Produzido dentro do Sesc: Como o sertanejo e o funk historicamente se apropriaram da estética da violência
Danilo Cymrot é mestre (2011) e doutor (2015) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Sua dissertação de mestrado abordou a criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica. É pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo desde 2013.
Em 2011, a canção “Ai, se eu te pego” estourou mundialmente na voz de Michel Teló. A autoria da canção é controversa e foi parar na Justiça. Atribuída a Sharon Acioly e Antônio Dyggs, foi reivindicada por seis jovens que teriam apresentado o refrão e a coreografia na casa Axé Moi, em Porto Seguro, para Acioly. Originalmente, “Ai, se eu te pego”, apresentada em uma casa de axé, era um funk. Posteriormente foi gravada como forró eletrônico, quando chegou aos ouvidos de Michel Teló, que decidiu regravá-la como sertanejo.
A trajetória de “Ai, se eu te pego”, assim, mostra como a divisão estanque de gêneros musicais no Brasil, principalmente de gêneros populares como o funk e o sertanejo, é mais um desejo de puristas do que uma realidade. “Sou foda”, do grupo Os avassaladores, foi outro funk, de 2010, que ganhou sua versão sertaneja na voz da dupla Carlos & Jader e até uma resposta de Naiara Azevedo, quando o “feminejo”, sertanejo cantado por mulheres com letras feministas, ainda estava engatinhando. No mesmo período, em 2012, “Eu quero tchu, eu quero tcha”, que reproduzia onomatopeicamente o som do tamborzão, batida de funk, era sucesso na voz da dupla sertaneja João Lucas & Marcelo.
Em 2011, auge do funk ostentação paulista, vertente que exalta as marcas de luxo de carros, roupas e óculos de sol, estourou “Camaro amarelo” na voz da dupla sertaneja Munhoz & Mariano, que se somava a outros sucessos sertanejos, como “Audi TT”, de Gabriel Valim, e “Vem ni mim Dodge Ram”, de Israel Novaes, em um subgênero que poderia ser chamado de “sertanejo ostentação”. Da mesma forma como as transformações no campo do gênero e sexualidade, a bonança econômica daqueles anos se refletia tanto nas letras de funk quanto nas de sertanejo.
O encontro do funk com o sertanejo, no entanto, não é um fenômeno que se inicia nos primeiros anos da década de 2010. E se a ostentação e a “putaria” eram o cimento que unia os dois universos naquele período, houve outro período em que o cimento que unia o Brasil profundo, cantado pelos sertanejos, e a favela carioca, cantada pelos funkeiros, era a violência mesclada com o humor.
Em 1969, em seu disco de estreia, a dupla Leo Canhoto & Robertinho lançava um de seus maiores sucessos, “Jack, o matador”, composição de Léo Canhoto e Nenete. A canção era introduzida e intercalada por diálogos, típicos de filmes de bangue-bangue e rádio-novelas, entre o famoso bandido Jack e suas vítimas.
Jack, o Matador
(Léo Canhoto e Nenete)– Pessoal, vamos embora, o Jack vem vindo aí!
– Ohh, ohh, nossa senhora!
– Ha ha ha, nada disso! Ninguém vai sair daqui! Aquele que sair vai engolir chumbo! Garçom, traz cachaça pra todo mundo aí!
– É pra já, é pra já
– Aee, é pra encher a cara hein! Uai moço, você não bebeu por que?
– Porque ninguém manda em mim!
– Não bebeu mas morreu! Ha ha haEm uma cidade lá longe, bem distante
Aonde a bala fazia a lei
Morava um bandido bastante afamado, já tinha matado 43
Seu nome era Jack, esperto e violento
Era o conhecido como o matador
Brigava e batia no meio da rua
O povo já corria, ele era um terror
Um dia à tardinha, naquele povoado
O Jack armado entrou no botequim
Chegou arrastando a sua espora e a todos dali foi dizendo assim– Ha ha ha ha! Atenção! Eu sou o Jack Matador. Todo mundo aqui vai dançar! Aquele que não dançar vai engolir chumbo! Gaiteiro, toca um negócio aí! Ae! Bonito! Uai moço, você não dançou por que?
– Porque ninguém manda em mim!
– Não dançou, mas morreu!Porém certo dia naquele povoado chegou mais um homem também valentão
Seu nome era Kid, veloz como um gato
Matava pra ver o defunto no chão
Mandou um recado urgente pro Jack
Estou lhe esperando lá dentro do salão
Eu quero acertar uma conta antiga
Eu vim de tão longe por essa razão
No bar da esquina o Jack foi entrando
Já foi avistando o Kid no balcão
Chegou prevenido, cabeça bem alta
Disposto a matar foi dizendo então
– Olá, Kid. Mandou me chamar, eh?
– Mandei sim, Jack. Eu quero acertar aquela continha velha hoje
– É pra já, Kid! Puxa o revólver!Dois tiros se ouviram por entre a fumaça
Dois corpos caídos no chão estirados
Chegou o xerife tremendo de medo
Ao ver que os dois homens tinham se matado
Puxado a carroça, na mesma tardinha
Foi pro cemitério os dois num caixão
A banda tocava de tanta alegria
No fim da encrenca dos dois valentões
Conforme aponta Gustavo Alonso, em Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira (Civilização Brasileira, 2015), “Jack, o Matador” foi apenas a primeira de diversas canções de Leo Canhoto & Robertinho que tematizavam a violência no espaço público, reprimida, na maioria das vezes fatalmente, pelas forças policiais. Longe de representações de camponeses como revolucionários, tais canções refletiriam o desejo de camponeses por uma resposta autoritária pelas forças da lei à violência, no auge da ditadura militar. Alonso aponta que nos anos 1970 era comum que artistas sertanejos fizessem shows em circos e encenassem eles próprios, antes dos shows, esquetes teatrais que se passavam no Velho Oeste. Em 1945 Tonico & Tinoco já encenavam peças violentas, como “A vingança de Chico Mineiro”, peça inspirada na canção “Chico Mineiro” e transformada no filme “Obrigado a matar”, em 1965. Segundo Alonso, a inovação de Leo Canhoto & Robertinho teria sido adequar a estética da violência já presente em algumas montagens e filmes caipiras à modernidade do rock e a influências externas como o western spaghetti, filmes que se passavam no Velho Oeste americano, mas feitos por europeus, principalmente italianos, e gravados principalmente no sul da Espanha, durante as décadas de 1960 e 1970. Além de outras duplas como Rock & Ringo, Ringo Black & Kid Holiday e Jacó & Jacozinho e de filmes de Mazzaropi, Tonico & Tinoco e de Leo Canhoto & Robertinho, como “Chumbo quente”, de 1977, o western spaghetti influenciou a criação do western feijoada, gênero cinematográfico produzido na Boca do Lixo de São Paulo, e a telenovela “Irmãos Coragem”, de Janete Clair, de 1970.
Da mesma forma, em 1962 o sambista Moreira da Silva lançou o samba-de-breque “O rei do gatilho”, protagonizado pelo pistoleiro Kid Morengueira e de autoria de Miguel Gustavo, que passou a compor para Moreira a partir daí outras canções com a mesma temática, inspirada em filmes de bangue-bangue, “atualizando” para o Velho Oeste norte-americano as tradicionais letras em que malandros cariocas valentões resolviam seus conflitos com a navalha, nos botequins cariocas.
A influência da estética country foi severamente repudiada por jornalistas e intelectuais que, sob a influência da Escola de Frankfurt, viam produções como as de Leo Canhoto & Robertinho como produtos massificados, formatados pela indústria cultural, descartáveis, alienados, alienantes e frutos do imperialismo norte-americano, que contaminavam a cultura caipira “de raiz”, pura e autêntica. No caso de Leo Canhoto & Robertinho, a acusação era potencializada pelo fato de a dupla ter incorporado à música caipira o uso de guitarras elétricas, sob a influência da Jovem Guarda.
Há que se questionar, no entanto, se uma imposição cultural externa faria tanto sucesso popular nos rincões do Brasil se não encontrasse um respaldo na realidade local que desse sentido àquela estética. A incorporação da estética country e dos filmes de bangue-bangue, portanto, não são mera reprodução do produto norte-americano, mas dialogam com a violência social brasileira em que os conflitos muitas vezes são resolvidos na bala, principalmente em áreas do país em que o acesso à Justiça institucionalizada não é garantido.
Essa identificação entre o cenário violento dos filmes de bangue-bangue e o cenário violento dos rincões do Brasil profundo pode nos fornecer a chave para compreender outro fenômeno: a proliferação de raps e funks do final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 que samplearam “Jack, o Matador” e outras canções de Leo Canhoto & Robertinho. Em 1988, o pioneiro LP de rap “O som das ruas”, produção da equipe Chic Show lançada pela Epi e Sony, trazia a faixa “Melô da lagartixa”, do então Ndee Rap, que posteriormente assumiria o nome de Ndee Naldinho. Usando como base a música “DJ Innovator”, de Chubb Rock, o “Melô da lagartixa” sampleava na introdução a famosa ameaça de “Jack, o Matador”: “Atenção! Todo mundo aqui vai dançar! Aquele que não dançar vai engolir chumbo! Toca um negócio aí!”. O efeito de humor utilizado para animar a pista era claro.
Em 1991, o DJ Cuca lançava no LP “For D.J.” o funk “Melô do valentão”, com a mesma colagem de “Jack, o Matador”. A montagem mais famosa, no entanto, foi realizada pela equipe Pipo´s, fundada em 1974 por Alípio Pereira dos Santos, conhecido como Pipo. A equipe era famosa pelo baile do Vila Lage Esporte Clube, em São Gonçalo, pelos LPs lançados e pelo programa de rádio que teve a partir de 1994 na Rádio Imprensa do Rio.
Julio Ludemir, em “101 funks que você tem que ouvir antes de morrer” (Aeroplano, 2013), relata que as montagens eram adaptações do funk para qualquer música, frase ou ruído que caísse bem na batida. O uso de trechos de discos antigos cantados em português nas montagens supria no início dos anos 1990 a falta de ídolos brasileiros cantando letras de funk em português. Já de acordo com Silvio Essinger, em “Batidão: uma história do funk” (Record, 2005), as montagens são bases em que, sobre a batida do miami bass, os produtores jogavam frases soltas de MCs ou de discos que nada tinham a ver com funk, com as sílabas das palavras repetidas várias vezes e coladas juntas, seguindo um determinado padrão que produz efeito de grande força rítmica.
A famosa montagem de “Jack, o Matador” foi feita pelo DJ Mamut e gravada em 1994 como “Contexto 2”, no segundo LP da Pipo´s, “O encontro da massa”, que vendeu mais de 30 mil cópias. Essinger relata que as frases, “de um seriado de faroeste”, ditas por vozes empostadas de dubladores, foram tiradas de um disco com rótulo raspado, que Mamut disse não saber quem gravou. Testada no rádio, a faixa virou rapidamente sucesso na pista de dança, influenciando até o figurino do público.
Houve muitas continuações do “Jack”, com frases do disco não aproveitadas na montagem original, como “Jack está de volta”, da Pipo´s; “Jack de olho em você”, da equipe Espião; “Jack morreu mesmo”, da equipe Live; “A morte do Jack Matador”, da equipe Explosão; “Montagem da morte do Jack II”, da equipe Duda´s; e a “Montagem do gaiteiro”, feita pelo Adriano DJ, da equipe Live. As frases foram usadas, sampleadas e recicladas à exaustão nos anos seguintes. Vale destacar ainda a “Montagem cowboy”, lançada pelos DJs da equipe Pipo´s a partir do clássico country “Old MacDonald had a farm”, gravada por Gene Autry.
O fato do DJ Mamut alegar desconhecer a origem de “Jack, o Matador” corrobora a hipótese de que no universo do funk o conceito de autoria é relativizado, tendo em vista que muitas gravações são caseiras ou de bailes ao vivo; que a produção circula de forma clandestina pela internet ou é vendida em bancas de camelôs em coletâneas que não trazem as informações sobre os cantores e compositores, até como forma de proteção em face da criminalização; que muitos funks surgem nos bailes cantados pelo próprio público; que o sampler é uma ferramenta frequentemente utilizada; e que alguns DJs e algumas equipes de som se apropriam indevidamente das canções, aproveitando-se da vulnerabilidade dos MCs iniciantes, tornando o reconhecimento dos direitos autorais um desafio.
Outra observação importante é a de que a montagem “Jack, o Matador” foi gravada como “Contexto 2”, fazendo alusão a um subgênero de funk que ficou conhecido como rap de contexto. Trata-se de funks que se caracterizam por abordar em suas letras a dura realidade das favelas, a guerra entre as facções criminosas, a violência policial e que são muitas vezes acusados de fazer apologia ao crime, recebendo por essa razão o apelido de proibidões.
O proibidão tem um componente de humor e paródia muito forte e personagens como Jack, o Matador infantilizam de certa forma o terror existente na favela, na análise de pesquisadores como Micael Herschmann, em “O funk e o hip hop invadem a cena” (Editora UFRJ, 2000); Olívia Maria Gomes da Cunha, na coletânea “Cidadania e violência” (UFRJ/FGV, 1996); e Thiago Braga Vieira, em sua monografia “Proibidão de boca em boca: gritos silenciosos de uma memória subterrânea: o funk proibido como fonte para o estudo da violência armada organizada no Rio de Janeiro (1994–2002)” (UFRJ, 2009).
Thiago Braga Vieira recorda que as facções se julgam protetoras das crianças nas favelas e que, no mundo do crime, como no mundo do funk, ser “de menor” não é desqualificativo nem resulta em exclusão da participação, muito pelo contrário. A inclusão do barulho de tiros nos proibidões, por sua vez, pode representar uma espécie de resistência, uma denúncia, uma válvula de escape, um mecanismo de defesa, um modo de exorcizar uma realidade em que tiros são de fato a trilha sonora, conforme nos lembra a antropóloga Adriana Facina, em “A sobrevivência de Eros” (2019).
Diante do exposto, é compreensível que a figura de Jack, o Matador, de uma dupla sertaneja de fins dos anos 1960, conseguisse dialogar com a realidade da favela carioca dos anos 1990. Jack representa um tipo de bandido execrado pelos moradores da favela, que se impõe pela força, pelo terror e pela covardia, em contraposição às facções criminosas exaltadas em algumas letras, que seguiriam princípios de honra e restaurariam a ordem na favela, segundo a análise de pesquisadores como Rodrigo Russano, em sua dissertação de mestrado “Bota o fuzil pra cantar: o funk proibido no Rio de Janeiro” (UNIRIO, 2006); e Alba Zaluar, em “A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza” (Brasiliense, 1985).
A identificação do universo da favela não é só com o universo do faroeste. Alguns funks proibidões fazem alusão à Al-Qaeda e à Colômbia, aproximando a figura do guerrilheiro/terrorista da figura do membro da facção criminosa carioca. Se no início da década de 2010 era mais comum funks se transformarem em música sertaneja, em “Jack, o Matador” foi o sertão que invadiu a favela. Favela que tem sua origem justamente na volta de soldados que lutaram na Guerra de Canudos ao Rio de Janeiro e era o nome de uma planta sertaneja. Conforme a profecia distorcida de Antônio Conselheiro, na montagem sampleada de “Jack, o Matador”, o sertão virou favela e a favela virou sertão. Ou, nos dizeres de Guimarães Rosa, quando a lei que vigora é a da bala, o sertão é o mundo.
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