O som no cinema: o marco temporal nas representações do cotidiano

22/09/2017

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Capa por Ale Amaral – Paulistano e pai da Laura. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e colabora musicalmente com diversos artistas nacionais da cena experimental e de improvisação livre.

É interessante observar como percebemos a música cinematográfica. Quantas vezes não ouvimos ou tecemos comentários do tipo “o filme não é tão bom, mas a trilha sonora é excelente!”. É como se filme e música, ou ainda som e imagem, fossem duas entidades distintas que, por um acaso, se encontraram e nos proporcionaram momentos de plenitude, desfrutados isolando-se qualquer uma das duas.


“A música no cinema começou a ser utilizada como artifício para atrair o público, para que as pessoas perdessem o medo de entrar em uma sala escura.”


A pesquisadora norte-americana Claudia Gorbman, em seu livro Unhearded Melodies: Narrative Film Music (Indiana University Press, 1987, sem tradução para o português) relata que, historicamente, a música no cinema começou a ser utilizada como artifício para atrair o público, para que as pessoas perdessem o medo de entrar em uma sala escura, com imagens fantasmagóricas sendo projetadas em uma lona, enquanto o ruído horrível de um maquinário desconhecido tomava conta do ambiente. Lugar ainda que não deveria ser frequentado por “cavalheiros e moças de família”.

Com a narrativa dramática do cinema aprimorada, a música de acompanhamento (diga-se de passagem, ainda para disfarçar o som do projetor), também pôde ser repensada, uma vez que o cinema se aproximava da linguagem teatral. Em pouco tempo, iniciou-se a edição de coletâneas de partituras com músicas “apropriadas” para cenas de humor, drama, romance, terror e aventura. Nessas coletâneas, movimentos de músicas consagradas de Beethoven, Mozart, Chopin, dentre outros, eram agrupadas e rotuladas com um sentimento específico para corresponder às narrativas da imagem.

Contudo, apesar de buscar subsídios no teatro e na ópera, o cinema desenvolveu uma linguagem própria, principalmente a partir do momento em que houve um desenvolvimento tecnológico que tornou capaz fixar a banda sonora, isto é, a mídia na qual a fala, a trilha musical e os ruídos de cena eram gravados, junto à película. O ano considerado o marco do cinema sonoro é 1927, quando os estúdios Warner Bros. lançam O cantor de jazz, dirigido por Alan Crosland, com o sistema de sonorização Vitaphone. O filme Cantando na chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly retrata perfeitamente a transição do cinema silencioso para o sonoro, incluindo as falhas técnicas que ocorriam com esse sistema durante a exibição. Porém, o sistema Vitaphone foi substituído em pouco tempo pelo sistema de banda ótica, facilitando o trabalho dos editores de som e consolidando o cinema sonoro.

Sistema de sonorização Vitaphone funcionando à todo vapor em 1925. Fonte: Moviemice.com

Ao permitir sincronizar som e imagem, foi criada uma nova arte, o que o pesquisador francês Michel Chion chamou em seu livro A Audiovisão: Som e Imagem no Cinema (Texto & Grafia, 2011) de “entidade audiovisual”, uma terceira essência formada a partir da junção das duas anteriores. Eisenstein, Alexandrov e Pudovkin declaravam em seu Manifesto de 1929 que a sincronização entre som e imagem geraria filmes mais focados na ilusão e na sensação de realidade provocados no público, do que na narrativa da montagem de imagens. Essa sensação de que tudo aquilo que vemos é real acontece justamente porque o som é sincronizado com a ação dos personagens, mesmo sabendo que as falas dos atores sejam trocadas na dublagem e que todos os sons sejam substituídos em estúdio. A música cinematográfica, assim como a montagem, também sofreria transformações.

Obviamente que, antes de 1927 já haviam grandes compositores como Saint-Saens e Erik Satie escrevendo peças exclusivamente para alguns filmes, porém a música executada ao vivo poderia ser rapidamente adaptada ou ter trechos improvisados pelo intérprete, tornando única cada exibição cinematográfica. Traçando um paralelo com o que ocorre no processo de composição de uma ópera, em que o compositor recebe um libreto (que seria o roteiro) e o adapta à música durante a criação da obra, o cinema percorre o caminho oposto. Com o surgimento do cinema sonoro, a música tinha de ser escrita considerando todas as limitações técnicas que existiam na época, realizando cálculos para ajustar a música à velocidade do projetor e aos cortes do diretor e assim sincronizar com o filme já montado. Quem assiste a famosa cena do chuveiro em Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, não imagina o trabalho árduo de Bernard Herrmann para sincronizar sua música aos golpes de faca de Norman Bates em sua vítima.


“São muitos os elementos existentes a serem considerados para formar uma trama complexa, com o propósito de deixar o espectador inquieto em sua cadeira.”


Como então podemos dissociar ainda hoje música e imagem? Usando de exemplo o filme de Stanley Kubrick De olhos bem fechados (1999), há uma cena em que o personagem de Tom Cruise é perseguido por um homem pelas ruas da cidade. Poderíamos dizer, em um primeiro momento, que a tensão da cena é gerada principalmente pela música de Györg Ligeti Musica Ricercata II (1951–53), uma obra atonal em que são tocadas apenas duas notas com a distância de um semitom. Porém, a música se destaca nessa cena justamente porque outros elementos, como a fotografia, a cenografia e até mesmo os ruídos de cena, nos passam a ideia de insegurança do personagem. Mesmo com a música em primeiro plano de audição, a câmera mostra a cidade vazia à noite, o som dos passos do personagem é amplificado, e não há trânsito, apenas um carro ou outro que passa sincronizado com as pausas da música, dentre outras coisas.

São muitos os elementos existentes a serem considerados para formar uma trama complexa, com o propósito de deixar o espectador inquieto em sua cadeira. Quando essa trama fantasiosa é bem realizada pelo diretor, a música pode reverberar no espectador um sentimento real. Com isso, a possibilidade de uma orquestra invisível soar perfeitamente enquanto um casal se beija no meio de uma multidão, ou a sua música favorita tocar durante uma cena de perseguição se tornam coisas plausíveis de acontecer. O filme pode não agradar ao público, mas a música se destaca quando o conjunto é bem executado, justamente pela intenção de apelo emocional à qual foi empregada.

Cena de “De Olhos Bem Fechados”, Stanley Kubrick, 1998

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