O legado e a trajetória da intelectual antirracista Lélia Gonzalez (1935-1994)

29/05/2024

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As inestimáveis contribuições do legado de Lélia Gonzalez para o pensamento brasileiro e a luta antirracista

POR MANUELA FERREIRA

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Entre as referências mundiais em estudos de gênero, raça e classe, um nome se destaca e segue, há décadas, promovendo reflexões com seu legado: a brasileira Lélia Gonzalez (1935-1994). Ativista, antropóloga, filósofa, professora e uma das principais autoras do feminismo negro no país, coube a esta mineira de Belo Horizonte ser uma das precursoras nas pesquisas sobre as culturas negras e perspectivas interseccionais.  Seus saberes a levaram a produzir uma obra de impacto dentro e fora da academia, além de ser notória sua intensa atuação política contra o sexismo e o racismo. Cofundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ), do Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga e do Movimento Negro Unificado (MNU), a pensadora é, sobretudo, uma das maiores intérpretes do Brasil.

A relevância do seu legado é tamanha que este chegou a ser enaltecido, em público e em diferentes ocasiões, pela filósofa e ativista estadunidense Angela Davis. Em 2019, durante conferência no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros, por exemplo, Davis declarou: “Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”. A partir deste mês, a trajetória da intelectual brasileira é revisitada pela exposição inédita Lélia em nós: festas populares e amefricanidade, no Sesc Vila Mariana [leia mais em Corpos que celebram].

Bases fortes

Décima sétima filha do ferroviário Acacio Serafim e da empregada doméstica Urcinda d’Almeida, Lélia Gonzalez migrou para o Rio de Janeiro (RJ) menina, quando um dos irmãos, o futebolista Jaime de Almeida (1920-1973), foi convidado a jogar pelo time do Flamengo. Na capital fluminense, a família, de origem pobre, encontrou condições melhores de vida e viu a garota concluir os estudos para, em seguida, ingressar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Antes, entretanto, quase percorreu a mesma trajetória vivida pelos outros irmãos e irmãs, que começaram a trabalhar na infância.

Em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1986, Lélia Gonzalez rememorou a situação.  “Quando criança, eu fui babá de filhinho de madame. Você sabe que criança negra começa a trabalhar muito cedo. Teve um diretor do Flamengo que queria que eu fosse para a casa dele ser uma empregadinha, daquelas que viram cria da casa. Eu reagi muito contra isso, então, o pessoal terminou me trazendo de volta para casa”, contou. A escritora se graduou em história, geografia e filosofia e, à medida em que obtinha os títulos de mestre e doutora, atuou como professora em instituições de ensino nas redes pública e privada. Chefiou o departamento de sociologia e de política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), além de integrar o corpo de docentes da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.

Caminhos e descaminhos

Foi mergulhando nos estudos acadêmicos que Lélia buscou entender as contradições e as marcas da branquitude na sociedade brasileira. Em depoimento publicado no livro Patrulhas ideológicas (1980), de Heloísa Buarque de Holanda, ela recorda: “Passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico brasileiro, porque na medida em que aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra (…). Na faculdade, eu já era uma pessoa de cuca perfeitamente embranquecida, dentro do sistema. Eu fiz filosofia e história. E, a partir daí, começaram as contradições”.

Um importante ponto de inflexão na vida da escritora aconteceu em 1964, enquanto estava na universidade e se casou com o espanhol Luiz Carlos Gonzalez, amigo de faculdade. Durante o breve casamento com o rapaz, branco, viu a tensão provocada pela questão racial tomar grandes proporções. Em artigo publicado em 2021 na revista O Público e o Privado, do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), as pesquisadoras Nilma Alves Adriano e Ana Paula Pires Lourenço analisaram o episódio: “(…) A autora percebeu que, enquanto eles apenas namoravam, a família não problematizava tanto o relacionamento, mas a partir do momento em que Luiz decide assumi-la como sua esposa, o olhar deles para com Lélia mudara de maneira que a família interferiu na relação quando descobriu o casamento, e o casal precisou, então, se afastar mais tarde pela não aceitação dessa união”, escreveram as pesquisadoras.

O luto e a luta

Com a morte de Luiz Carlos Gonzalez, que tirou a própria vida um ano depois do casamento, deprimido pela rejeição familiar vivida pela esposa, Lélia adotou definitivamente seu sobrenome de casada, como uma última homenagem ao amado. “Após o trágico fim de Luiz Carlos, a intelectual se retirou para um tempo de luto em Minas Gerais. Ao final da década, casou-se novamente, mas essa união também não durou muito tempo. Foi nesse contexto de dor causada pelo racismo que a intelectual negra começou a querer compreender com mais profundidade as implicações da questão étnico-racial na vida, e os desdobramentos disso nas variadas relações sociais. Lélia, antes de conhecer Luiz Carlos, não se interessava por política e vivia afastada dos debates sobre os quais passaria a estudar”, descreveram Adriano e Lourenço.

Não demorou para que Lélia Gonzalez integrasse a resistência à ditadura militar (1964-1985). Como consequência, teve suas atividades acompanhadas pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Além disso, organizou protestos de civis contra o apartheid, regime de segregação racial instaurado na África do Sul de 1948 a 1994; atuou em mobilizações pela Constituinte de 1988; e integrou, entre 1985 e 1989, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) – primeiro conselho da condição feminina do Brasil. Nos anos 1980, a pensadora publicou os livros Lugar de negro (1982), em parceria com o escritor argentino Carlos Hasenbalg (1942-2014), e Festas populares no Brasil (1987), além de inúmeros ensaios, artigos, resenhas e reportagens.

À frente, sempre

“Lélia Gonzalez não hierarquizava ações políticas e culturais. Segundo ela, ambas eram relevantes para a transformação social. Em sua trajetória são fartas as experiências e colaborações com grupos culturais, artísticos e intelectuais”, apontou a socióloga e pesquisadora Flávia Rios, em artigo publicado na Enciclopédia Mulheres na Filosofia, projeto da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela explica, no mesmo verbete, que nos anos 1970, por exemplo, Lélia colaborou com o Grêmio Recreativo de Arte Negra e com a Escola de Samba Quilombo, ambos do Rio de Janeiro. A escritora também prestou consultoria para obras teatrais, cinematográficas e celebrou, de perto, a consolidação da cena dos blocos afros e afoxés de Salvador (BA). Além disso, também participou da formação do Colégio Freudiano no Rio de Janeiro e estudou psicanálise, aprofundando-se no pensamento do médico e psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981).

Lélia Gonzalez ainda fez parte do grupo de intelectuais e artistas negros que se reuniam no teatro Opinião, em Copacabana, no Rio de Janeiro, para protestar contra o fechamento dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE). Na mesma década, escreveu tanto para grandes veículos quanto para a imprensa alternativa. Foi uma época de profunda contestação do processo de embranquecimento vivido décadas antes, que a levou a abraçar, também, o candomblé.

Na busca por inserir a cultura negra como elemento central de conscientização política, Lélia também foi candidata a deputada estadual pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Mesmo não eleita, o debate estava dado, com a questão racial ocupando espaço no âmbito partidário, ao passo que as questões de gênero também dialogavam com o movimento negro. Nos fundamentos de sua prática, estava o conceito que seria chamado, anos mais tarde, de interseccionalidade, uma das maiores contribuições de seu legado intelectual e cultural para a luta antirracista.

Quanto a nós, negros, como podemos atingir uma consciência efetiva de nós mesmos enquanto descendentes de africanos se permanecemos prisioneiros, ‘cativos de uma linguagem’ racista? Por isso mesmo, em contraposição aos termos supracitados, eu proponho o de amefricanos (“amefricans”) para designar a todos nós.

Por um feminismo afro-latino-americano, de Lélia Gonzalez (Zahar, 2020, organização de Flávia Rios e Márcia Lima)

Corpos que celebram

Em cartaz no Sesc Vila Mariana, exposição Lélia em nós: festas populares e amefricanidade exalta trajetória da intelectual antirracista

No artigo “Beleza negra, ou: Ora-yê-yê-ô!”, de 1982, Lélia Gonzalez escreveu sobre as expressões populares no carnaval de rua baiano. “E são as jovens negras desses blocos e afoxés que organizam suas respectivas festas, convidando, de preferência, pessoas da comunidade negra que elas consideram credenciadas para escolher, dentre elas, a mais digna representante da beleza negra”. E a própria beleza negra é um dos cinco eixos da exposição Lélia em nós: festas populares e amefricanidade, que abre neste mês e fica em cartaz até novembro, no Sesc Vila Mariana.

Pensada a partir do livro homônimo da autora, relançado pela editora Boitempo para recordar os 30 anos de morte de Lélia Gonzalez, a mostra revisita aspectos marcantes de sua trajetória, a partir de obras de artistas visuais contemporâneos, cujos trabalhos convergem e dialogam com seu pensamento. Com curadoria de Raquel Barreto e Glaucea Britto, a exposição é dividida pelos núcleos “Festas populares”, “Peles negras”, “Máscaras negras”, “Racismo e sexismo na cultura” e “De Palmares às escolas de samba, estamos aí”. O projeto expográfico reúne, ainda, obras de artistas contemporâneos, cujos trabalhos convergem com o pensamento de Lélia.

VILA MARIANA

Lélia em nós: festas populares e amefricanidade

Curadoria de Raquel Barreto e Glaucea Britto

De 26 de junho a 3 de novembro. Terça a sexta, das 10h às 21h. Sábados, das 10h às 20h. Domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS.

sescsp.org.br/vilamariana

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