Ofícios que contam sobre nós

11/03/2024

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“E com o bucho mais cheio comecei a pensar,

Que eu me organizando posso desorganizar.”

Chico Science/ Nação Zumbi

Se você chegou até aqui, percebeu que o trabalho é central para a subsistência humana. Ele é parte da interação do ser humano com a natureza e com a comunidade ao seu redor. É também através dele que se exploram, se esgotam ou se renovam os recursos essenciais para atender às necessidades básicas de cada indivíduo. São as diversas facetas dessa mesma temática.

Em paralelo, uma outra palavra ganha forma e importância nessa reflexão: os ofícios surgem como extensões refinadas e profundamente humanas do trabalho. Muito mais do que meras funções laborais, os ofícios representam pontes únicas que ligam histórias, experiências e culturas. E, diferenciando-se do trabalho, transcendem a busca pela sobrevivência, manifestando-se também como uma expressão artística da vida.

Alguns ofícios só existem em determinados culturas e localidades: as baianas do acarajé representam um ofício tradicionalmente associado à culinária da Bahia, assim como o ofício de trancistas vem de uma prática que remonta a séculos e desempenha um papel significativo para a identidade e expressão cultural de povos africanos e afrodescendentes.

Onde o trabalho frequentemente assume uma natureza rotineira e utilitária em nossa busca diária por sustento, o “ofício” se revela como uma narrativa viva que conta histórias de resistência, inovação e superação. E ao encontrar o coletivo, ofícios costuram uma trama social plural e diversa, que testemunha algo maior. Diante da importância desse conceito para a Inclusão Produtiva, a pergunta que fica é: como valorizar ofícios quando ainda existem trabalhadores invisíveis ou precarizados no Brasil?

O coletivo: luz balão

“Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.”

João Cabral de Melo Neto

O Brasil registrou 39 milhões de trabalhadores informais no 3º trimestre de 2023, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ou seja, trabalhadores que estão em atividade, mas não estão cadastrados como CLT, que corresponde à pessoa física contratada, ou como CNPJ, que oficializa os empreendedores, pequenas empresas, cooperativas e associações. O número equivale a quase 40% da população ocupada do país.

São trabalhadores de todas as idades e regiões que por não serem registrados acabam se tornando invisíveis para as políticas públicas, para garantia de direitos e ofertas focadas em suas necessidades. Essa invisibilidade vai ficando mais desafiadora quando fazemos um recorte desses trabalhadores, considerando grupos frequentemente marginalizados ou discriminados no mundo do trabalho, como mulheres, pessoas com deficiência, membros da comunidade LGBTQIAP+, refugiados, imigrantes, e pessoas com baixa escolaridade.

Entre as tentativas de mudar esse cenário é vital agir para que as capacidades individuais e coletivas possam convergir em busca de oportunidades, transcendendo estereótipos e preconceitos e se tornando um catalisador de mudanças sociais e econômicas. Além de focar esforços para promover o mapeamento adequado desses trabalhadores com diferentes perfis, entender seus receios e comportamentos para trazer luz à essas camadas e fazer da economia um lugar para todos.

Como exemplo de ações nessa linha, destacamos o Coletivo Meninas Mahin, localizado principalmente na Zona Leste de São Paulo, e que sempre está presente em ações do Sesc. O coletivo, que surgiu em 2016, busca impulsionar o empreendedorismo feminino negro e contribuir para a redução das desigualdades raciais por meio de atividades afirmativas realizadas em suas feiras. Para isso, além da venda de produtos,

as feiras contam com espaços de diálogos, oficinas, cursos e valorização do processo criativo, que destacam a importância de valorizar as pessoas e os recursos disponíveis nas periferias.

“O coletivo transita em dois mundos, que é o produzir para vender, permeado por esse mundo capitalista, mas que a gente acredita que não precisa ser tão selvagem, e valorizar o território, que também é o nosso próprio espaço,” comenta Ednusa Ribeiro, uma das mulheres que conduz Meninas Mahin.

Aproximações como essa de modos de organização coletiva através de ofícios estimula uma mudança de paradigma na sociedade. Por meio da colaboração entre diferentes culturas e comunidades, fortalecem-se os laços sociais e ampliam-se as oportunidades. “A gente foi percebendo que a gente faz muito mais que feira. Nós somos produtoras de conhecimento. Nós somos agentes de políticas públicas, que é mudar o bairro, que é mudar o entorno. Nós somos educadoras, educadoras de negócio, educadoras de gestão, educadoras de vida, educadoras de vivência”, complementa Ednusa.

A Força dos Laços Fracos

Na década de 1970, Mark Granovetter trouxe uma nova perspectiva sobre redes sociais – não as que conhecemos hoje, como Instagram, Facebook e X (Twitter) – mas as redes compostas por indivíduos ou organizações, chamadas de “nós”, conectados por um ou vários tipos de relações, como amigos, parentes, pessoas com interesses comuns, trocas financeiras, crenças ou outras.

Em “A Força dos Laços Fracos”, Granovetter revelou a potência das conexões sociais menos íntimas, mas fundamentais para difundir informações e oportunidades, contrariando a crença de que apenas relações próximas são influentes. Assim, os laços fracos ganham uma vantagem distintiva: eles aproximam pessoas a diferentes grupos sociais, possibilitando a transmissão de informações entre comunidades que normalmente não interagiriam. Isso é particularmente relevante em contextos como oportunidades de trabalho, inovação e difusão de ideias.

Em resumo, algumas décadas depois de lançada a teoria dos laços fracos, é preciso refletir sobre como nos vemos cada vez mais conectados, mas, paradoxalmente, cada vez mais fragmentados. E é justamente isto que torna as ações pela Inclusão Produtiva ainda mais necessárias para a dinâmica e o desenvolvimento socioeonômico ao criar pontes e abrir caminhos para novas perspectivas e possibilidades de forma ampla, considerando quem está perto e quem está longe de forma livre de pré julgamentos.

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