Quando se pensa na jornada da vida, a gente logo imagina uma linha reta que se inicia no nosso nascimento. Mas é só observar o quanto de história aconteceu em nossa família antes de chegarmos neste mundo, que esse fio da vida tem seu tamanho ampliado a perder de vista, e com certeza sua forma é muito mais circular do que reta. E se ampliarmos isso para as histórias da nossa comunidade, cidade ou país, aí é que esse novelo aumenta e percebemos o quanto tudo está interligado. Descobrimos então que a melhor guia capaz de nos orientar nesse caminho sem começo nem fim é a nossa ancestralidade.
“…Nós somos o começo, o meio e o começo. Existiremos sempre, sorrindo nas tristezas para festejar a vinda das alegrias. Nossas trajetórias nos movem, Nossa ancestralidade nos guia.” – Nego Bispo
A ancestralidade é um conceito profundo que atravessa diversas esferas da vida humana. Em sua explicação mais básica ela pode ser entendida como o conjunto de legados, valores, saberes, tradições e experiências que nos foram transmitidos por nossos antepassados. Mas sabemos que ela vai além disso. Como um fio que tece passado, presente e futuro, ela forma uma teia de relações que conecta humanidades, transcendendo espaço e tempo para recriar futuros possíveis e saudáveis. Ela é fonte de vida, sabedoria, identidade, pertencimento e criatividade.
“A ancestralidade deve ser compreendida a partir da diversidade de pontos de vista étnico culturais. Precisamos dialogar com outras vivências par formar cidadãos que saibam conviver com a diversidade”. - Ana Maria Gonçalves
O Programa Curumim tem a diversidade como valor e base das ações. Ao oferecer atividades que despertam a reflexão de quem somos, de onde viemos e onde vivemos é possível sensibilizar para uma convivência mais harmoniosa e despertar para um modo de vida mais coletivo. O que o território nos diz sobre o hoje e o ontem? O que nos une enquanto coletividade-sociedade? Quais tradições resistem e inspiram nossa cultura atual? O que é possível conectar aos modos de vida de hoje?
Com o intuito de resgatar trajetórias ancestrais, seus saberes e modos de vida tradicionais e despertar o sentido de pertencimento e conexão com a teia da vida que antecede, perpassa a nossa existência e se perpetua após, desenvolvemos no decorrer do ano de 2024, o conceito de ancestralidade nas atividades do Programa Curumim. Com foco na história e cultura afro-indígena brasileira, a programação do ano de 2024 para os Curumins no Sesc Bertioga buscou apresentar e envolver as crianças em uma esfera de coletividade, ludicidade e encantamento.
O encantamento é a essência do espetáculo “Agbalá Conta“, apresentado para as crianças do Curumim, onde uma cabaça mágica se abria e revelava contos e causos sobre diferentes mulheres negras, africanas e brasileiras, que tiveram grande contribuição para a História. Essas Heroínas Negras foram cientistas, guerreiras, inventoras e artistas que nos ensinam sobre a dignidade, humanidade, sabedoria, e belezas contidas em nossas heranças ancestrais.
Integrando o projeto “Maré Delas“, na oficina realizada com a Rainha Vânia Oliveira, as crianças puderam vivenciar uma experiência coletiva e pessoal da dança que nasce no contexto dos Blocos Afro de Salvador. Vânia Oliveira é Rainha do Bloco Afro Malê Debalê e Princesa do Bloco Afro Ilê Aiyê, da Bahia. Seu conhecimento traduz valores estéticos, historiográficos e políticos desses contextos, junto à noção de tempo, espaço, ritmo, musicalidade e diversidade corpórea, social e cultural.
Na atividade “Álbum de Família: práticas artísticas e fabulações”, que também fez parte do projeto “Maré Delas“, cada participante da oficina pôde explorar suas histórias pessoais e familiares, memórias e planos de futuro, por meio de exercícios práticos envolvendo fotografia, escrita e colagens. A oficina foi conduzida pela Renata Cavalcante, pesquisadora das artes e realizadora audiovisual que atuou com diversos projetos de cinema e educação.
Também realizamos um passeio para conhecer as “Tradições Caiçaras”, que renderam bons causos e ensinaram saberes preciosos sobre os rios, os mares, as marés e luas e a biodiversidade local. Ali conhecemos técnicas e estruturas de pesca, e contemplamos o encontro do Rio Guaratuba com o mar.
Em uma oficina aberta para os familiares de crianças do Programa Curumim, a chef Aline Chermoula realizou uma receita com base na Culinária da Diáspora Africana pelas Américas. Os laços de afetividade são reforçados a partir de práticas alimentares, fazendo do ato de cozinhar e comer um momento de conexão com ancestralidade africana em diálogo com nossa contemporaneidade.
Para trazer os saberes ancestrais dos povos originários para as crianças do Programa Curumim, realizamos uma atividade com os grafismos indígenas, apresentando essa escrita ancestral ainda viva nos dias de hoje e presente em vários momentos na cultura dos povos originários, como cerimônias, festas e encontros, buscando proteção do corpo físico e espiritual. Com o objetivo de compartilhar saberes de diferentes etnias e promover a interação dos participantes com perspectivas históricas diferentes, as oficinas tiveram como facilitadoras representantes do Povo Guarani da Aldeia Rio Silveira e também do Povo Tukano Ye’pa Mahsã.
No espetáculo teatral “O mundo começa na cabeça“, os atores e atrizes ora representaram personagens fictícios inspirados na literatura infantil contemporânea, ora representaram a si mesmos, retomando lembranças de sua infância e do impacto do racismo estrutural vivenciado diariamente em ambiente escolar. O espetáculo, que foi apresentado para as crianças do Programa Curumim, é uma concepção do Grupo Corpo Negro, da cidade de Franca (SP).
A atividade “Crianças Guardiãs“, realizada pelo Coletivo Trilhas de Oyá, trouxe a proposta de uma vivência única na natureza para as crianças, destacando o afroturismo, a preservação ambiental, os ensinamentos ancestrais e o respeito às diferentes culturas e religiões, contribuindo, assim, para uma conexão mais profunda das crianças com a natureza e suas raízes.
A vivência incluiu trilha na natureza, apresentação de plantas medicinais, contação de histórias, e pra fechar um lanche com amostras de comidas feitas com Pancs (Plantas Alimentícias Não Convencionais).
Quando falamos da ancestralidade em um contexto cultural, estamos lidando com um patrimônio mais amplo, que engloba os saberes, as línguas, as práticas espirituais, as formas de arte, a culinária, as festas, os mitos e outros elementos que são compartilhados por um grupo ou uma comunidade. Essa herança cultural, transmitida de geração para geração, não só define a identidade coletiva de um povo, como também representa sua resistência e sua adaptação ao longo do tempo. É por meio da ancestralidade cultural que preservamos memórias históricas e diferentes formas de viver. Essas heranças têm um valor inestimável para a construção de uma sociedade plural e rica em diversidade.
Para as crianças e jovens, compreender a importância de suas raízes é um passo fundamental para o fortalecimento de sua identidade e autoestima. Quando um jovem conhece as histórias de seus antepassados, seus desafios, suas vitórias e suas contribuições, ele é capaz de entender melhor o lugar que ocupa no mundo e o que pode construir no futuro.
“Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.” – Ailton Krenak
Falando de origens, a palavra curumim, derivada do tupi (kunumim) e utilizada para designar as crianças indígenas, também é o nome que batiza, desde 1987, o programa socioeducativo gratuito do Sesc São Paulo dedicado a receber crianças, na faixa dos 7 aos 12 anos. Com 37 anos de vida, o Curumim é pautado no diálogo e na construção coletiva, e atende hoje mais de 2.400 crianças inscritas em todo o Estado de São Paulo.
Protagonismo, experimentação, cooperação, convivência, autonomia e ludicidade, são os conceitos basilares no Programa Curumim do Sesc São Paulo. Tudo isso sem esquecer da essência da infância: a brincadeira. Afinal, o ser humano é um ser brincante por natureza, e é dessa forma que as crianças vão experimentando o mundo, se conhecendo e começando sua jornada pela vida. Talvez seja essa uma das respostas da pergunta que intitula este texto. Talvez o caminho comece brincando! Bora brincar?
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