Bonecas de feltro feitas por empreendedoras do Coletivo Meninas Mahin. Foto: Agência Ophelia
Há vários ciclos na história da humanidade em que vemos ressurgir com mais força a solidariedade entre as pessoas tanto na forma de trabalho quanto na destinação dos resultados de seus empreendimentos. São formas coletivas de empreender em que os trabalhadores, trabalhadoras e consumidores compõem redes de cooperação, em que todos se unem. Conhecida pelo nome economia solidária, essa organização vem se destacando principalmente em regiões de grande vulnerabilidade social no país. Diante de um cenário alarmante de desemprego – 12,4 milhões de brasileiros – iniciativas multiplicam-se nas periferias da cidade de São Paulo. São empreendimentos, feiras e outros negócios autogeridos e fortalecidos por um trabalho coletivo dentro da comunidade onde estão inseridos.
“A cada grande crise do capitalismo a economia solidária retorna como possibilidade de auto-organização dos trabalhadores”, aponta o professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo Egeu Esteves, coordenador do programa Universidade Aberta à Economia Solidária – UAES-Unifesp. Mas o que é economia solidária? Segundo Esteves, o termo é relativamente recente e foi criado entre a década de 1980 e 1990. “Agora, o fenômeno que a economia solidária se reporta, que é a possibilidade de trabalhadores se unirem para montarem seus negócios, suas redes de comércio, suas atividades, autogerirem seu trabalho, isso remonta à Revolução Industrial, remonta aos cooperativistas do século 19 na Inglaterra”, explica.
Talvez, num sentido antropológico, complementa o especialista, a economia solidária remonte a muitas práticas de trabalho e de organização autônoma que sempre existiram na história da humanidade e que aparecem de formas variadas no Brasil, nos continentes europeu e africano, por exemplo. O fato é que é urgente a necessidade de novas formas de organização do trabalho, ou de fortalecimento de formas já conhecidas, como consórcios e cooperativas, para enfrentar a atual crise econômica, precarização e uberização do trabalho [Leia a Entrevista com o economista Marcio Pochmann nesta edição]. Algo que ainda é vendido pela publicidade em diferentes embalagens com o ideal “empresário de si”.
“Há toda uma argumentação do empreendedorismo que visa justificar que as pessoas são pobres porque elas não são empreendedoras; não têm trabalho porque não são empreendedoras. É uma forma de culpabilizar o próprio trabalhador pela falta de opção de trabalho, sendo que ele não tem dinheiro para investir. E quando tem, ele monta mais do mesmo – mais um salão de beleza, mais uma barraquinha de cachorro quente etc. Só que a economia solidária é um caminho para se juntar e fazer coisas maiores e mais bem estruturadas”, analisa Esteves.
Foi esse o pensamento da administradora Ednusa Ribeiro, uma das criadoras do Coletivo Meninas Mahin, em 2016, nome que homenageia Luiza Mahin, que era quituteira nas ruas de Salvador, mãe do advogado e abolicionista Luiz Gama, e que fazia a comunicação e articulação para a organização da Revolta dos Malês em 1835 [Leia Perfil publicado na Revista E nº 284, de junho de 2020]. “Se formos pensar nessa comunicação que ela fazia e trazemos para a feira, dessa vez a gente faz a comunicação para gerar outras mudanças e ações afirmativas”, explica Ednusa. Meninas Mahin nasceu, então, como uma feira na Praça das Professoras, Cidade Antônio Estevão de Carvalho, no distrito de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. Fruto de um projeto chamado Itaquera Futuro que, depois, se organizou como um coletivo ao entender que mulheres negras de regiões periféricas de São Paulo poderiam somar forças para entenderem, montarem e gerirem seus próprios negócios.
“A intenção era, além de fazer a feira e de ter esse espaço estruturado e seguro. Foi juntar as ações afirmativas tanto de desenvolvimento quanto de cultura da região e valorizar o comércio do entorno”, explica Ednusa, que veste e consome alimentos e outros produtos feitos pela rede de empreendedoras do Coletivo Meninas Mahin. “Percebemos, então, que o coletivo não era só feira, mas também um espaço formativo de capacitação na prática de gestão de negócios. Ou seja, a gente faz com que essas mulheres entendam, pratiquem a gestão de seus negócios e se vejam como empreendedoras”, complementa.
A administradora também percebeu que muitas dessas mulheres haviam feito algum curso em instituições como Sebrae ou Instituto Mulher Empreendedora; no entanto não compreendiam como todo aquele conhecimento em apostilas poderia sair do papel. Para isso, o coletivo oferece uma mentoria realizada por meio de rodas de conversa durante o evento. “Elas aprendem, inclusive, a montar e desmontar o estande, a saber medir, a distribuir seus produtos naquele espaço, que nada mais é que o conceito de vitrinismo; a fazer um planejamento, a atender o cliente, a fazer um cartão de visita etc. Aí, elas vão aprendendo, melhorando e praticando na feira”, conta Ednusa.
Em 2017, o Coletivo Meninas Mahin realizou 36 feiras; em 2018, foram 33; e em 2019, 70 feiras. Na pandemia, o grupo formado por 83 empreendedoras parceiras aprenderam ferramentas digitais, participando de feiras online e de lives nas redes sociais do coletivo, que também abriu um canal no YouTube. “Com as lives, elas viram a importância de um cenário, de expor sua marca e seus produtos, a posição da câmera, da luz e o que falar. Aprenderam a fazer o que chamam de pitching, ou seja, falar do seu negócio em pouco tempo”, conta.
Também foi em 2016 que a pesquisadora em economia periférica e tecnologias africanas Barbara Terra criou a Rede Nóis por Nóis, no distrito do Grajaú, Zona Sul da cidade. A iniciativa tem como objetivo fomentar, fortalecer e estruturar uma rede de desenvolvimento de empreendimentos, de pessoas e negócios periféricos atuantes na região. “A rede se iniciou a partir de uma reunião onde eu convoquei algumas lideranças, articuladoras do bairro para redesenhar nossas relações, criar mais ações em rede, olhando para nossa geração de renda, compartilhando nossas ideias, nossas inventividades, nossos saberes a partir da nossa experiência local”, recorda Bárbara.
De 2016 a 2019, a Nóis por Nóis realizou 10 festivais socioculturais com feiras integradas, formato que, segundo Barbara, são a principal forma de acessar o público e de “fomentar a rede de consumo de forma afetiva, efetiva e constante, promovendo um ambiente de impacto cultural, social e econômico, potencializando o que já existe no território”. Até o momento, aproximadamente 80 empreendimentos já foram impactados pelas ações da rede. Um número que tende a crescer desde que a Nóis por Nóis foi contemplada, em 2020, pelo edital Fomento à Cultura da Periferia, com o projeto Sankofa Hub – Laboratório de Inovação e Economia Periférica.
“Então, foi possível concentrar em um único espaço todas as atividades que vínhamos executando desde 2016: um espaço de criatividade, articulação e desenvolvimento, que é esse laboratório onde podemos experimentar e criar possibilidade de integração com todas essas pessoas da rede. Aqui a gente promove nossas ações, projetos e também gera a nossa renda de forma local”, descreve. Compõem o Sankofa Hub uma loja colaborativa onde são vendidos produtos de marcas locais e de diferentes segmentos – acessórios, roupas, produtos de casa, de bem-estar, cosméticos –, criações que antes eram expostas apenas nas feiras. Além da loja, há um bistrô com uma proposta de alimentação saudável e afetiva e uma sala de coworking para empreendedores e coletivos da região. O Sankofa Hub ainda organiza uma programação cultural junto com outros coletivos parceiros.
Além das ações presenciais, a Rede Nóis por Nóis atua em plataformas digitais. Para isso, criou um núcleo de aprendizado voltado para mulheres negras microempreendedoras periféricas que se chama De Preta para Preta. Dentro desse projeto já foram realizadas três capacitações: uma de orientação vocacional, outra de matriarcado e empreendedorismo negro e uma terceira de educação financeira.
“Acho que o principal desafio é manter o negócio de pé, ter visão de futuro, ter capital de giro. Falta um pouco esse olhar para como manter o negócio, ter um capital inicial para que as pessoas possam fomentar seus negócios. Esse desafio também envolve nossa autoestima, mexe com nosso psicológico. Por isso, hoje eu digo que a Rede Nóis por Nóis olha mais para as pessoas do que de fato para o empreendimento, porque os empreendimentos são feitos de pessoas e como estão essas pessoas”, ensina.
ALIMENTAÇÃO, MODA, MÚSICA E CAPACITAÇÃO SÃO ALGUNS DOS FOCOS DE EMPREENDEDORES QUE PROMOVEM IMPACTO SOCIAL, CULTURAL E ECONÔMICO
“Escola de negócios da periferia para a periferia”, é como se define a Empreende-aí. Fundada em 2015 pelo administrador de empresas Luis Coelho e pela psicóloga Jennifer Rodrigues, tem como objetivo formar e capacitar, prioritariamente, novos empreendedores de territórios populares, comunidades em situação de vulnerabilidade social. Todo o processo acontece por meio de metodologia própria presencial e online e de metodologias cocriadas com parceiros. Já foram capacitados mais de 1.400 alunos, sendo 75% pretos e pardos e 69% mulheres. Conheça: empreendeai.com.br.
Criado há 18 anos por Adriana Barbosa, na cidade de São Paulo, o festival Feira Preta foi reconhecido como o maior evento de cultura negra da América Latina. Consolidado como um espaço de fomento e valorização de iniciativas afro-empreendedoras de diversos segmentos. Além do festival, a Feira Preta abrange um marketplace de moda, artesanato, arte, decoração, papelaria e outros produtos, e também realiza programas de capacitação e de aceleração de negócios. Saiba mais: festivalfeirapreta.com.br.
Formada por mulheres em 2017, essa rede de empreendimentos de economia solidária e feminista promove o comércio justo, a agroecologia e a cultura popular por meio de atuação em rede no Butantã e organiza mensalmente uma feira no Viveiro 2, espaço público da região. Dentre os produtos comercializados estão: alimentos agroecológicos, cuidados pessoais, artesanias, moda e ludicidades. Além da realização da feira presencial, é possível comprar os produtos de mais de 30 produtoras na loja virtual da feira. Para as produtoras envolvidas, a Feira é muito mais que uma oportunidade de comercialização de seus produtos e de geração de renda. É também um espaço permanente de acolhimento, empoderamento, formação e deliberação coletiva, onde todas participam ativamente das etapas de planejamento, produção e execução do evento, valorizando assim, a diversidade que caracteriza a rede. Conheça: www.instagram.com/feira_mulheres.
Plataforma digital que reúne empreendedores do Jardim São Luís e regiões (Campo Limpo, Capão Redondo, Jardim Ângela etc.) da economia criativa e da economia solidária, nela também são divulgadas informações sobre atividades culturais, arte e inovação de territórios. O E-Bairro entende que a Agenda Cultural é umas das funcionalidades da plataforma que devem ser potencializadas, por permitir a divulgação e a sistematização de eventos culturais que acontecem no território. Além disso, essa ferramenta possibilita o mapeamento das atividades culturais e o surgimento de redes e de trocas, fomentando a colaboração entre os mais diversos atores culturais da economia criativa da região. Confira: www.ebairroweb.com.br.
De 18 a 27 de março, o Sesc São Paulo realiza a ação em rede Nós: criação, trabalho e cidadania, que busca visibilizar iniciativas de fomento à inclusão produtiva, à geração de renda e ao desenvolvimento comunitário. Para isso, foram mapeados grupos que estão nos territórios onde unidades do Sesc estão inseridas. São coletivos de empreendedoras/es periféricas/os, cooperativas, grupos de consumo, organizações sociais, empreendimentos comunitários e de povos tradicionais. Na programação, que será realizada tanto no formato presencial quanto online, haverá mesas de debates com o objetivo de troca de conhecimentos entre diferentes iniciativas, além da realização de feiras e de ações formativas.
“Nesse cenário de pandemia e maior vulnerabilidade social, o Sesc atua como espaço de formação e apoio às ações coletivas que estimulam a solidariedade e o fazer junto, de forma segura e sustentável. Desejamos que essas ideias e práticas inspirem formas mais justas de sociedade, com mais oportunidades e autonomia para as pessoas”, explica Ricardo Ponzio Scardoelli, assistente técnico da área de Valorização Social, na Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc.
Confira alguns destaques da programação e saiba mais no portal do Sesc São Paulo: www.sescsp.org.br/nos.
Feiras: diversidade, protagonismo e trabalho em rede
Nessa mesa de abertura da ação Nós: criação, trabalho e cidadania, estarão presentes no bate-papo Feiras: diversidade, protagonismo e trabalho em rede Milena Nascimento, empreendedora da Rede Nóis por Nóis; Julia Lourenção, da Feira Agroecológica e Cultural de Mulheres no Butantã; e Ednusa Ribeiro, do Coletivo Meninas Mahin. Quem fará a mediação é Adriana Barbosa (foto), idealizadora do Festival Feira Preta, que foi reconhecida como o maior evento de cultura negra da América Latina. (Dia 18/3, das 17h às 18h30). Foto: Jef Delgado
Feira Valoriza Ação!
Nesse projeto, o público poderá conhecer o trabalho e os produtos de iniciativas situadas na Zona Leste da cidade de São Paulo. Entre essas está o Coletivo Meninas Mahin, que por meio da Feira Afro Meninas Mahin fomentam o empreendedorismo da mulher preta por meio de atividades afirmativas promovidas nas feiras pela prática interdisciplinar, ou seja, a integração com atividades: artesanais, artísticas, esportivas, musicais, literária, oficinas e ações de cidadania. (Dias 26 e 27/3, das 10h às 16h). Foto: Agência Ophelia
Trilhas do Saber
Nessa série de encontros formativos realizada por artesãos da cidade de Iguape, que fazem parte dos coletivos Artesol e Artesanato Solidário, o objetivo é inspirar e estimular a profissionalização de artesãos tendo em vista a inovação e a sustentabilidade financeira de seus negócios. Entre os temas abordados estão: Identidade Cultural, Design, Produto, Gestão e Comunicação. (Dias 23/3, 20/4, 18/5, 15/6, 13/0, às quartas, das 9h às 17h – encontros presenciais. E dias 6/4, 4/5, 1º/6, 29/6, 27/7, quartas, das 14h às 16h – encontros online). Foto: Júlio Ledo
ABC da Economia Solidária
Nesse encontro, será apresentada uma mostra de algumas iniciativas de economia solidária realizadas na região do ABC. São trabalhos diversos de sustentabilidade como a venda de orgânicos, artesanato, além de empreendimentos nas áreas de saúde mental, finanças solidárias e alimentação para geração de renda. (Dia 19/03, sábado, das 10h às 15h). Foto: Comunicação São Caetano
Feira de Iniciativas Sociais
Empreendedores da região participam da Feira de Iniciativa Sociais que busca valorizar o pequeno artesão da periferia da Zona Sul de São Paulo. São iniciativas de economia solidária, de prática de saberes diversos (tradicionais, populares e/ou científicos) e de observação de impactos positivos na comunidade onde estão inseridas. (Dias 19, 20, 26 e 27/03, na Praça das Corujas). Foto: Renata Teixeira
(Por Maria Julia Lledó)
A edição de março/22 da Revista E está no ar!
Nas páginas deste mês, você conhece o projeto “Infindável Viagem: Takeo Sawada – artista, educador” (imagem de capa), composto por ações no Sesc Thermas de Presidente Prudente e no Sesc TV.
Além disso, a revista de março traz outros destaques, como a exposição “DARWIN, O ORIGINAL”, do Sesc Itaquera; um levantamento que, no mês da mulher, apresenta as ruas da capital paulista que homenageiam personalidades femininas; um depoimento dos jornalistas Tatiana Vasconcellos e Nando Andrade sobre sua rotina no rádio; um perfil da diva Elza Soares (1930-2022); uma reportagem sobre iniciativas que mostram a força de uma economia baseada na solidariedade e na coletividade; um passeio pelas ilustrações criadas para o experimento literário Folhetim, do Sesc Pompeia; uma entrevista com o economista Marcio Pochmann sobre modelos econômicos e o futuro da sociedade; e artigos que abordam os desafios do envelhecimento das pessoas LGBTQIA+.
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