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No mesmo ano em que lançaria uma das obras seminais sobre a formação do país – O povo brasileiro (1995), o antropólogo e então senador Darcy Ribeiro (1922-1997) esteve no programa Diálogos Impertinentes, da TV PUC, apresentado pelo filósofo Mario Sérgio Cortella. De maneira bem-humorada, como de costume em entrevistas, Darcy Ribeiro disse: “Por todos os lados: em cima e embaixo [sou utópico]. Porque quem tem um país para fazer, desse tamanho, que tem potencialidades imensas, se não prefigurar na cabeça o que vai ser, se não inventar o país que há de ser, o país nunca vai dar certo. Nós já temos séculos de erros e absurdos porque outros pensaram o Brasil para nós”. Prestes a completar 30 anos, em 2025, a obra O povo brasileiro é resultado da utopia que o estudioso definia como a ação de “inventar o país que você quer”. E assim foi, utópico, em todas as outras iniciativas – como a criação da Universidade de Brasília (UnB), em 1962, junto ao educador Anísio Teixeira (1900-1971).
“Por mais de uma década, participei de muitos de seus projetos na cultura e na educação, e vivenciei sua capacidade de realizar, e sua paixão alucinada pelo Brasil, compartilhando experiências profissionais e uma grande amizade. Ao mesmo tempo, tenho a visão de alguém que segue acreditando na força e na atualidade de muitas de suas ideias, bem como na oportunidade de trazê-las à luz nos difíceis dias de hoje”, reflete a socióloga e cineasta Isa Grinspum Ferraz, que trabalhou junto ao antropólogo, foi curadora da exposição Utopia Brasileira – Darcy Ribeiro 100 anos, realizada no Sesc 24 de Maio, em 2023, e dirigiu a série O povo brasileiro (2000), já exibida pelo SescTV.
Para Marcio Farias, um dos organizadores do livro Darcy Ribeiro: Uma Utopia (Perspectiva, 2024), curador e mediador do curso O povo brasileiro: mestiçagem em questão, disponível no Sesc Digital, o legado de Darcy Ribeiro não está cerrado em livros de história, mas vivo e presente na atualidade. “Enquanto intelectual, foi insurgente, original e provocador, produziu muito e sobre muitos temas ao longo de sua vida. Seus ensaios sobre o papel da universidade na América Latina trazem reflexões que ainda hoje se mantêm pertinentes frente aos desafios da expansão universitária e sobre o papel dessas instituições no mundo contemporâneo”, analisa.
Neste Em Pauta, Ferraz e Farias tecem reflexões e análises sobre o profícuo patrimônio deixado pelo antropólogo, sociólogo, escritor e político Darcy Ribeiro.
Por Isa Grinspum Ferraz
Darcy Ribeiro é um homem controverso. Sua obra pertence a uma certa tradição ensaística brasileira de autores que fizeram leituras amplas sobre a complexidade de nossa formação singular, como Euclides da Cunha (1866-1909), Gilberto Freyre (1900-1987) e Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982). Ao mesmo tempo, Darcy fez parte de uma geração de intelectuais e artistas que acreditavam ser possível construir um projeto cultural e político para o Brasil e para a América Latina destinado a transformar profundamente as estruturas do país e do continente, e a construir um mundo mais justo, plural e alegre.
Sem se filiar a nenhuma escola de pensamento, mas bebendo em muitas fontes e conhecendo em profundidade o país no qual vivia, ele ousou reler com liberdade a história do Brasil e tecer profecias. Para Darcy, fato e mito formam juntos a tessitura do Brasil, e qualquer análise que menospreze esse amálgama será necessariamente incompleta e desinteressante. Assim, ele incorpora em seu discurso, dissonante e heterodoxo, o culto do Espírito Santo, a mestiçagem e uma profunda vontade de beleza – que aprendeu a observar com os povos indígenas, com quem conviveu por mais de dez anos e que estudou em profundidade. Darcy buscava um socialismo moreno que tivesse repercussões profundas na alma brasileira.
Apesar do mundo acadêmico brasileiro – principalmente o paulista – sempre ter olhado com reserva e ceticismo para seu pensamento independente e heterodoxo, sua obra e sua atuação influenciaram toda uma geração de pensadores e criadores nas mais diversas áreas da cultura, tais como Glauber Rocha [cineasta (1939-1981)], Caetano Veloso [músico e escritor] e José Celso Martinez Corrêa [diretor, encenador, ator e dramaturgo (1937-2023)], entre muitos outros.
Minha visão sobre Darcy é a de alguém que, ainda jovem, pôde vê-lo ser o vulcão de ideias e utopias que era, e que pôde acompanhar o seu modo enérgico de atuar. Por mais de uma década, participei de muitos de seus projetos na cultura e na educação, e vivenciei sua capacidade de realizar, e sua paixão alucinada pelo Brasil, compartilhando experiências profissionais e uma grande amizade. Ao mesmo tempo, tenho a visão de alguém que segue acreditando na força e na atualidade de muitas de suas ideias, bem como na oportunidade de trazê-las à luz nos difíceis dias de hoje. Darcy foi um dos principais pilares da minha formação, fundamento presente de forma significativa em todos os museus e documentários que realizei, entre eles a série O povo brasileiro, que criei em 1999 a partir de seu livro de mesmo nome.
Darcy Ribeiro foi um dos grandes intérpretes do Brasil do século 20. Foi antropólogo, educador, homem de ação política, romancista e pensador do Brasil e da América Latina. Deixou uma vasta obra, como os impressionantes Estudos de Antropologia da Civilização (1968) – seis volumes, com quase duas mil páginas – entre muitos outros ensaios e romances, como o clássico Maíra (1976). Participou da criação do revolucionário Parque Nacional do Xingu, junto a Eduardo Galvão e os irmãos Villas-Bôas. Como educador, lutou pela escola pública e gratuita de período integral e de qualidade para todos os brasileiros, que concretizou nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPS), ao lado de Leonel Brizola (1922-2004), então governador do Rio de Janeiro; criou a Universidade de Brasília (UnB) com Anísio Teixeira [educador e jurista (1900-1971)]; e andou pelo continente latino-americano reformando universidades.
Ao longo de sua vida, Darcy fez inúmeros gestos e propostas de inventar um outro país – mais justo e menos desigual, razão de ser de toda a sua vida e obra. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu certa vez: “Darcy é um monstro de entusiasmo que nenhum golpe feroz arrefece, é um ser de esperança e combate.
Num transe de criação e revolta, Darcy viveu sua vida. Revolucionário nas várias áreas onde atuou – “gênio da raça”, como gostava de dizer Glauber Rocha –, ele teve a liberdade rara de inventar-se e reinventar-se em mil faces. Antonio Candido [sociólogo, crítico literário e professor (1918-2017)] afirmou que Darcy foi “uma das grandes inteligências do Brasil de todos os tempos”. Para Anísio Teixeira, ele era “a inteligência do Terceiro Mundo mais autônoma que conheço”.
Darcy valorizava a singular mistura de genes e símbolos de povos e culturas que ocorreu no Brasil – e que não aconteceu de maneira pacífica, ele afirmava. Apostava na força e na originalidade desses encontros e trocas como promessa de um país diverso, tolerante e menos desigual. O Brasil como uma utopia possível. Entre exemplos desse pensamento comprometido está a criação, ao lado do Marechal Cândido Rondon (1865-1958), do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 1953. Tratava-se de uma ação pioneira em um tempo em que os povos indígenas eram considerados selvagens, incivilizados e sem cultura. Também se destacam: seus projetos na educação, que inauguraram novos paradigmas no país; os projetos de reformas de base, como a reforma agrária, que idealizou ao lado do então presidente João Goulart (1919-1976). E, também, a invenção do Sambódromo, a passarela do samba do Carnaval do Rio de Janeiro, que, na verdade, é uma grande escola pública de período integral para centenas de alunos, um enorme CIEP.
Amado e perseguido, respeitado e contestado, Darcy deu aula em grandes universidades pelo mundo e teve suas obras traduzidas em vários países. Por aqui, muitas vezes foi visto como um louco visionário, um intelectual menor que desenhava castelos ao vento, e uma ameaça à segurança pública nos anos de chumbo. Acredito firmemente que seu pensamento segue relevante em um Brasil que ainda expõe as mesmas fraturas profundas de sua formação. Suas lutas são ainda as mesmas de hoje: respeito e valorização dos povos indígenas, educação e cultura de qualidade para todos, combate à desigualdade e reforma agrária.
Por isso, é estimulante e fundamental conhecer suas ideias e a sua obra. E não apenas como notável expressão de uma época profícua da produção intelectual do Brasil, mas também como um horizonte aberto para pensar o país contemporâneo. Pois como diz Caetano Veloso: “vida sem utopia, não entendo que exista”.
Com a palavra, o próprio Darcy: “Tenho um sentido agudo do Brasil como desafio posto a todos. Como promessa de uma nova civilização ecumênica e feliz. Gosto demais de gente. Quero é fartura para todos comerem, para crescerem sadios e manterem seus corpos. Quero boas escolas para a criançada toda, custe o que custar, porque não há nada mais caro que o suceder de gerações marginalizadas pela ignorância. Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, e há de ser, que me dói demais o Brasil que é”.
Por Marcio Farias
A famosa frase do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) que diz: “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”. Essa é uma boa definição para a importância de Darcy Ribeiro. Não bastasse ser autor de ampla produção teórica, era uma pessoa de “fazimentos”, como ele mesmo dizia.
Ao longo da vida, teve uma notória ação pública, exercendo cargos técnicos administrativos, tanto em âmbito nacional, como internacional. Deste modo, foi desde antropólogo do Conselho Nacional de Proteção ao Índio, instituição que à época era comandada por Marechal Rondon, até assessor direto do presidente chileno Salvador Allende (1908-1973). Na esfera da política institucional, foi ministro da Casa Civil, passando por vice-governador do Rio de Janeiro, até o cargo de senador da República, quando elaborou e efetivou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação que ainda hoje vigora.
Enquanto intelectual, foi insurgente, original e provocador, produziu muito e sobre muitos temas ao longo de sua vida. Seus ensaios sobre o papel da universidade na América Latina trazem reflexões que ainda hoje se mantêm pertinentes frente aos desafios da expansão universitária e sobre o papel dessas instituições no mundo contemporâneo. Enquanto antropólogo, o livro O processo civilizatório – etapas da evolução sociocultural (1968) é um dos seus grandes contributos intelectuais, pois sintetiza seu intento em localizar a história do desenvolvimento humano, amplo e desigual, a partir da análise dos processos históricos culturais dos povos originários latino-americanos, inaugurando assim, sua teoria sobre as origens da formação social brasileira.
Desse modo, ao situar a América Latina no processo de evolução tecnológica, social e ideológica humana, dá um passo analítico decisivo na tentativa de superar uma perspectiva histórica de orientação colonial: aquela que, mesmo que pela perspectiva de crítica, tem como premissa o início da história a partir do colonizador, descartando a história dos povos colonizados. Nesse caso, os povos indígenas, mas também os africanos, são compreendidos em seu desenvolvimento histórico-cultural, o que permite a Darcy Ribeiro interpelar a história a partir da reflexão sobre quais eram os patamares de desenvolvimento econômico e tecnológico em que estavam situados os povos indígenas e africanos no início do processo colonial.
Darcy também tem contribuições para uma sociologia latino-americana. Com escritos sobre as características específicas de formação das classes sociais na região, os padrões de dominação e a conformação das instituições sociais modernas, que produziram, segundo ele, uma forma específica de modernidade – países de dinâmicas sociais distintas das que se observam nos centros dinâmicos do capitalismo. Nesse sentido, seus contributos teóricos também o permitem refletir sobre a formação da América Latina e seu desenvolvimento histórico-cultural em relação ao desenvolvimento na Europa e nos Estados Unidos. Frente aos grandes esquemas interpretativos, segundo ele, era preciso convergir as análises das estruturas econômicas com a tessitura do processo histórico. Essa análise era, conforme Darcy, decisiva para qualquer projeto de transformação da realidade brasileira e latino-americana.
Ou seja, era preciso reconhecer que a desigualdade estrutural nos países latino-americanos e no Brasil não tinha origem nas características culturais de seus povos e muito menos uma condição histórica eterna e imutável. A América Latina poderia e deveria seguir caminho próprio na sua independência e em seu desenvolvimento econômico, superando assim, tanto a dependência econômica, como a tentativa de copiar os passos dados pela Europa e pelos Estados Unidos.
Ao longo de décadas, Darcy Ribeiro seguiu entre fazeres e elaborações, quando septuagenário e abatido por um câncer que se generalizava, ainda uniu forças para apresentar aquela que é considerada sua principal obra: O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil, de 1995. Com esse volume, encerrou seu ciclo de Estudos de Antropologia da Civilização, iniciado nos idos dos anos 1960 e que conta com as obras: O Processo Civilizatório (1968); As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos (1970), em que analisou as razões do desenvolvimento desigual da América Saxônica e da América Latina, além dos romances Maíra (1976) e A utopia selvagem (1982). Esse conjunto de obras, incluindo os romances, formam os volumes de sua Teoria Geral do Brasil.
Em seu último livro, O povo brasileiro, Darcy Ribeiro permaneceu fiel à tarefa científica de investigar a natureza da formação nacional. De modo efetivo, também foi um pensador que apoiou seu pensamento prático em visões de mundo que miravam a transformação radical das estruturas sociais. Por isso defendeu um Brasil possível de se fazer melhor e mais bonito. Ou seja, menos desigual e mais diverso. Apesar da intransigência das elites nacionais e internacionais que operam para explorar a terra e o povo.
Grande parte dos temas sociais pelos quais dedicou sua reflexão ainda permanecem como flagelos da sociedade brasileira, mas sob um novo quadro. Justamente por conta do seu esforço e de sua geração, aliados da classe trabalhadora que foram, o povão teve conquistas, nos marcos legais, mas também vivenciaram avanços reais. Há miséria, fome, desigualdade, educação pública cambaleante e tantos outros aspectos sobre os quais debateu Darcy em sua vasta obra, mas há também grandes diferenças do ponto de vista das estruturas de consciência.
A cidadania pelo consumo, a nova ética protestante que dá guarida aos flagelos da alma dos de baixo, a violência urbana e rural, a experiência de um partido de base popular no governo com seus êxitos e frustrações. Todos esses temas no contemporâneo só podem ser analisados, evidentemente, por uma perspectiva interseccional, tal como indicam os avolumados estudos que demonstram, dia após dia, o quão substantivo é o racismo. Nesse sentido, a análise global e totalizante de Darcy deve ser retomada criticamente, não como bússola, mas como referência de possíveis caminhos a serem perseguidos.
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