*Por Ricardo Rodrigues Teixeira – médico sanitarista, professor doutor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
Da parceria entre o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP e o Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, nasceu o projeto de pesquisa “A reinvenção da vida e da saúde em tempos de pandemia – o lugar da cultura”.
Trata-se de uma investigação sobre os impactos da pandemia na vida e na saúde das pessoas e sobre as estratégias desenvolvidas para o enfrentamento desses impactos. O pressuposto teórico é de que o acontecimento pandêmico representa uma experiência coletiva disruptiva, que levou à suspensão de nossa vida “normal”, de nossa vida comum (na dupla acepção dessa palavra), mas também de que a vida, nessas circunstâncias, reage, buscando instaurar uma nova “normalidade”, ou ainda, a vida resiste inventando novos modos de perseverar na existência e expandir a sua potência, particularmente, buscando refazer a vida (em) comum. Nossa hipótese básica é de que, nessa pandemia, as “práticas e atividades culturais” e os “meios digitais” tiveram um papel primordial nas estratégias de reinvenção da vida e da saúde e de refazimento do comum.
Por um lado, partimos de uma concepção ampliada de saúde e, por conseguinte, de um “diagnóstico de saúde” ampliado, o que nos conduziu a realizar o que denominamos de uma cartografia do páthos: um mapeamento abrangente dos padecimentos dessa pandemia, das afecções inevitavelmente sofridas por força dos acontecimentos que se impuseram a todos, seja como problemas de saúde física e/ou mental, seja como afetos tristes e/ou outras emoções e sentimentos negativos (ou não), seja como impactos na vida prática (cotidiana e financeira), seja como impactos na vida social (relacionamentos). Por outro lado, buscamos fazer um levantamento, o mais fino e abrangente possível, das mudanças ocorridas em diversos hábitos do cotidiano: dos hábitos de cuidado com o corpo, a aparência e a saúde, aos hábitos digitais e de uso do tempo livre, culminando com um inquérito sobre a vida ativa, desejante e imaginativa na pandemia.
Para acessar essas vivências, optamos por utilizar como instrumento de produção de dados um questionário online (QOL) quanti-qualitativo. E para contornar algumas das limitações inerentes a este instrumento de pesquisa, buscamos construir um questionário que fosse também uma “atividade cultural”. Um questionário com elementos que o tornassem não apenas atrativo, mas cujo ato de respondê-lo tivesse um “valor de uso” imediato para o respondente. O caminho escolhido foi o de construir um QOL que servisse como uma “trilha de reflexão” sobre as transformações que se deram na vida e na saúde com a pandemia, utilizando-se de diferentes linguagens e formas de perguntar (questões de múltipla escolha e questões abertas, com uso de imagens e vídeos-acolhimento produzidos com artistas e profissionais da comunicação). Ao adotarmos esse caminho, assumimos um processo de produção de conhecimento indissociável de um movimento de produção de cuidado e apostamos na possibilidade da participação na pesquisa também vir a desempenhar uma certa função “terapêutica” para os respondentes.
Como resultado dessas inovações no instrumento de pesquisa, conseguimos obter um número relativamente alto de respondentes (1.118) para um questionário longo, e um forte engajamento no processo de respondê-lo, expresso pelo número significativo de respondentes que produziram extensos relatos escritos de suas experiências. A estes êxitos em relação à adesão e ao engajamento, somam-se os vários “feedbacks” recebidos sobre os efeitos “terapêuticos” operados pelo ato de responder ao QOL.
Evidentemente, os resultados fundamentais dessa investigação são aqueles relacionados aos conhecimentos produzidos a partir da significativa base de dados estruturados e textuais constituídos nesse levantamento e que são de duas ordens principais: em primeiro lugar, essa pesquisa representa um importante testemunho desse acontecimento histórico, documentando e sistematizando aspectos dessa vivência coletiva de vulnerabilização da vida e de produção de resistência; além disso, as análises dos dados obtidos nos fornecem pistas importantes sobre as reinvenções da vida em contextos de suspensão de sua “normalidade”, bem como a participação das práticas culturais nessas reinvenções.
Em relação a esses achados, destacamos, sinteticamente: a centralidade do sofrimento mental na experiência de saúde durante essa pandemia, expressa pela alta prevalência de problemas de saúde mental referidos pelos respondentes, pelo aumento significativo de preocupações com a saúde mental e a ampla gama de afetos e sentimentos negativos experimentados; em relação à saúde física, ganharam destaque as dores osteomusculares e o aumento de peso, quase sempre acompanhando quadro de ansiedade. As preocupações aumentadas com a saúde mental se devem a três motivos principais: diminuição do tempo livre e do lazer, excesso de exposição às telas e, principalmente, a percepção de prejuízos nas relações sociais. E no topo das preocupações aumentadas com a saúde em geral, o sedentarismo e o próprio risco de pegar e/ou transmitir Covid-19. Entre os sentimentos negativos, prevalecem os medos: de pegar e/ou transmitir Covid-19, de morrer e/ou de que entes queridos morram de Covid-19, medos relacionados à situação política e econômica do país, medo do porvir, além da tristeza pela catástrofe coletiva e o sentimento de impotência.
A pesquisa também fez um levantamento dos principais impactos na vida prática e social, detectando, como grande transformação da vida cotidiana, a intensiva “virtualização” de quase todas as esferas da existência, com destaque para o trabalho, o estudo e as atividades culturais e de lazer. Em relação aos hábitos cotidianos de cuidado com o corpo, a aparência e a saúde, as mudanças mais marcadas foram em relação a: comer (aumento significativo da quantidade, mas pouca mudança na qualidade); dormir (certa diminuição na quantidade e acentuada piora na qualidade); exercícios físicos/práticas corporais/atividades esportivas e cuidados com a aparência e o corpo (foram os hábitos mais impactados pela pandemia, com uma acentuada redução nos dois conjuntos de práticas/cuidados).
Em relação ao uso do tempo livre, também observamos comportamentos significativos, mas destacaremos alguns dos resultados das análises, que indicaram: uma forte associação entre a diminuição do tempo livre e a prevalência de problemas de saúde mental e algumas evidências de que ter ou não ter tempo livre é mais importante para a produção de saúde física e mental do que a natureza do que se faz nesse tempo livre.
Por fim, nos três últimos campos abertos do QOL, os participantes puderam escrever livremente sobre: (1) as invenções, descobertas, aprendizados e conquistas do período pandêmico; que incluem a construção de novos corpos, novas relações consigo e com os outros, assim como com outros seres vivos e com o planeta; novos estilos de vida e novas perspectivas existenciais; (2) sonhos e desejos para um mundo pós-pandemia; no qual foi possível mapear os valores, sentimentos, hábitos e sistemas que seriam abandonados ou trazidos para um mundo pós-pandêmico, assim como as atividades centrais para a efetivação desses novos valores em mudanças concretas (como transformações no campo das ações políticas, no campo do trabalho e nas interações virtuais). A produção de uma nova relação com o tempo (especialmente com a valorização do tempo livre, desacelerado e em presença), assim como a reinvenção dos espaços e bens comuns compunham o mundo sonhado após um possível fim da pandemia; e, finalmente, sobre (3) como imaginam que efetivamente será o mundo pós-pandemia. Neste campo, tivemos um pequeno conjunto de narrativas otimistas, que acreditam na potência e na capacidade criativa dos seres humanos, valorizam os avanços científicos e tecnológicos decorrentes da crise sanitária e acreditam que os aprendizados extraídos deste processo são mais importantes que suas perdas. Um outro conjunto de narrativas intermediárias apostam que estamos em uma necessária fase de transição para um mundo melhor, ou apresentam multiperspectivas, ponderando avanços e retrocessos previstos para o mundo pós-covid. A grande maioria das falas, infelizmente, concentra afetos pessimistas, apostando que a crise sanitária será agravada por crises emocionais, climáticas, políticas e econômicas, com forte crítica ao modelo político-econômico que interfere nas nossas relações em geral.
Chamamos a atenção para as diferentes formas de participação da cultura neste processo que atravessaram todos os blocos do QOL: primeiro, é possível perceber o quanto a cultura capitalística/neoliberal e a cibercultura, foram determinantes para cada um dos resultados sintetizados anteriormente, sendo que tanto as emoções percebidas, os padecimentos físicos e mentais, quanto as mudanças na vida prática na pandemia foram alimentadas e alimento para as relações de produção que sustentam os pilares desta cultura contemporânea em agenciamento pandêmico. A introdução de elementos da cultura sanitária na vida cotidiana, incluindo o conjunto de restrições impostas pelo contexto de isolamento e distanciamento social tiveram impacto importante na utilização de espaços conviviais e, portanto, limitando as possibilidades de trocas culturais coletivamente compartilhadas.
Por outro lado, diferentes atividades culturais foram apontadas como centrais para os processos de reinvenção de si e dos modos de viver na pandemia, em especial as atividades artísticas, as atividades formativas, e as atividades de cuidado (práticas corporais e de saúde) tanto na esfera individual quanto coletiva.
O evento de apresentação dos principais resultados aconteceu no teatro do Sesc Vila Mariana (R. Pelotas, 141 – Vila Mariana, São Paulo) no dia 7 de abril de 2022, às 19h.
A ação contou com a participação especial dos artistas que acompanharam o questionário da pesquisa, prevendo uma imersão em uma experiência cultural, com música, debate, reflexão e ciência.
Confira como foi:
Participantes:
Ricardo Rodrigues Teixeira – médico sanitarista, professor doutor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
Rogério da Costa Santos – filósofo, professor e vice coordenador do PEPG em Comunicação e Semiótica da PUC/SP.
Sabrina Ferigato – terapeuta ocupacional, doutora em Saúde Coletiva e Docente do Departamento de Terapia Ocupacional da Ufscar.
Giovanna Togashi – mestre e doutora em Ciências pela USP e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.
Jair de Souza Moreira Júnior – mestre e doutor em Ciências pela FOUSP e pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.
Participações especiais:
Adriana Couto – Apresentadora e repórter do Metrópolis da TV Cultura.
Rael – Cantor e compositor brasileiro.
Rita Von Hunty – Drag Queen, youtuber e professora.
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