Unidos e, muito apegada ao filho, não se dispôs a abraçar a rotina cansativa de turnês internacionais. “Todos os artistas brasileiros que conseguiram fixar seu nome naquele mercado – e consequentemente, estendendo-o por outras praças europeias e asiáticas – sempre precisaram morar um bom tempo por lá. Foi assim com Carmen Miranda, depois com Tom Jobim (1927-1994), João Gilberto (1931-2019), Sergio Mendes e outros. Anitta atualmente está tentando, por isso mora lá”, analisa Faour. Mesmo assim, a cantora chegou onde poucos artistas brasileiros chegaram. E, com sua voz e talento, cruzou o céu deixando, para sempre, um rastro de luz.
A incrível história de Leny Eversong é fruto de três décadas de investigação sobre a cantora brasileira
O argumento que originou a recém-lançada biografia A incrível história de Leny Eversong ou A cantora que o Brasil esqueceu (Edições Sesc São Paulo, 2023) é resultado do arrebatamento que Rodrigo Faour experimentou ao ouvir a cantora pela primeira vez, no início dos anos 1990, quando ainda era estudante de jornalismo. “Tudo aconteceu por acaso, quando um colega de curso me deu uma fita cassete para que eu gravasse por cima algumas canções para um trabalho. Na capa da fita estava escrito ‘Sereno – Leny Eversong’. Como sempre via esse nome americanizado de cantora, tão diferente no meio de tantos outros, quando folheava a Enciclopédia da Música Brasileira que minha mãe tinha em casa, resolvi ouvir a fita antes de qualquer coisa. Encantado com a sua voz portentosa, telefonei para o historiador Jairo Severiano (1927-2022), que me disse se tratar de uma grande intérprete e me copiou também em fita dois álbuns da cantora”, recordou no livro.
Nessa altura, Faour tinha apenas 20 anos de idade e, desde então, passou a colecionar tudo o que achava sobre a cantora – revistas, fotos, discos etc. O livro lançado agora é uma adaptação de sua dissertação de mestrado, defendida em 2020 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e joga luz, ainda, sobre as lacunas que ficaram de fora da grande maioria dos estudos da música popular feitos até o momento, segundo o escritor. “Com todos os percalços, uma cantora brasileira ter conseguido chegar aonde chegou, notada por Elvis Presley, Frank Sinatra (1915-1998), Sammy Davis Jr. (1925-1990) – e tudo isso sem falar inglês –, ela realmente não pode ser apagada da história”, arremata.
EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
A incrível história de Leny Eversong ou A cantora que o Brasil esqueceu (2023), de Rodrigo Faour
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