Irineu Franco Perpétuo conta da vasta e generosa obra de Gilberto Mendes
Irineu Franco Perpétuo é escritor, pesquisador, jornalista e tradutor. Colabora com o jornal Folha de São Paulo, o Teatro Municipal de São Paulo, além de ser jurado do programa Prelúdio da TV Cultura, desde 2013.
Se tivermos que associar o conceito de vanguarda musical a um compositor brasileiro, terá que ser a um gentleman bem-humorado, referência para as gerações posteriores tanto como professor, como pelo referencial ético e estético: o santista Gilberto Mendes (1922–2016). As novidades europeias do pós-guerra, chamadas em alemão de Neue Musik, foram traduzidas para o português como Música Nova, e viraram um manifesto que marcou época e um festival que sobreviveu ao falecimento de seu criador.
Nascido no ano da Semana de Arte Moderna, Gilberto pareceu, assim, fadado a desafiar e superar o legado nacionalista dos modernistas. Mas não ficou preso ao diagrama mental das vanguardas da década de 1960: ao longo de uma trajetória felizmente longa, soube reinventar sua linguagem musical, recuperando as referências de mocidade que tinham ficado sufocadas na época do radicalismo mais militante, em uma mistura bastante pessoal que não parece despropositado classificar de pós-moderna.
“Provavelmente ninguém praticou mais o mote ‘é proibido proibir’ do que Mendes ao longo de uma longa vida e uma arte igualmente longa, parafraseando o provérbio”, escreveu João Marcos Coelho, em O Estado de São Paulo, logo após a morte do compositor, arrematando: “Em seu caso, a vida e a música são igualmente decisivas para o nosso tempo”.
No mesmo texto, Coelho afirma que “Gilberto Mendes é tão decisivo e fundamental para a cultura brasileira quanto qualquer outro grande nome das artes plásticas, da literatura, do teatro e do cinema”, uma frase que teria deixado o compositor especialmente satisfeito.
Afinal, incomodava-o extremamente a invisibilidade da música erudita contemporânea no Brasil. Em um artigo de título provocador — “E acabou, mesmo, a música erudita?” (2012) –, Mendes chegou a escrever que “a nova classe social dominante de nosso tempo, rica, universitária, seus escritores, professores, enfim, seus intelectuais, preferem Caetano e Chico Buarque, desconhecem totalmente a possível música erudita que esteja sendo escrita por novos compositores de nosso tempo”. E sintetizou: “o compositor erudito de hoje tem assim de competir com a sofisticada música popular de hoje, que tem a vantagem de conservar aquele emocional tonal da música de alto repertório, mais aquela poderosa comunicação imediata, legado do velho jazz, dos Beatles, da Bossa Nova”.
Talvez levado por essa angústia, dentre seus pares, Gilberto Mendes seja um dos que melhor está documentado. Há um número razoável de gravações de suas obras e uma boa bibliografia a seu respeito, incluindo dois livros de autoria do próprio compositor, a respeito de sua trajetória, escritos com uma prosa estilosa e sincera: Uma Odisseia Musical: dos Mares do Sul Expressionista à Elegância Pop/Art-Déco (Edusp, 1994) e Viver Sua Música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à Avenida Nevskiy (Edusp, 2008). Além disso, fã inveterado de cinema, acabou tendo filho cineasta. Carlos Mendes imortalizou o pai no documentário A Odisseia Musical de Gilberto Mendes (2005) e, em 2012, por ocasião de seu 90o aniversário, fez 90 anos 90 vezes Gilberto Mendes, série de 90 clipes disponíveis no YouTube em que o compositor discorre sobre diversos assuntos. Essas são as pistas que nos vão guiar ao longo do breve itinerário sonoro proposto pela poética de Gilberto Mendes. Não para fazê-lo “competir com a sofisticada música popular de hoje”, mas simplesmente para garantir seu lugar na produção musical brasileira. Um lugar que se impõe como privilegiado — de honra.
“Eu era um bancário que compunha nas horas vagas”
Desde Ludwig van Beethoven (1770–1827), tornou-se quase um clichê dividir-se a produção dos grandes compositores em três fases, e a de Gilberto Mendes não é exceção. O pianista Antonio Eduardo dos Santos (em O Antropofagismo na Obra Pianística de Gilberto Mendes) e o regente Lutero Rodrigues (em As Canções de Gilberto Mendes) adotam divisões muito parecidas, que nos servirão de base aqui. Começaremos, então, pelo que Santos chama de Fase de Formação (1945–1959), e Rodrigues, de Formação Inicial (1945–1957).
Mendes esteve muito longe de seguir o modelo do “gênio precoce”, do menino-prodígio. Matriculou-se no Conservatório Musical de Santos, mas flertou com o Direito e a Sociologia. Estudou composição com Claudio Santoro (1919–1989) e Olivier Toni (1926–2017), mas jamais perdeu de vista a necessidade de subsistência, garantida como foi funcionário da Caixa Econômica Federal. “Eu era um bancário que compunha nas horas vagas”, gostava de dizer, brincando.
Rodrigues divide essa fase inicial de Mendes em um primeiro momento “Cosmopolita” e um segundo “Nacionalista”. Dentre as primeiras, estão incluídas Episódio, canção de 1949, sobre texto de Carlos Drummond de Andrade; ou peças para seu instrumento, o piano, como a Sonatina (Mozartiana), de 1951, inspirada pela Sonata em dó maior K. 545, de Mozart, e definida por Antonio Eduardo como “uma ‘tradução’ dessa obra do mestre austríaco, uma leitura muito pessoal da forma, enriquecida com ritmos e melodias de caráter brasileiro. Uma verdadeira paródia bem-humorada, que fala do seu amor a Mozart”.
Já ao momento “Nacionalista” correspondem canções que se aproximam da música popular, com um jogo rítmico que parece mais próximo dos autores nacionalistas brasileiros do pós-guerra do que de Gilberto Mendes, como Peixes de Prata (1955), com versos de Antonieta Dias de Moraes, e Lagoa (1957), mais uma criação inspirada por Carlos Drummond de Andrade. No geral, as obras da primeira fase de Gilberto Mendes apontam menos para a radicalidade que marcaria sua produção da década de 1960 do que para o caráter nostálgico que ela adquiriria a partir dos anos 1980.
A Meca das vanguardas musicais do pós-guerra era a cidade alemã de Darmstadt, em cujos cursos de verão o compositor francês Pierre Boulez (1925–2016) e o alemão Karlheinz Stockhausen (1928–2007) pregavam o serialismo integral, a música eletroacústica e todo o pacote de radicalismos estéticos conhecidos como Neue Musik. Depois de peregrinarem a Darmstadt, em 1962, Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira (n. 1938) e Rogério Duprat (1932–2006) trouxeram ao Brasil essas novidades europeias — com um toque norte-americano, representado por John Cage (1912–1992) Nas palavras de Rodolfo Coelho de Souza, “a viagem de Mendes e Oliveira a Darmstadt, em busca do serialismo de Boulez e Stockhausen, acabou por encontrar, em vez dele, a música aleatória de Cage. Para todos os efeitos, Cage é o precursor dos experimentalismos da vanguarda paulista dos anos sessenta e setenta, endossado pelo patronato dos poetas concretistas que também encontravam afinidades na vertente literário-filosófica do compositor”.
Abriu-se, então, o que Rodrigues chamou de Vanguarda Experimental (1962–1978), e Antonio Eduardo, de Fase de Experimentalismo (1960–1982). Mendes fundou, em 1962, o Festival Música Nova, que segue a existir até hoje, enquanto, no ano seguinte, foi publicado o Manifesto Música Nova, que firma “compromisso total com o mundo contemporâneo”, e explicita ligação com o grupo Noigandres, dos poetas concretos Décio Pignatari (1927–2012), Augusto (n. 1931) e Haroldo de Campos (1929–2003). Na ligação com Pignatari e os irmãos Campos, Mendes proclamou residir a originalidade da Música Nova brasileira com relação à congênere europeia: “eles nem tinham à sua disposição textos da qualidade daqueles que a poesia concreta nos oferecia. Era uma invenção nossa, original, portanto, não uma imitação do que se fazia na Europa, que é o que sempre dizem das obras de vanguarda terceiro-mundistas”.
Não por acaso, foi a partir de textos dos concretos que Mendes escreveu algumas de suas obras corais de maior sucesso, como Nascemorre (Haroldo de Campos, 1963), Cidade (Augusto de Campos, 1964, incluindo um liquidificador, uma enceradeira e ventiladores em sua instrumentação), Vai e Vem (José Lino Günewald, 1969, reunindo fita magnética, toca-discos e instrumentação variada) e, especialmente, o anti-jingle Beba Coca-Cola (Pignatari, 1966), em que o consumo do refrigerante é satirizado pelo uso de diversos efeitos, como fala, arroto e a repetição da palavra cloaca.
Talvez a obra mais emblemática da aleatoriedade em sua poética seja Blirium (palavra inspirada “ao mesmo tempo num determinado remédio ou num possível asteroide a ser descoberto”, que Mendes mais tarde adotaria como seu endereço de e-mail), de 1964/5, existente em três versões: A-9, para doze cordas; B-9, para doze instrumentos diferentes; e C-9, para um ou três teclados ou instrumentos iguais, e até seis instrumentos diferentes. Sem partitura escrita, Blirium consiste apenas em indicações para o/s intérprete/s, de modo que cada execução soará forçosamente diferente. Nas palavras de Edino Krieger, Blirium foi “talvez a mais bem-sucedida das composições aleatórias produzidas no Brasil”.
Com uma estética à qual não faltam elementos de bom humor e de teatro musical, Mendes obteve êxito também com Santos Football Music (1969), estreada por Eleazar de Carvalho no Festival Outono de Varsóvia, em 1973, que reproduz um jogo de futebol, sobrepondo o som orquestral atonal, tocado ao vivo, a gravações de locutores esportivos. Além do regente principal, um segundo, no palco, indica ao público, por meio de cartazes, as expressões de torcida que ele deve reproduzir, enquanto os instrumentistas da orquestra, no fim, devem simular ações da partida — o que inclui expulsão, cobrança de pênalti e uma bola a ser cabeceada pelo regente (há uma foto antológica de Eleazar fazendo isso).
Como o autor descreveu: “Santos Football Music integra, numa só experiência, quase todos os dados mais característicos da música de vanguarda da segunda metade do século — entre os que lhe são mais caros — como o som concreto (em fitas magnetofônicas, as três locuções esportivas), o som orquestral atonal, sem melodias (um magma sonoro em permanente transformação, sempre diferente), a participação do público na execução da obra (um segundo regente indica por meio de cartazes o que deve ser feito por ele), o teatro musical (os músicos, no final, fazem o simulacro de um jogo de futebol) e um novo grafismo para a notação de toda essa trama contrapuntal; à qual ainda se agrega uma charanga no meio do público, que toca ritmos de escola de samba, à maneira do que se ouve num estádio”.
Santos Football Music revela uma das facetas mais evidentes da produção de Gilberto Mendes, e uma expressão que se tornou quase um clichê obrigatório nas referências ao autor: o bom humor. Em Asthmatour (1971), para coro, com texto de seu filho Antônio José Mendes, Gilberto brinca com uma doença que o acometia: a asma. Foi definida por ele mesmo como uma “polifonia de gargarejos, bocejos, suspiros, a dispneia da asma”, culminando em um jingle da agência de viagens que dá nome à obra. Essa ironia se manifesta em várias obras de caráter cênico que ele compôs nessa época. Mendes descreve, por exemplo, Objeto Musical — Homenagem a Marcel Duchamp (1972) como “espécie de invenção a duas vozes, entre um ventilador e um barbeador elétrico”, onde “o intérprete termina por levantar a perna sobre o ventilador e finge urinar em cima dele”. Em Son et Lumière (1968), uma pianista/manequim desfila constantemente, sem tocar o piano, perseguida por dois paparazzi, que a fotografam. E Ópera Aberta (1976), em homenagem a Umberto Eco, traz uma cantora lírica vocalizando e um halterofilista se exercitando no palco; no final, o halterofilista sai de cena, carregando a cantora, esperneando em cima do seu ombro, mas sem deixar de cantar.
Gilberto Mendes já estava com 59 anos em 1981, quando o Teatro Municipal de São Paulo encomendou-lhe um concerto para piano. Em vez de repisar as fórmulas de sucesso, o compositor saiu-se com uma peça altamente original. Na descrição de Rodolfo Coelho de Souza: “A técnica empregada é serial, mas paradoxalmente o material original serializado tem raízes tonais, o que produz uma linguagem híbrida, instigante e peculiar. Não é, todavia, uma obra fácil, nem para o ouvinte nem para o intérprete”.
Começa aí a terceira fase de sua produção, chamada por Rodrigues de Pesquisa de Uma Música Semântica, e, por Antonio Eduardo, de Fase de Trans-Formação. Uma fase que a longevidade de Mendes permitiu ser longa, e incluiu obras refletindo seu engajamento político de décadas, como Vila Socó, meu amor (em resposta à tragédia ocorrida em Cubatão, em 1984), Mamãe eu quero votar (para a campanha das Diretas Já, em 1984), O Último Tango em Vila Parisi (happening orquestral de 1987 denunciando as condições de vida de um bairro pobre de Cubatão) e Vão Entregar as Estatais (1985).
Temos ainda a firme presença do minimalismo norte-americano, revelada em obras como a abertura Issa (1995), que deveria servir para uma ópera jamais concluída, com libreto de Décio Pignatari, e que estaria centrada na figura do poeta japonês de haicai Kobayashi Issa (1763–1827). As repetições de caráter minimalista também se fazem ouvir nas peças em que ele homenageia compositores do passado, como O Meu Amigo Koellreutter (1984, para soprano, marimba e percussão) e as pianísticas Viva Villa (1987) e Il neige… de noveau! (1988, um tributo a Henrique Oswald).
Esteticamente, esse Gilberto Mendes “tardio” parece se definir por uma mescla de estilos que é tentador definir como “pós-moderna”. Em suas obras, convivem, de forma justaposta, o serialismo, o minimalismo, a bossa nova e as trilhas sonoras de cinema e a música popular de sua juventude, incluindo o cabaré alemão e o foxtrote. O recurso ao popular não se traduz em crossover: é apenas um dos ingredientes sonoros a que o compositor recorre em sua linguagem. Como ele mesmo escreveu, em 2008: “na verdade, faz algum tempo que já não componho música, conforme ela é convencionalmente entendida”. Procedimento que ele chamava de metalinguagem: “como se estivesse fazendo comentários sobre os gêneros e estilos musicais que tanto amo”. Como, por exemplo, a suíte sinfônica Scheherazade, de Kórsakov, submetida a um engenhoso jogo de reminiscências no quinteto com piano Rimsky, de 2006.
O ecletismo de suas referências reflete-se desde cara nos títulos de suas obras, como Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour (para grupo de câmara, 1988, posteriormene reelaborado para piano solo) e Um estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do sul (para piano solo, 1989, em que Mendes parte dos universos díspares de dois discípulos de Schönberg, o alemão Hanns Eisler (1898–1962), com sua música tonal a serviço do comunismo, e o serialista austríaco Anton Webern (1883–1945), de produção abstrata e refinada, para sintetizá-los em um surpreendente final que soa à música hollywoodiana dos anos 1940). Escrita logo depois do Concerto para piano, Vento Noroeste (1982), para piano solo, é quase uma suma poética da literatura pianística, sobrepondo referências fugazes a Chopin, Schumann, Liszt e Debussy, com referências à bossa nova e ao foxtrote. O Pente de Istambul (1990), para duo de percussões (posteriormente reelaborado para piano solo como Estudo sobre o Pente de Istambul) é estruturada a partir de material serial, logo envolvido em inesperada ambiência de música popular — o que parece ilustrar a reflexão mais geral de Antonio Eduardo sobre essa fase do compositor: “Gilberto Mendes encara o sistema atonal como uma projeção e expansão do sistema tonal, promovendo o que ele denomina integração entre os dois sistemas, na medida em que, para o compositor, tonal e atonal não são antagônicos. O resultado é um discurso sonoro que flui naturalmente entre os dois universos harmônicos, dialeticamente”.
Por esse panorama sonoro — que está longe de ser completo –, é possível perceber que Gilberto Mendes mobilizou sua vasta cultura musical a serviço da construção de uma linguagem extremamente original e pessoal. E tudo que fazia era imbuído de forte carga de convicção e entrega. Como afirmou um de seus mais ilustres discípulos, o compositor Flo Menezes: “Ao longo de todos esses anos de convívio, aprendi com Gilberto uma das lições mais lindas e substanciais que um jovem pode aprender com um Mestre de seu calibre: que a autenticidade de suas motivações estéticas e políticas, por mais que delas se possa, em alguma medida, discordar ou se distanciar, traduz-se como conditio sine qua non da própria autenticidade artística, pois só assim pode-se exercer a Arte sem comprometimentos espúrios, sem concessões fáceis e com uma profunda verdade de linguagem e de espírito”.
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