Os milhares de raios e perfumes do sol

08/07/2021

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Bento Araújo é escritor, jornalista, pesquisador e podcaster. Começou tocando em bandas e trabalhando em lojas de discos, até fundar a Poeira Zine, uma publicação impressa e independente sobre música. Seus textos, ensaios e entrevistas foram publicados nos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, e nas revistas Bizz e Rolling Stone, entre outras. Desde 2009 produz o podcast poeiraCast. Como palestrante, mediador e curador, participa de eventos pelo Brasil e pelo mundo. Seu livro Lindo Sonho Delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil (1968–1975), publicado em português e em inglês, foi vendido em mais de 40 países. Ele nasceu, cresceu e continua vivendo em São Paulo, Brasil.

Nascimento. Nada mais apropriado para nomear o elepê de estreia de um novo e promissor grupo, Perfume Azul do Sol, lançado no mítico ano de 1974. Antes da explosão do pop rock oitentista, do “rock de bermuda”, e de fenômenos extremamente populares como Blitz, RPM e Lulu Santos, o rock brasileiro teve um período de cheia em 1974, ou melhor, teve a maior descarga de adrenalina e criatividade juvenil desde os tempos de Jovem Guarda e Tropicália.

Logo no início daquele ano, Secos & Molhados, o maior fenômeno do rock brasileiro até então, realizou um concerto grandioso no Maracanãzinho, Rio de Janeiro, batendo um recorde de público jamais visto no Brasil. Cerca de 25 mil fãs entraram e outros milhares ficaram do lado de fora. O show virou disco e se tornou um marco na história do show business nacional. Também em 1974, o trio saiu em turnê internacional, que, segundo Ney Matogrosso, gerou oportunidades de criar uma carreira sólida também fora do Brasil.

O disco de estreia deles, lançado no ano anterior, vendia mais que Roberto Carlos, algo também inédito até então. A demanda era tanta que a gravadora derretia discos encalhados do seu catálogo para poder prensar mais LPs dos Secos & Molhados. A crise do petróleo, em 1973, deixou as gravadoras sem matéria-prima para fabricar seus discos. Mas a trajetória da banda foi fulminante, como uma estrela cadente que cruzou o céu de um Brasil nebuloso, para depois sumir numa escuridão de processos judiciais e farpas trocadas pelos integrantes na imprensa. Depois de um segundo LP, a banda terminou melancolicamente.


“Pena sustenta uma teoria interessante, a de que sucessos daquela magnitude não são previstos, ou perceptíveis. São, na verdade, ‘desígnios insondáveis da ciência do inusitado e do gosto popular pelo impensável’”.


No entanto, o fenômeno Secos & Molhados desencadeou uma febre de rock pelo país. Gravadoras, selos, jornais, revistas, rádios, emissoras de TV, empresários… Todos queriam se envolver e “descobrir” uma nova banda que pudesse embarcar no vácuo deixado por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad. A quantidade de discos de estreia lançados em 1974 é surpreendente: Made In Brazil, Som Nosso de Cada Dia, Casa das Máquinas, Moto Perpétuo, Ave Sangria, A Barca do Sol, Achados e Perdidos, Assim Assado e… Perfume Azul do Sol. Era a corrida do ouro. Aquele foi também o ano de discos emblemáticos como Gita (Raul Seixas), A Tábua de Esmeralda (Jorge Ben), Molhado de Suor (Alceu Valença), Lóki? (Arnaldo Baptista) e Atrás do Porto tem uma Cidade (Rita Lee & Tutti Frutti), entre outros.

Segundo o produtor Pena Schmidt, que trabalhou com os grandes nomes do rock brasileiro, aquela explosão de Secos & Molhados e de Raul Seixas foi totalmente imprevista, pois não fazia parte de nenhuma estratégia de gravadora. Pena sustenta uma teoria interessante, a de que sucessos daquela magnitude não são previstos, ou perceptíveis. São, na verdade, “desígnios insondáveis da ciência do inusitado e do gosto popular pelo impensável”. Para ele, aquelas manifestações sonoras de 1974 vieram em oposição ao caminho natural/histórico da música brasileira, surgidas após ruptura e caos. É por isso que, para muitos, parecia que aquele pessoal todo, aquela nova geração, havia saído de uma nave espacial.

Mais de dez anos antes da primeira edição do Rock In Rio, conhecido como o megaevento que colocou o Brasil na rota dos shows internacionais, o ano de 1974 trouxe também uma invasão internacional de apresentações: Alice Cooper, Miles Davis, The Jackson Five, Tom Jones, The Stylistics, George McCrae, Demis Roussos etc. Já a turnê de David Bowie por aqui foi cancelada tão em cima da hora que os jornais chegaram a divulgar as datas das apresentações.

A lisérgica capa do LP lançado pelo selo Chantecler da gravadora GEL | Imagem: Lair Miranda

O rock conquistou outra vitória naquele ano histórico quando a Folha de São Paulo abriu espaço para uma página/coluna semanal dedicada ao estilo, com textos do saudoso Carlinhos “Pop” Gouvêa. Graças à coluna, Carlinhos ganhou imensa projeção no underground da época. Em um de seus ensaios, publicados como um balanço de 1974, ele escreveu: “Este ano ficará na história do rock nacional, pois foi um ano de explosões, revelações e muito trabalho. Particularmente para o nosso movimento, o Brasil teve um ‘developement’ (sic). Cerca de 20 álbuns de grupos nacionais foram gravados, 30 novos grupos surgiram, foram realizados por volta de 300 concertos (quase um por dia) e foram vendidas mais de um milhão de cópias de discos brasileiros”.

Nesse embalo foi lançada a revista quinzenal Rock — A História e a Glória, tendo em seu primeiro número os Rolling Stones na capa. Acompanhando a revista, o Jornal de Música e Som, trazia uma entrevista com o lendário DJ/VJ Big Boy, responsável por apresentar as músicas mais quentes do momento para a garotada. No time de colaboradores da revista estavam Ana Maria Bahiana, Ezequiel Neves, Okky de Souza, Luiz Carlos Maciel etc. A publicação foi fundamental para a divulgação do rock no Brasil e também por trazer longas e detalhadas biografias dos artistas abordados.

A poderosa Rede Globo também percebeu o crescimento do rock no país e lançou o programa Sábado Som, visando aumentar sua audiência jovem. Apresentado por Nelson Motta (depois por Big Boy) e exibido “em cores”, aos sábados, sempre às 15h, o programa apresentava tapes de shows, filmes e programas de emissoras internacionais adquiridos pela Globo. Era o próprio Nelson Motta que selecionava os tapes e ainda fornecia “informações corretas e oportunas sobre os artistas apresentados”, segundo publicou a revista Pop. A estreia de Sábado Som marcou época, com a exibição do filme do Pink Floyd ao vivo entre as ruínas de Pompeia, na Itália. Depois vieram apresentações de Joe Cocker, David Bowie, Beatles, Rolling Stones, The Who e Suzy Quatro, que naquele ano também se tornou popular no Brasil, onde seu elepê de estreia vendeu bastante.

Primeira edição da Rock — A História e a Glória para ouvintes sedentos de informação sobre a nova cena que estava se formando | Imagem: Reprodução/Mercado Livre

Na TV Cultura, de São Paulo, o barato acontecia por conta do TV-2 Pop Show, culpa de um jovem de 27 anos chamado Luís Fernando Magliola. Todo em cores, o programa semanal apresentava os melhores momentos de bandas como Grand Funk Railroad, Black Sabbath, Rolling Stones e The Who pelos palcos europeus e norte-americanos. Entre uma exibição e outra, a garotada ficava inteirada das novidades do mundo do rock. No plano de Magliola estava incluir também tapes de bandas brasileiras tocando pelo país. Além disso, a programação educativa da TV Cultura abria espaço para a música jovem no programa Música e CIA. Ilimitada. Foi nesse programa que o Perfume Azul do Sol realizou sua mítica e única apresentação, infelizmente perdida nas areias do tempo, como tantos outros registros negligenciados da música brasileira.

O Perfume Azul do Sol é uma banda que ainda permanece rodeada de lendas e mistérios. O quarteto foi formado em São Paulo, pelo casal Ana Maria Guedes (voz e piano) e Benvindo (voz e violão). As composições da dupla atraíram Moracy do Val, empresário que estava sem saber como investir o dinheiro que havia levantado com os Secos & Molhados. Naquela altura, Moracy era um dos mais bem-sucedidos empresários do show business nacional. Havia trabalhado com Paulo Machado de Carvalho, diretor-proprietário da TV Record, na missão de trazer shows de grandes estrelas da música internacional ao Brasil. Sua experiência, agenciando os mais diversos tipos de artistas, propiciou uma sagaz capacidade de avaliar as disparidades de produtos musicais de nicho e de massa. Foi através desse tino comercial que ele alçou os Secos & Molhados ao estrelato, levando-os de sensação do underground paulistano ao fenômeno pop que conquistou o país.

Contracapa do primeiro e único LP da banda | Imagem: Reprodução

Atraído pela música e pela proposta artística/estilística do Perfume Azul do Sol, Moracy do Val disponibilizou um imóvel para que o grupo pudesse ensaiar o tempo necessário. Da influência do empresário logo surgiu um contrato com a Chantecler, que decidiu lançar o LP de estreia do conjunto: Nascimento.

As gravações, produzidas por Magno Salerno e Antonio Carlos de Carvalho, aconteceram nos estúdios Sonima e Estúdios Reunidos, este último, já chamado de “o nosso Abbey Road”, localizado no quarto andar do prédio da TV e Rádio Gazeta, o famoso “Paulista 900”, na avenida mais famosa da cidade de São Paulo. Amplo e com uma ambiência que fornecia uma espécie de “assinatura” sonora nas canções lá registradas, era o local onde diversas bandas de sucesso gravavam seus hits, principalmente bandas e artistas que cantavam em inglês, como Lee Jackson, Mac Rybell, Morris Albert e Terry Winter.


“Boatos dão conta de que apenas 120 cópias foram prensadas, o que tornou a prensagem original uma das mais disputadas pelos colecionadores.”


Além de Ana Maria Guedes e Benvindo, faziam parte do Perfume Azul do Sol o guitarrista Jean e o baterista Gil. Nascimento traz participação especial de Pedrão Baldanza no contrabaixo, naquela altura já um veterano das bandas de baile e também um ex-integrante dos Novos Baianos. Mas 1974 ficou marcado como o ano em que Pedrão Baldanza apresentou Snegs, o LP de estreia do Som Nosso de Cada Dia, o trio progressivo que ele liderava ao lado de Manito e Pedrinho Batera. Nascimento também traz participações da esposa de Pedrão, Marcinha, nos vocais de apoio e de Daniel Salinas, na “assistência musical e colocação de metais e flauta”.

Os metais aparecem já na abertura do LP, “20.000 Raios de Sol”, composição de Benvindo contendo um groove comandando pelo baixo de Pedrão, um grande apreciador do grupo norte-americano de rock-funk-soul Tower of Power. É possível captar a influência de Francis Rocco Prestia, baixista do Tower of Power, na linha de baixo de Pedrão. A interpretação cativante de Ana traz um tempero no estilo de Baby Consuelo em sua época de Novos Baianos. É, sem dúvida, uma abertura impactante.

“Sopro”, composição do guitarrista Jean, tem um andamento similar àquele contido no disco de estreia de Jards Macalé. A próxima faixa, “Calça Velha” (de Benvindo e Ana) segue em parte essa estética, mas com uma letra deliciosamente desbundada:

“O que eu tiver eu lhe dou
Não é preciso pedir
Só resta saber
Se você pode aceitar
Vista sua calça velha
Cheia de manchas e caminhos
Ponha o som no olhar
E siga o rumo da estrada mais bela”.

“Deusa Sombria”, originalmente uma canção perturbadora na linha do Black Sabbath, começou como um esboço de Lizardo Alberto Lopes e Chico Lobo, integrantes da Corsa Branca, banda que ensaiava no mesmo prédio que o Perfume Azul do Sol. Depois do lançamento de Nascimento, a Corsa Branca passou até a acompanhar Ana e Benvindo, numa outra versão do Perfume. A versão contida no disco ganhou novos arranjos de piano.

Já “O Abraço do Baião”, a segunda e derradeira composição de Jean no álbum, segue um caminho oposto. Tem letra divertida, em comunhão com o ritmo descompromissado e alegre.

O lado B inicia com o forró psicodélico de “Equilíbrio Total”, onde Benvindo coloca na mesa toda a sua bagagem: baião, coco, ciranda, forró e muita tradição nordestina. A faixa título, o momento mais lisérgico e destemido do disco, é uma orgia de metais, ritmos e vocalizações. Se “Nascimento” trazia, em parte, alguma influência da psicodelia norte-americana da Costa Oeste, “Pé de Ingazeira” está mais para a produção nacional abençoada e disseminada por Lula Côrtes, seu coletivo Abrakadabra e seu selo Solar. Está inserida naquele contexto de Satwa, Paebirú, No Sub reino dos Metazoários e Flaviola e o Bando do Sol.

O restante do disco vai seguindo essa vibração. “Canto Fundo” surge com grandes guitarras de Jean, que também brilha no encerramento com “A Ceia”, um acid folk que faria a cabeça e o coração de Devendra Banhart e Joanna Newsom. A música apresentada em Nascimento é uma genuína forma de psicodelia, sem muita influência do rock internacional e com ênfase no folclore brasileiro.

O elepê, lançado pela Chantecler, foi distribuído entre amigos, familiares, lojistas e alguns profissionais da imprensa musical da época. Boatos dão conta de que apenas 120 cópias foram prensadas, o que tornou a prensagem original uma das mais disputadas pelos colecionadores. No entanto, é difícil acreditar que um selo relativamente grande e popular como a Chantecler prensaria apenas 120 exemplares de um disco. Qual seria a razão de um grande investimento em um novo grupo terminar dessa forma?

A verdade é que Moracy do Val, o “coringa” que poderia ter proporcionado um final diferente para essa intrigante história, gastou pouco tempo com o Perfume Azul do Sol. Optou por investir na carreira do Moto Perpétuo, outro promissor grupo que lançou seu único álbum naquele ano e que revelou um dos maiores nomes do pop brasileiro: Guilherme Arantes.

No início deste novo século, Nascimento foi parte do que os colecionadores lá fora chamam de Brazilian psychedelic record digging revolution, ou seja, parte do momento em que DJs, produtores e colecionadores do mundo todo invadiram o Brasil para comprar “discos perdidos” da música psicodélica brasileira.

O Perfume Azul do Sol durou cerca de dois anos e meio e não realizou shows, apenas aquela única apresentação na TV Cultura. Depois de mudanças na formação e desavenças entre os integrantes, o conjunto sumiu completamente do cenário, sem deixar rastro.

Benvindo faleceu em 2012, vítima de um câncer. Ana Maria Guedes faleceu em 2017, justamente quando aconteceu o que parecia impossível, o tão aguardado relançamento, em vinil, de Nascimento. A tiragem inicial se esgotou rapidamente, provando que o interesse dos colecionadores pela música do Perfume Azul do Sol continua em alta pelo planeta, que segue ainda assimilando os raios e os aromas emanados por aquela trupe misteriosa.

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