O processo criativo de Aline Bei

30/09/2024

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Autora do premiado O peso do pássaro morto fala sobre a importância da poesia e da dramaturgia em sua escrita

POR RACHEL SCIRÉ

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Um sorriso se derrama pelo rosto de Aline Bei e ali se acomoda, enquanto a escritora paulistana comenta sobre a adaptação de seus dois romances para o teatro e cinema. O orgulho não é pouco para ela que sempre quis ser atriz e se formou pelo teatro-escola Célia Helena, além de ter cursado a faculdade de letras – como uma forma de atenuar a pressão familiar por uma vida profissional com maior estabilidade.

Apesar de sempre ter sido uma grande leitora e de desenhar contornos poéticos a cada um de seus pensamentos, Aline Bei afirma que a escrita floresceu como uma forma de ocupar o vazio deixado pelo teatro. E é a partir do universo cênico que a autora-atriz pensa a sua literatura, seja nos métodos para a construção de personagens, no hábito de encenar e gravar, com a própria voz, passagens dos textos que compõe, ou na ideia do livro como palco de um “teatro possível”. Antes de lançar sua obra mais recente, Pequena coreografia do adeus (2021), que foi finalista do prêmio Jabuti, a romancista estreou na literatura com O peso do pássaro morto (2017), vencedor do prêmio São Paulo de Literatura e do prêmio Toca. Em 2020, O peso… foi adaptado para o teatro, em formato virtual devido à pandemia da Covid-19, com idealização e atuação de Helena Cerello e direção de Nelson Baskerville, e desde 2021 tem circulado pelos palcos. A mesma obra também será adaptada para o cinema, com roteiro de Ana Pacheco e Isabel Teixeira no papel da protagonista. Prestes a completar 37 anos de idade, no dia 9 deste mês, Aline Bei comemora o fato de Pequena coreografia do adeus também estar com os direitos reservados para o cinema e fala, neste Encontros, sobre os caminhos estéticos, narrativos e estilísticos de sua escrita.

GESTO LITERÁRIO
A minha escrita começa sem nome e em lugares deslocados, a partir das artes, das leituras e do teatro. Num primeiro momento, não sei se ela estava conectada com a literatura em si, mas com um vazio que o teatro deixou em minha vida. Escrevi a partir da minha formação teatral. Não tinha nenhuma pista de que seria escritora. Também porque a escrita fica quase em um lugar secreto, feita por pessoas que parecem todas mortas. Só fui me conectar quando entrei na faculdade de letras e, pela primeira vez, conheci pessoas que escreviam. Três forças me norteiam, desde o início: a poesia, a dramaturgia e a oralidade. Eu fui começar a escrever aos 21 anos e só depois me autoproclamar escritora, que é um gesto superpolítico, bastante performático e difícil de fazer, especialmente para as mulheres. O livro é muito importante, mas ele se torna um objeto-palco, que tem a ver com esse teatro possível que criei a partir da escrita.

ACONTECIMENTO POÉTICO
Quando comecei, tomei a liberdade de me autointitular poeta. Uma ingenuidade, como se bastasse amar a poesia para ser poeta. Percebi que não se faz um poeta. Na prosa, sim, é possível trabalhar e conquistar um espaço próprio, com muito esforço. Mas na poesia, não. Você não força o nascimento de um poeta e eu não sou, infelizmente, mas isso não me torna menos leitora de poesia e menos apaixonada por ela. Em alguns momentos, tem um grande pássaro que sobrevoa o meu texto e nunca pousa: é a poesia. Conforme dei continuidade à minha pesquisa na escrita, fui assumindo cada vez mais esse quase acontecimento poético que me toma.

ESCULPIR PALAVRAS
Meu interesse pelos poetas concretos virou o jogo quando eu entendi que um poema também tem um apelo pela plasticidade, pela forma visual. A gente pode trabalhar a palavra como um escultor trabalha o seu material, sem ser óbvio, por meio do qual o poema e a mensagem se relacionam e se complexificam, geram a experiência de estar diante de algo que bagunça o leitor, que é da ordem do inexplicável, da arte. Por que a prosa não pode ter essas páginas de acontecimento plástico também? Por que a ideia comportada do parágrafo? Claro que isso deve existir, mas sempre? Por que não enlouquecer um pouco a prosa também? A pergunta formal que guia o meu primeiro livro [O peso do pássaro morto] é justamente essa: será que esse meu modo de escrever dá conta de uma história mais longa? No segundo livro, é uma pergunta formal ainda mais grave: será que consigo adentrar mais complexidade, mais profundidade nos personagens, com essa linguagem fragmentada?

(foto: Fernando Rabelo)

PRESSENTIR A VIDA
A criação de personagens talvez seja o meu grande acontecimento de texto. Eu entro no trabalho por eles, o que tem muito a ver com o fato de eu ter sido atriz, porque o teatro é esse lugar em que o ator defende o ponto de vista de um personagem com paixão, seja protagonista ou figurante. Quando o ator é comprometido com a cena, consegue trazer a vida toda em uma fresta, às vezes sem verbalizar. Pelo modo como toca em determinado objeto, dirige o olhar ou se movimenta, coloca o espectador numa espécie de pressentimento da vida em que aquela figura está imersa. Isso para mim é muito importante, não só dizer quem são essas pessoas, mas fazer o outro pressentir, trazer também a imaginação do leitor, a perspectiva do público, e completar as lacunas que o texto sempre deixa, em especial o meu, porque sou uma escritora mais da ordem do silêncio e do vazio do que da expressividade. Quando eu começo a escrever, não sei exatamente quem são essas pessoas, muitas vezes tenho pouquíssimos elementos.

TROCA DE PELE
Sinto uma mudança grande de um livro para o outro, porque a escrita é muito porosa. A escrita tem uma efemeridade, tem seus jogos de improviso e de acaso, que não se repetem. E cada vez que a gente escreve um livro, está sendo transformada pela própria feitura do trabalho – quiçá quando se passam anos, porque sou uma autora que demora em cada processo. Estou escrevendo meu terceiro livro há três anos. Tenho um intervalo entre livros, até a publicação, e vou virando outra pessoa. Sinto, inclusive, que mudei de forma mais radical agora, para escrever o terceiro livro, especialmente por viver a vida de autora publicada e, de repente, ter um espelho na frente do meu processo. Em O peso do pássaro morto, por exemplo, eu era pura ingenuidade, ninguém me perguntava o que eu estava fazendo. Depois que comecei a publicar, participar de evento, passei a ter de sustentar publicamente o meu gesto estético e íntimo. E, de tanto dizer, comecei a inventar também, comecei a ter de incorporar essa invenção na minha própria escrita. A gente amadurece, perde muita coisa e ganha outras. Não sei o resultado de todas essas questões, mas a mudança é realmente inevitável, é quase como uma pele que a gente fica tentando manter, mas que vai se transformar por conta do sol, do tempo, do riso, da expressão. E a gente precisa aceitar essas mudanças.

ESCRITORA MONOGÂMICA
Eu fico rodeada por possibilidades de livros que não são necessariamente histórias, porque não sei se vão acontecer. Tenho impressões, pressentimentos que hoje já consigo reconhecer que têm fibra para se tornarem um livro, para se tornarem uma história que posso escrever, bem ajustadas ao meu tipo de escrita. Eu não escrevo vários livros ao mesmo tempo, costumo dizer que sou uma “escritora monogâmica”. Mas durante o processo, ou quando termino, algumas coisas ficam abertas. Quando estava escrevendo A pequena coreografia do adeus, em um dado momento a personagem ficava sonhando em ser mais próxima da avó. Com isso, um portal se abriu e eu soube que o terceiro livro estava ali. E foi a personagem quem me deu, eu não escreveria aquilo sem o intermédio dela. Estava escrevendo quase como uma atriz, que descobre um gesto quando está em cena, por intermédio da personagem. Eu fico grata, porque sei que isso vai continuar me assombrando, pairando, e na hora certa vai incorporar, vai se transformar em texto.

VERSÕES EM ADAPTAÇÕES
Eu fico muito interessada em ver como o livro vai acontecer no cinema. São coisas completamente diferentes, uma obra nova que vai surgir. Eu prefiro ficar de fora. Já permaneci muitos anos com os livros, é hora de outras pessoas lidarem com essa história e a transformarem em outra proposta. No caso do teatro, foi muito impressionante. Confesso que é uma das coisas de que mais me orgulho, porque sendo uma escritora que foi atriz, não tem nada mais bonito do que perceber que a sua escrita pode se desdobrar em outras possibilidades, inclusive cênicas.

Adaptado para o teatro, com atuação de Helena Cerello e direção de Nelson Baskerville, O peso do pássaro morto conta a história de uma mulher, dos oito aos 52 anos, atravessada por singelezas cotidianas e tragédias. (foto: Cuca Nakasone)

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