O PASSADO É UMA CANÇÃO | Depoimento de Sérgio Tréfaut

01/06/2023

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Diretor do documentário Paraíso, Sérgio Tréfaut retrata o encontro entre música, vida e memórias

Por Carolina Vieira Belizario

Leia a edição de junho/23 da Revista E na íntegra

Durante a pandemia de Covid-19, grande parte da população recorreu ao uso de ferramentas tecnológicas para trabalhar, estudar, exercitar-se e até mesmo conviver com outras pessoas. No entanto, para uma parcela dos idosos – cerca de 31 milhões de pessoas, de acordo com o último censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2010 –, as tecnologias são um pouco menos acessíveis e nem sempre suficientes para encurtar a distância entre familiares e amigos.

Habituados aos encontros diários de conversa e cantoria, mulheres e homens idosos que pararam de se ver diariamente nos jardins do Palácio do Catete – antiga sede do governo brasileiro, no Rio de Janeiro (RJ) – tiveram sua história contada no documentário Paraíso (2021), dirigido por Sérgio Tréfaut e lançado pelo SescTV.

O filme, que estreou mundialmente no festival É Tudo Verdade de 2021, mostra como as canções conquistaram lugar de afeto durante a rotina de pessoas obrigadas a vivenciar o isolamento. A produção é também um convite à celebração da vida e ao respeito à história da população com mais de 60 anos, que enfrenta preconceitos, violência e privação de direitos. “Queria um retrato coletivo de solidão e paixão pelas canções que se transformam em alimento afetivo, como é a vida de tantos brasileiros”, conta o cineasta. 

Paulistano, filho de pai português e mãe francesa, Tréfaut precisou lidar desde a infância com as mudanças de continente, em razão do exílio da família durante os anos de sistemas políticos ditatoriais que assolaram tanto Brasil quanto Portugal. Talvez, conhecer vários lugares e vivenciar culturas diversas fez com que o diretor decidisse contar histórias de outras pessoas mundo afora. Neste Depoimento, Tréfaut fala sobre Paraíso, sua relação com o Brasil e a paixão pelo cinema.

isolamento

Paraíso é um filme que retrata a população idosa que vive no Rio de Janeiro às vésperas da pandemia. São mulheres e homens que se reúnem todos os dias para cantar – sobretudo antigas canções de amor – nos jardins do Palácio do Catete. Estes “entusiásticos” amadores têm entre 80 e 100 anos de idade, e desde o momento em que se levantam, começam a pensar no que vão cantar nas serestas. Para vários deles, aquele encontro musical é o que dá razão e alegria à vida.  As filmagens foram interrompidas em março de 2020, quando os jardins foram fechados. Todos se trancaram em casa. As pessoas que filmamos em 2019 fizeram parte das primeiras vítimas de Covid-19. O filme pretendia retratar uma ilha de felicidade e nostalgia dentro de uma sociedade cada vez mais violenta, mas acabou sendo uma homenagem a uma população dizimada – vítima também da crueldade ocorrida nos últimos anos.

anonimato

Escolher personagens e contar boas histórias em um documentário requer que eles tenham aquilo que se costuma chamar de star quality: podem ser anônimos, podem ser feirantes, caminhoneiros, donas de casa, funcionários de escritório, médicos, mas quando olhamos e ouvimos como se exprimem, reconhecemos o carisma de grandes personagens. No jardim do Catete, encontrei muitas pessoas assim, fascinantes. Mas eu não queria fazer uma reportagem que contasse a história de cada uma delas. Queria um retrato coletivo de solidão e paixão pelas canções que se transformam em alimento afetivo, como é a vida de tantos brasileiros.

universos

Fazer um documentário ou optar por uma ficção implica, normalmente, numa enorme diferença de escala de produção [orçamento, equipe e modos de trabalho]. O documentário costuma mergulhar num universo pré-existente que desejamos retratar, com recursos bastante limitados. A ficção, mesmo quando filmada fora de estúdio, ambientada em verdadeiras locações e utilizando não atores, é uma obra previamente escrita e que exige uma responsabilidade quase demiúrgica. A escolha da forma passa pelo gesto inicial do autor, por querer dizer isto ou aquilo.

processo

O cinema é uma forma de comunicação transversal. Cada filme que faço pode se aproximar mais de uma ou de outra forma de arte, mas todas estão sempre presentes: fotografia, música e sonoplastia, poesia, literatura, pintura, arquitetura, teatro e representação, até mesmo dança. Uma das artistas que mais amo é Pina Bausch [(1940-2009) pedagoga, dançarina e coreógrafa alemã], que não é apenas brilhante no retrato dos sentimentos, alegrias e sofrimentos, mas também na construção de espetáculos narrativos improváveis, com uma estrutura muito livre e, no entanto, lógica, com começo, meio e fim. Tantas vezes mudei de caminho no meio de um processo de pesquisa, de filmagem ou de montagem. Gosto dessa liberdade, que é sempre utilizada para fazer algo de melhor, maior, rico e mais interessante.

Todos os brasileiros aprendem a sentir através da música popular. Sou apenas mais um

Sérgio Tréfaut

percalços

Curiosamente, o filme que sempre me deixou mais insatisfeito é uma das minhas produções de maior êxito. A Cidade dos Mortos (2009) [vencedor, em 2010, do festival Documenta Madrid, na Espanha], retrata o cotidiano de milhares de pessoas que moram nos cemitérios do Cairo, no Egito. Foi exibido em mais de 30 países. No entanto, pensei em jogar tudo no lixo e desistir do filme. Não o fiz por causa dos contratos de produção. É um documentário honesto e bonito. Conquistei a admiração e o respeito dos egípcios por ter filmado a realidade da vida nos cemitérios, de uma forma que ninguém mais tinha conseguido. Eu gostaria de ter continuado a filmar mais e já não tinha recursos para fazer. Acontece. 

telona

Eu cresci no universo do cinema e faço filmes para serem vistos inicialmente em telas grandes. Paraíso esteve em cartaz em Portugal por cerca de três meses, e nos cinemas franceses, por nove semanas. Antes disso, circulou muito pelos festivais internacionais de Lisboa [Portugal], São Petersburgo [Rússia], Biarritz [França, onde foi premiado como melhor documentário musical], Skopje [Macedônia do Norte], Montevidéu [Uruguai], Cracóvia [Polônia], entre outros. A estreia mundial de Paraíso foi na edição virtual do festival É Tudo Verdade, em 2021. Mais tarde, apresentei o filme numa tela enorme montada nos jardins do Palácio do Catete. Todos os participantes vieram de máscara. Foi comovente ver a plateia ao luar, cantando e aplaudindo cada música. Impressionante ver Dona Ilka, que filmei quando tinha 100 anos, assistir ao filme e me abraçar, já com seus 102.

memória

Minha trajetória está presente em Paraíso, exerce um papel forte na minha vida, na medida em que representa um regresso ao Brasil, país onde nasci e do qual fui arrancado quando tinha dez anos, momento em que meu irmão foi preso e quase assassinado pela polícia política. A questão da pertença ou não a um lugar é comum aos exilados e aos migrantes, como trato em outros filmes. Vivi essa partida do Brasil como um exílio. Ao longo de quatro décadas, mantive uma relação muito forte com o país que eu reencontrava nas canções de grandes músicos. Passei anos cantando as canções que os seresteiros do Catete também cantam. Era minha maneira de me manter vivo, de dizer a mim quem eu era. Além disso, creio que, em grande parte, todos os brasileiros aprendem a sentir através da música popular. Sou apenas mais um.

Assista ao documentário Paraíso (2021), com direção de Sérgio Tréfaut, disponível no SescTV.

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