Afinal, o que é a negritude?

26/06/2023

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*Kabengele Munanga 

Acredito que as pessoas que leram meu livro “Negritude: Usos e sentidos”, cuja primeira edição foi publicada pela Editora Ática, em 1986, e a quarta edição pela Autêntica Editora, em 2019, não me fariam a questão de saber o que é a negritude. Com efeito, o conceito de negritude foi cunhado na década de trinta do século passado, pelos intelectuais negros africanos e antilhanos que estavam estudando na Universidade francesa em plena colonização da África Subsaariana. Naquele contexto colonial, a história, a cultura e a identidade africanas eram negadas para justificar e legitimar a Missão Civilizadora. A saída dos africanos estaria, segundo os próprios colonizadores, na assimilação dos valores culturais ocidentais e na rejeição da ancestralidade, história, cultura e identidade africanas.  

Os jovens intelectuais negros que estudavam em Sorbonne acreditaram que sua verdadeira salvação resultaria desse processo de assimilação dos valores civilizatórios do branco. Infelizmente, o esforço para que eles se tornassem brancos não obteve o sucesso que eles esperavam. Vestidos à europeia, de terno, óculos, relógio e caneta no bolso do paletó, fazendo um esforço enorme para pronunciar adequadamente as línguas metropolitanas, eles não deixavam de ser macaquinhos imitando o Homem.  Frantz Fanon, no seu bestseller “Pele Negra, Máscaras Brancas” expressa claramente as consequências desse processo que levou à alienação total desses jovens. Mas não demoraram para se darem conta de que sua verdadeira salvação não viria da busca da assimilação dos valores ocidentais através do uso das máscaras brancas que escondiam seus rostos negros, mas sim pela aceitação de seu corpo, sua história, sua cultura e sua identidade negados pelo colonizador branco.  

Para Aimé Césaire, a negritude é o simples reconhecimento do fato de ser negro, a aceitação do seu destino, de sua história, de sua cultura. Mais tarde, Césaire irá definí-la em três palavras: identidade, fidelidade, solidariedade. A identidade consiste em assumir plenamente, com orgulho, a condição do negro, em dizer com cabeça erguida: sou negro. A palavra foi despojada de tudo o que carregava no passado, como desprezo, transformando esse último numa fonte de orgulho para o negro. A fidelidade repousa numa ligação com a terra-mãe, cuja herança deve, custe o que custar, demandar prioridade. A solidariedade é o sentimento que nos liga secretamente a todos os irmãos negros do mundo, que nos leva a ajudá-los e a preservar nossa identidade comum. Césaire rejeita todas as máscaras brancas que o negro usava e faziam dele uma personalidade emprestada. Senghor(1) entende a identidade própria como um conjunto de valores culturais do mundo negro, exprimidos na vida, nas instituições, nas obras. É a proclamação-celebração sobre todos os tons da identidade, da personalidade coletiva, visando o retorno às raízes do negro como condição de um futuro diferente da redução do presente. A negritude aparece aqui como uma operação de desintoxicação semântica e de constituição de um novo lugar de inteligibilidade da relação consigo, com os outros e com o mundo. 

É importante frisar que a negritude, embora tivesse sua origem na cor da pele negra não é essencialmente de ordem biológica. Em outros termos, a identidade negra não nasce do simples fato de tomar consciência da diferença de pigmentação entre brancos e negros, ou entre negros e amarelos. A negritude e/ou a identidade negra se referem à história comum que liga de uma maneira ou de outra todos os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental “branco” reuniu sob o nome do negro. A negritude não se refere somente à cultura dos povos portadores da pele negra que de fato são todos culturalmente diferentes, apesar das semelhanças que constituem a africanidade. Na realidade, o que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não é como parece indicar o termo negritude a cor da pele, mas sim o fato de terem sido na história da humanidade vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido suas culturas não apenas objeto de políticas sistemáticas de destruição, mais do que isso de ter sido simplesmente negada a existência dessas culturas. Lembramos que, nos primórdios da colonização, a África negra foi considerada como um deserto cultural e seus habitantes como o elo entre o Homem e o macaco.

A negritude tornou-se uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para que se engajem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas. Visto deste ângulo para as mulheres e os homens descendentes de africanos/as no Brasil e em outros países do mundo cuja plena valorização e aceitação de sua herança africana faz parte do processo de resgate de sua identidade coletiva, a negritude faz parte de sua luta para reconstruir positivamente sua identidade e, por isso, um tema ainda em atualidade.

“A negritude fornece nesses tempos de globalização, um dos melhores antídotos contra as duas maneiras de se perder: por segregação cercada pelo particular e por diluição no universal” . 

Aimé Césaire


(1) Léopold Sédar Senghor, político e escritor senegalês que, ao lado de Aimé Césaire, foi um dos ideólogos do conceito de negritude. De 1960 a 1980 foi presidente do Senegal. 


*Kabengele Munanga Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Autor de mais de 150 publicações entre livros e artigos científicos na área de Antropologia da África e da População Afro-Brasileira.   

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