Por Coletivo Amem
Advertimos a todes que este texto foi escrito pelas mãos de pessoas negras dissidentes sexuais ou de gênero e HIV positivas. Somos parte da história da Aids no Brasil e no mundo, e construímos nossas próprias referências e curas para subverter as desigualdades que também assolam as ações políticas no enfrentamento a epidemia da Aids. Refletimos a influência do movimento HIV/Aids que impactou a arte negra positiva a partir da escrita africana Adrinkra, com o símbolo Sankofa representado por um pássaro que volta a cabeça para trás olhando a cauda, significando “Olhar o passado para ressignificar o futuro”. Esse é o conceito partilhado entre tantas vidas negras positivas que descansam em Orun e muitas outras que renasceram indetectáveis. São 40 anos de resistências e re-existências. Caminhos foram abertos, mas ainda sentimos a agonia no peito daqueles irmãos e irmãs que partiram criando no leito de morte estratégias de cura.
Em 4 décadas de uma doença social, vidas negras dissidentes e condenadas à morte se muniram das artes, vozes silenciadas gritaram, corpos paralisados se moveram na direção da cura. Porém, quando Winnie Byanyima (Diretora Executiva da UNAIDS) afirma na abertura da reunião do Alto Nível da Aids: “A Aids não acabou…” revela que mesmo com tantos desafios superados, incluindo o avanço da medicina contra o vírus do HIV, a doença continua sendo potente arma de extermínio contra populações específicas, por isso não findou, na verdade não conseguiram nos matar.
A narrativa da pessoa negra dissidente que vive com o HIV e que se apropria das artes gera desconforto, mas o que esperavam? É possível acessar conteúdos que abordem a criminalização da Aids, o envelhecimento de pessoas vivendo com HIV, a medicalização e seus efeitos colaterais, a maternidade e infância. Muitos produziram abertamente, outros não tiveram esse tempo e há também quem produza indiretamente. Esses ainda são silenciados, mas se fortalecem na coletividade e atuam como podem. Destacaremos alguns nomes que gritaram feito a coruja rasga mortalha, sendo que – ao contrário da coruja, que segundo a lenda, anuncia a morte – anunciamos a CURA.
Listamos algumas referências que em vários momentos inspiraram nossos pensamentos e produções, histórias próximas de nossas realidades e com visões de um futuro próspero negro dissidente. Entre esses nomes estão: do poeta, dramaturgo, artista performático e ativista, Assotto Saint Saint (1957 – 1994); do cineasta, educador, poeta e ativista, Marlon Riggs (1957 – 1994); da multiartista e ativista Kia; do poeta, performer e artista multidisciplinar, Danez Smith; da escritora/blogger Busi Sigasa (1981 – 2007), e da artista plástica, performer, produtora cultural e ativista Micaela Cyrino.
Nitidamente a poesia e o audiovisual foram e ainda continuam inspirando jovens negros dissidentes interessados em produzir sobre a Aids. Eles se unem num propósito coletivo e político, mas também para encontrar sua cura, pois entendem que seus corpos ainda são lidos com “bombas” de contaminação ou são “simplesmente” são invisíveis. Trazer para a primeira pessoa uma voz negra dissidente e HIV positivo é proporcionar uma reparação histórica das nossas contribuições nesse movimento de luta e de cura em 40 anos.
Em 2015, ativistas do Tacoma Action Collective (TAC) realizaram um protesto para expor sua indignação contra a falta de representação negra na mostra Art AIDS America e o racismo no Tacoma Art Museum. Não é novidade que museus e exposições físicas ou virtuais fecham as portas para nosso legado e no Brasil não é diferente, observamos que há um protagonismo cada vez maior de pessoas brancas dissidentes HIV positivas, que discursam superficialmente, esquecendo que a diversidade por si só é complexa, que a falta de aprofundamento em políticas públicas gera mais desigualdades num país que é estruturalmente diverso e desigual. Por isso o governo e as instituições dificultam os acessos, nos excluem para tentar apagar-nos da história ou nos reduzir a coadjuvantes. Afinal de contas, quem vai contratar alguém que denuncia o extermínio das populações negras e dissidentes? É mais interessante um rosto branco com a pele saudável para dizer que é possível tomar antirretroviral com pouco efeitos colaterais e viver bem, porque é melhor que a morte.
Há violência na omissão, no apagamento, na invisibilidade. A realidade da instramissibilidade e indetectabilidade do vírus não diminuiu os estigmas. É possível ainda ouvir o “barulho” do silêncio e a solidão do lado de cá. Espaços de escuta são fundamentais para que nossas vozes de dor e de esperança também sejam ouvidas. É preciso que as portas estejam abertas para nos receber e entender que nem todo dia será de cura. Nossa ancestralidade nos guia, somos negros numa contínua diáspora e carregamos em nós memórias difíceis de ser esquecidas. Não dá pra esquecer o passado quando o presente ainda é de descaso, desigualdade e desumanidade com pessoas negras dissidentes vivendo com HIV/Aids no mundo.
Nesses 40 anos de enfrentamento a epidemia da Aids, perguntas movem artistas e ativistas negros dissidentes HIV positivos: Por que continuar falando de Aids? Por que falar de HIV na dança, na moda, na literatura, no cinema ou na pintura? Se buscamos a cura, por que reabrir as feridas? Talvez porque não nos reste escolha? Ou talvez porque compreendemos que é necessário construir nossos caminhos de cura?
Nós do Coletivo Amem ocupamos esse espaço para dar continuidade ao legado de provocações com o intuito de tensionar as estruturas também do movimento HIV/Aids, nos comprometemos com um fervo negro dissidente e positivo acendendo debates sobre raça, classe, gênero, sexualidade, saúde da população preta e a epidemia da Aids, através do vieses cultural, político e social.
Assotto Saint (2 de outubro de 1957 – 29 de junho de 1994) foi um poeta, dramaturgo e artista performático haitiano. Nascido com o nome Yves François Lubin, adotou este nome em referência ao tambor usado em rituais vodu no Haiti (assotto) e em homenagem ao líder revolucionário haitiano Toussaint L’Ouverture.
Na década de 1970 mudou-se para Nova Iorque, local onde formou-se como dançarino. Em meados dos anos 80 conheceu o sueco Jan Holmgren – compositor e seu companheiro. Juntos escreveram canções e formaram uma dupla de Techno Pop intitulada Xotika. Se tornou um ativista do movimento HIV/Aids, após ambos terem sido diagnosticados com o vírus.
Embora não tenha o reconhecimento, o artista foi criador de instituições para o movimento cultural negro gay, assim como para o movimento cultural ativista da Aids, além de ter sido mentor de Marlon Riggs, Essex Hemphill e Melvin Dixon, outros artistas que também faleceram em decorrência da Aids.
Saint escreveu o poema “Life-Partners”, pouco antes da morte de seu companheiro:
“(…) Entre solidões de doença e bem-aventuranças que nossos lábios proferem,
a noite se instala neste exílio de sentidos para nossa rendição,
a morte de mais um amigo marcou o dia como um sino tocando.
Passando o tempo, somos sombras também encolhendo cedo no destino,
Vamos juntar nossas pílulas e engolir todos os arrependimentos com um beijo,
cobrir um ao outro, então tecer sonhos de outro dia que virá. ”
O casal está enterrado lado a lado no Cemitério dos Evergreens, no Brooklyn.
Marlon Troy Riggs (3 de fevereiro de 1957 – 5 de abril de 1994) nasceu no estado do Texas, no Estados Unidos. Foi um cineasta, poeta, acadêmico e ativista dos direitos dos gays negros norte-americanos.
Cursou história na Universidade de Harvard na década de 1970. Não havendo estudos sobre homossexualidade no curso, Riggs entrou com uma petição no departamento e recebeu aprovação para estudar independentemente sobre a homossexualidade masculina na ficção e poesia americana. A partir daí iniciou estudos sobre o racismo e homofobia americana.
Considerado pioneiro enquanto cineasta negro e gay, seu estilo de documentário é único, unindo a poesia e a crítica, o pessoal e o político. Reconhecido internacionalmente, produziu, escreveu e dirigiu diversos filmes, incluindo “Ethnic Notions” (1986), “Tongues Untied”(1989) , “Color Adjustment” (1992) e “Black Is…Black Ain’t” (1995). Em sua trajetória, criou filmes que analisam as representações passadas e presentes de raça e sexualidade nos Estados Unidos.
No filme “Tongues Untied”é possível ouvir importantes nomes do movimento negro gay, mas destacam-se as vozes dos jovens negros gays e dançarinos de dança vogue da comunidade Ballroom* em Nova Iorque.
*Ballroom , Ball culture ou Ballroom Scene são termos que descrevem uma subcultura LGBTQIA+ underground originada por jovens afro-americanos e latino-americanos em Nova Iorque, na qual as pessoas caminham (ou competem) por prêmios e status em eventos conhecidos como balls (bailes).
Kia Michelle Benow (1990), ou Kia LaBeija, nascida e criada cidade em Nova Iorque, é multiartista, Produz fotografias, performances, colagens e filmes. Diagnosticada com HIV aos três anos de idade, tendo contraído o vírus por transmissão vertical (que ocorre na gestação, no parto ou na amamentação), a artista compõe obras autobiográficas, encenando, re-imaginando e, às vezes, documentando em tempo real eventos não ficcionais, sem recriá-los.
Kia explora as intersecções entre a feminilidade, a beleza, a moda, a memória, o voguing, a experiência de crescer com HIV em comunidade, política e ativismo. É conhecida por defender as comunidades sub-representadas que vivem com HIV, incluindo sobreviventes de longo prazo, mulheres, minorias e crianças nascidas com o vírus.
Em “Eleven”, Kia veste-se com seu traje de formatura em uma consulta ao médico que a acompanha desde 1994. O uso do vestido acontece porque, no início de seu diagnóstico, ninguém sabia se ela sobreviveria até a formatura. O nome da obra, “onze”, em português, se refere aos anos que se passaram desde a morte de sua mãe.
Danez Smith (1989) cresceu no estado Minnesota, nos Estados Unidos. Artista multidisciplinar, frequentou a Universidade de Wisconsin-Madison, e escreveu seu primeiro poema aos 14 anos. Acumula inúmeros prêmios obtidos por meio de sua escrita. É o autor de “Don’t Call Us Dead” (Não Digam Que Estamos Mortos, em português).
Smith é celebrado como uma das mais inovadoras vozes da poesia norte-americana contemporânea e considerado um dos grandes nomes da performance. Suas obras são potentes e tem cada vez mais reconhecimento, pois cortam como navalha afiada ao mesmo tempo que despertam para cura. Abordam raça, dissidências sexuais e de gênero, e de classe. Sua voz ecoa entre os excluídos e marginalizados. Contrapondo a realidade brasileira, acusada de agressiva, os textos de Danez Smith são crus, raivosos e incrivelmente poderosos na luta contra a violência de vidas negras.
“…seu pássaro trágico e errante
você tem tudo que precisa para ser um herói
não salve o mundo, salve a si mesmo
você adora demais e você adora demais
quando a oração não funciona: dance, voe, atire
esta é a sua cena mais difícil
quando você acha que toda aquela coisa triste pode acabar
mas você vive oh, você vive
todos os dias você acorda
você ressuscita os mortos
tudo que você faz é um milagre”
“A note on the body” por Danez Smith
Micaela Cyrino (1988), nascida em São Paulo, é artista plástica, performer, produtora cultural e ativista pelas pessoas negras vivendo com HIV. Micaela Cyrino vive com HIV por transmissão vertical. Suas produções artísticas refletem os estigmas e preconceitos em relação ao HIV/Aids por meio de pinturas, performances e intervenções, em abordagens sobre corpo negro positivo e seus atravessamentos.
A performance Cura (2015), assim como a obra $OROPO$ITIVA (2019), feita com técnicas mistas de lambe, stencil, serigrafia, grafite e as bulas dos antirretrovirais, são produções de Micaela Cyrino que marcaram o imaginário e influenciam novos ativistas da Aids do Brasil.
Micaela é uma das principais vozes negras vivendo com HIV que ecoam no país. Atuante em diversos coletivos, seu trabalho é consolidado e suas falas são potentes tanto quanto suas produções. É possível reconhece-la em trabalhos em audiovisual: “O Cartaz HIV Positivo” (2015), “Carta Para Além dos Muros (2019), “Deu Positivo” (2020), e “Deus tem Aids” (2021).
Busi Sigasa (23 de dezembro de 1981 – 12 março de 2007), cujo nome significa “a abençoada” em zulu, também foi conhecida como Latifah. Nasceu em Soweto, na África do Sul. Assim que terminou o ensino médio, obteve um diploma em informática e estudou Design de Cerâmica.
Busi compartilhou publicamente em seu blog a sua experiência de ser uma pessoa que vive com HIV, sua crença em Deus e a dificuldade de ser lésbica na África do Sul. Seu diagnóstico ocorreu em 2006, resultado de um estupro. De acordo com pessoas próximas, ela desejava se tornar uma fotógrafa e fotojornalista profissional.
“Há vários e diferentes cheiros por todo o quarto.
Seu cheiro é terrível e dá vontade de vomitar.
É o cheiro de pílulas? diferentes multidões de pessoas doentes?
ou é o próprio cheiro nojento do HIV?
Quando é a minha vez? Ela perguntou:
Onde vou terminar?
Quando o vírus vai dominar meu corpo combativo e disposto?
Quando tudo irá embora?
PORQUE….
O mais forte que posso ser
dentro deste meu corpo sólido e concreto.”
“Um dia no hospital de Aids” por Busisiwe Sigasa
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De 26 de novembro a 5 de dezembro, o projeto Contato apresenta informações atualizadas sobre ISTs e HIV/Aids por meio de uma série de atividades on-line que buscam um caminho para compreender as possibilidades e complexidades do corpo, aproximar experiências e fortalecer ações de autocuidado. Confira a programação em www.sescsp.org.br/contato.
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