O versátil legado de um dos pilares do samba, Nelson Sargento

29/06/2024

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O versátil legado de Nelson Sargento, um dos pilares do samba, que celebraria cem anos de nascimento neste mês

POR MANUELA FERREIRA 

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Foi na sala de casa que, ainda garoto, o cantor, compositor, escritor e artista plástico Nelson Sargento (1924-2021) aprendeu a tocar violão com as lições de uma dupla de músicos que começava a ganhar fama no subúrbio do Rio de Janeiro: Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), e Nelson Cavaquinho (1911-1986). Outro nome que fez parte desse grupo de mestres foi o compositor Geraldo Pereira (1918-1955), símbolo da figura do “malandro carioca”. Todos eram amigos do padrasto do menino, o compositor Alfredo Português (1885-1957) – um lisboeta que trabalhava como pintor de paredes e organizava rodas de samba no morro de Mangueira, zona Norte da capital fluminense.  

Assim aconteceram algumas das primeiras incursões de Nelson Sargento no ritmo para o qual contribuiu, em sete décadas de carreira, de forma essencial. Seja compondo mais de 400 canções, entre clássicos como “Agoniza, mas não morre” (1978), seja como baluarte e presidente de honra da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, o artista fez história no mundo dos bambas. 

Das memórias do convívio com o pai, o músico Ronaldo Mattos destaca as inúmeras festas de aniversário, uma das celebrações preferidas de Sargento. “Ele amava comemorar seu aniversário. Sempre dizia que não estava realizado, pois quem está realizado não precisa fazer mais nada e ele queria continuar aprimorando o que já fazia. Por isso, tinha sempre energia para fazer mais e mais. Não à toa ele afirmava que, ao completar 100 anos, faria uma festa de parar o Rio de Janeiro”, rememorou, acrescentando que planeja uma série de ações para celebrar o centenário de nascimento de seu pai. Outra recordação de Mattos paira sobre as reuniões familiares regadas à música e boa comida, além dos momentos especiais do sambista que testemunhou nos palcos, seja no Brasil ou no exterior. “O repertório musical dele estava nos impregnando, com jazz, blues, samba e rock. Me lembro de acompanhá-lo nas apresentações em bares dos bairros de Botafogo e da Lapa, onde só conseguíamos, eu e meu irmão Ricardo, ver o início, pois logo depois dormíamos no camarim”, compartilha.  

FARDA E VIOLÃO 

A parceria criativa entre Alfredo Português e Nelson Sargento foi frutífera. “A dupla foi vitoriosa por vários anos nas disputas de samba da Mangueira, com destaque para [o enredo] ‘Cântico à natureza – As quatro estações do ano’, com votação unânime dos 17 julgadores. Este samba, composto para o carnaval de 1955, é conhecido também como ‘Primavera’, tornando-se um clássico do gênero, com mais de 20 regravações. Em 1975, a Mangueira o consagrou como um dos dez melhores sambas de todos os tempos da Escola”, escreveu a pesquisadora Juliana Pereira Barbosa na tese de doutorado Nelson Sargento e a cultura do samba: aspectos da criação artística (2013), apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina (UEL).  

Antes de conquistar fama no samba, no entanto, Nelson Sargento serviu no exército. O nome artístico com o qual ficou conhecido é, portanto, uma referência à patente alcançada na instituição militar. Mas, o samba falou mais alto e a dedicação ao serviço público foi breve. “Entrei como voluntário, fui promovido a 3º sargento numa sexta-feira, 13 de setembro de 1946, e licenciado no ano de 1949”, afirmou o compositor, em depoimento à pesquisadora Juliana Pereira Barbosa. Ele havia passado parte da infância e adolescência ajudando a mãe, a lavadeira Rosa Maria da Conceição, nas entregas das roupas da clientela. 

ALVORADA MUSICAL 

O afeto que permeia a relação com o padrasto está na base da mudança na trajetória do artista. “Alfredo Português ensinou Nelson Sargento a entender o que era uma composição, a construção de uma poesia, a pensar musicalmente e a fazer rimas (…) A relação entre os dois retrata a interação entre gerações, típica da cultura do samba e das culturas populares de forma geral. Uma tradição pertinentemente registrada na composição ‘Fiz por você o que pude’ (1975), de Cartola: ‘(…) podam-se os galhos, colhem-se as frutas/ e outra vez se semeia/ e no fim desse labor, surge outro compositor/ com o mesmo sangue na veia'” relatou Barbosa em sua tese. 

Nos anos 1960, o músico despontou ao se apresentar como cantor, no restaurante Zicartola, no Centro do Rio, ponto de encontro de sambistas e nomes da bossa nova. O local, aberto por Cartola e a esposa, Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica (1913-2003), fechou as portas em 1965, mas marcou época – foi no Zicartola que o cantor e compositor Paulinho da Viola fez sua estreia profissional e recebeu seu primeiro cachê. O estabelecimento contribuiu, ainda, para que o gênero musical ultrapassasse as vielas dos morros e chegasse a outros públicos, entre os quais o da zona Sul. O convívio com diferentes artistas que frequentavam o bar possibilitou que Nelson Sargento fosse convidado para integrar o elenco do espetáculo musical Rosas de Ouro, com direção do compositor e poeta Hermínio Bello de Carvalho.  

VOZES DO SAMBA 

Segundo a pesquisadora Juliana Pereira Barbosa, foi no musical Rosas de Ouro, que estreou em 1965, que Nelson Sargento conheceu o novato Paulinho da Viola. “Quando ele tocou o samba ‘14 anos’, perguntei ao Jair do Cavaquinho (1922-2006) se o samba era do garoto”, disse o sambista, em conversa com Barbosa. Confirmada a autoria, logo Sargento reconheceu estar diante de um novo talento da música popular brasileira. O trabalho no espetáculo inspirou a origem de outro sucesso, o grupo de samba A Voz do Morro. Integrado por Sargento, Zé Keti (1921-1999), Paulinho da Viola, Elton Medeiros (1930-2019) e Anescarzinho do Salgueiro (1929-2000), entre outros músicos, o conjunto representou uma importante oportunidade para os compositores de samba gravarem suas próprias letras, sem mediadores e emprestando as próprias vozes às canções.  

A união de bambas se desdobrou, ainda, em um terceiro trabalho, que também contaria com o talento de Sargento e atestaria a ascensão que o samba vivia na década de 1960: Os Cinco Crioulos. O conjunto foi composto por diversos membros do musical Rosas de Ouro e do grupo A Voz do Morro. Aos poucos, Sargento foi também compondo cada vez mais. Até que, em 1978, a cantora Beth Carvalho (1946-2019) gravou “Agoniza, mas não morre”, que se tornou um sucesso instantâneo. Foi, também, o maior êxito comercial de Sargento. Com isso, aos 55 anos, ele gravaria seu primeiro disco solo. Lançado em 1979, Sonho de um sambista é recheado de hinos, como “Falso moralista”, “Falso amor sincero”, “Cântico à natureza”, “A noite se repete” e “Minha vez de sorrir”.  

MUITOS CARNAVAIS 

O amor pela Mangueira, entretanto, não foi à primeira vista. Antes da mudança da família para o território da verde e rosa, o pequeno Nelson aprendera a tocar tamborim para desfilar, aos 10 anos, na Acadêmicos do Salgueiro. Encantou-se por aquele universo e, uma vez incorporado à diretoria mangueirense, esteve envolvido em mais de 30 desfiles da agremiação. O sambista foi, sobretudo, uma voz em defesa do gênero, com críticas às limitações que as imposições comerciais lhe impunham. “Apesar de não admitir que as pessoas tenham se afastado ou esquecido o pessoal de samba, pois a cada dia surgem novas rodas, sou consciente de que as gravadoras perderam o interesse comercial pela nossa música. Isto pode ser comprovado ao observar que, entre todas as gravadoras, não se tem 20 intérpretes de samba, tornando difícil a briga do compositor profissional”, refletiu Sargento, em entrevista à jornalista Salete Lisboa para o jornal Última Hora, em maio de 1983.  

“Quando a Alcione, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Elton Medeiros ou outros intérpretes do gênero vão gravar, é uma loucura. Cada um recebe, em média, 400 fitas gravadas e eles têm que tirar 12, por isso, acho que não há nenhum problema de qualidade. O que falta é oportunidade ao samba. Há muito me sinto um pouquinho responsável pela abertura de mercado de trabalho com o surgimento de conjuntos formados por compositores de escola de samba”, disse o músico ao jornal gaúcho.  

Consagrado como sambista, Sargento também se dedicou às artes plásticas e à literatura. De sua autoria são mais de 600 telas espalhadas pelo mundo – do Palácio do Planalto, em Brasília, ao gabinete do presidente da Coreia do Sul. Como escritor, lançou os títulos Prisioneiro do mundo (1994) e Pensamentos (2005), voltados à poesia.  

A longevidade lhe permitiu ser reverenciado no Sambódromo da Marquês de Sapucaí duas vezes, em participações nos desfiles da verde e rosa, em 2019 e 2020. Neles, representou, respectivamente, os protagonistas dos enredos: o líder quilombola Zumbi dos Palmares e o carpinteiro José (pai de Jesus Cristo). Nascido há exato um século, em julho de 1924, Sargento marcou a cultura brasileira e, em 96 anos de vida, deixou um imenso legado artístico no samba, na poesia e nas artes visuais.   

UM SÉCULO DE GINGA 

Programações no Sesc celebram o samba de Nelson Sargento em composições e ilustres parcerias 

No começo dos anos 1940, antes das escolas de samba se tornarem símbolos pujantes da cultura nacional, Nelson Sargento já estava lá, como folião, e anos mais tarde, como integrante da Mangueira. Foi do seu lado compositor que, no entanto, dizia sentir maior orgulho. Todo o legado do artista, que completaria cem anos em 24 de julho, é celebrado em programações do Sesc São Paulo.  

Durante o mês de julho, o SescTV exibe, ao longo da programação do canal, o programa Compacto – Nelson Sargento, no qual o próprio artista relembra a carreira, amigos, discos e as parcerias com nomes como Cartola, Jamelão, Alfredo Português e Carlos Cachaça. No dia 27/7, o canal também apresenta o show Comunas do Samba: Roda de Samba Ouro Verde e Nelson Sargento, com repertório composto por clássicos do gênero.  

 
SESCTV 

Compacto – Nelson Sargento 

Ao longo do mês de julho, nos intervalos da programação do canal. GRÁTIS. 

Comunas do Samba: Roda de Samba Ouro Verde e Nelson Sargento 

Dia 27/7, sábado, às 21h (com reprises em 28/7, domingo, às 5h; 1º/8, quinta, às 12h; e 3/8, sábado, às 11h). GRÁTIS. 
Assista em sesctv.org.br 

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