O DIRETOR E DRAMATURGO ESTREIA O ESPETÁCULO LÍNGUA BRASILEIRA, UM PASSEIO POÉTICO PELO NOSSO IDIOMA, CRIADO EM PARCERIA COM O COLETIVO ULTRALÍRICOS A PARTIR DA MÚSICA DE TOM ZÉ
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Ao questionar padrões e abraçar questionamentos provocados pela arte, Felipe Hirsch se vale da máxima “ser é ousar ser”, escrita pelo alemão Hermann Hesse (1877-1962), prêmio Nobel de Literatura. Neste mês, o diretor de teatro e de cinema, dramaturgo e produtor estreia o espetáculo Língua Brasileira, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação. Concebida a partir da canção homônima de Tom Zé, do álbum Imprensa Cantada (2003), e criada em parceria com o Coletivo Ultralíricos, a peça traz uma dramaturgia tecida pelas raízes do idioma brasileiro: desde remotas origens ibéricas, passando pelos romanos, bárbaros e árabes, pela África e América nativa. “É uma dramaturgia poética no sentido que usamos textos, poemas e preces em todas as línguas que passaram por esse caminho, que formaram esse caminho. Então, a gente começa com cosmogonias porque é sempre bom lembrar que essas línguas já habitavam os continentes africano e europeu, mas sobretudo das línguas nativas, porque está na hora de a gente entender que não fomos descobertos há 500 anos”, explica Felipe. Além dessa parceria entre o diretor e o músico tropicalista, outros dois projetos chegarão ao público neste ano. O primeiro é um disco de composições inéditas de Tom Zé, do qual Felipe participou como diretor artístico, e o segundo é um documentário sobre as origens da língua brasileira (fruto das pesquisas para o espetáculo), com o apoio do Museu da Língua Portuguesa, do Sesc São Paulo e da TV Cultura. Nesta Entrevista, Felipe Hirsch fala sobre esses trabalhos, sobre seu processo criativo baseado na literatura e na música, e compartilha reflexões sobre teatro online e a cultura na era do streaming.
A peça Língua Brasileira deveria ter estreado em 2020, mas foi adiada por causa da pandemia. Como foi esse processo?
Na verdade, ela vai estrear quase dois anos depois, já que a estreia seria em fevereiro de 2020. Esse processo começou porque o Tom tinha assistido a alguns espetáculos meus e gostado muito. Obviamente, considero o Tom Zé uma das maiores referências da minha vida e da vida cultural do país. Sou absolutamente fã e o fato de que ele tenha assistido às minhas peças era um motivo para me aproximar dele e mostrar o que eu estava fazendo. Mais recentemente, uma companhia que dirigi no Chile veio fazer Democracia na Mostra Internacional de Teatro e o Tom não pode ir porque estava no sul do país em turnê, mas ele foi muito carinhoso, mandou discos para todos os atores, com dedicatórias, e disse a ele que podíamos nos encontrar depois. Até que, por fim, nos reunimos. A princípio, a gente ia fazer um trabalho sobre Estudando a Bossa (2008), um disco muito bonito. Mas, no início desse processo, descobri a música Língua Brasileira, que está no álbum Imprensa Cantada e que não faz parte de maneira evidente do repertório-conceito do disco. Porque todos os discos do Tom são muito conceituais, ele parte de um assunto e o desenvolve. É uma música, digamos assim, “solo” do Tom e, claro, ele teve motivos para colocá-la naquele disco. Bem, aquilo me impressionou muito porque além de ser uma das músicas mais bonitas que eu já ouvi do Tom Zé – e ele considera os versos mais bonitos que já escreveu –, de alguma forma era um passo na direção do que a gente vinha fazendo com os Ultralíricos.
Como se deu essa parceria?
Esse coletivo de artistas criou a série Puzzle, de 2013 a 2015, que são textos sobre textos literários brasileiros; depois fez A Tragédia e Comédia Latino-Americana sobre textos de toda ordem latino-americanos; e, em seguida, principalmente, fez Selvageria, um espetáculo baseado em documentos históricos brasileiros da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e dos verbetes da Bibliografia Brasiliana, pesquisada por Rubens Borba de Moraes. Sobre este último, nós traduzimos muitos documentos para o português e é um espetáculo que lamento ter sido um pouco ceifado pela pandemia, porque a gente cancelou cinco temporadas dele. Já o Língua Brasileira foi quase um passo natural, uma descoberta de uma quarta parte, uma tetralogia não prevista, mas que foi acontecendo e se tornou essa nova parte do Coletivo Ultralíricos.
Você sentiu algum tipo de cobrança ou responsabilidade ao criar um espetáculo que fala sobre a complexa teia que forma a língua portuguesa no Brasil?
Quando me dei conta de onde eu tinha me metido, ou seja, falar sobre o desenvolvimento da língua brasileira, da língua portuguesa-brasileira, eu passei a não dormir, o que já era difícil para mim. Pensei: “Não vou conseguir fazer isso só com as pernas, mãos, cabeças de todos os artistas que ali estão envolvidos. Ainda assim, preciso de muitos auxílios”. E a primeira pessoa que me ocorreu foi Caetano Galindo [escritor, tradutor e professor, Galindo é doutor em linguística pela Universidade de São Paulo], porque, além de ser um dos grandes tradutores e filólogos no Brasil, ele tem uma proximidade muito grande com a minha juventude. Sou carioca, mas me mudei para Curitiba e lá eu andava com os mais velhos, uma turma leminskiana de poetas e outras pessoas que estavam ali em torno de Paulo Leminski [poeta e escritor curitibano; 1944 a 1989]. E tinha uma turma mais jovem com a qual a gente fazia “bullying” porque estudava grego e a gente achava o fim da picada falar grego aos 18 anos de idade. Essa era a turma do Caetano Galindo. Mas, brincadeiras à parte, sempre admirei muito o Caetano e pensei que ele poderia ser um grande conselheiro, digamos assim, nessa história. Prontamente ele entrou na jogada, trazendo um material rico, um tesouro, porém deixou muito claro que a ordem da pesquisa dele se dá muito mais nas línguas europeias e nos indicou a professora Yeda [Pessoa de Castro], autora do livro Falares Africanos na Bahia – Um Vocabulário Afro-Brasileiro (Topbooks, 2001), para ser nossa grande conselheira em relação ao tronco de línguas africanas, como o banto, iorubá e jeje, além da relação com as línguas nativas, para as quais tivemos vários tradutores e conselheiros, especialmente Eduardo Navarro. Tem uma lista técnica muito grande de consultores, muita gente com amor pelo tema.
Você parte da canção de Tom Zé como inspiração para começar uma investigação sobre os troncos da formação da língua brasileira?
Exato. Além da música, porque Tom Zé fala sobre toda essa formação da língua brasileira, esse trabalho acabou se dividindo em três partes. A primeira seria a peça para a qual, antes da pandemia, o Tom faria três músicas inéditas e nós também trabalharíamos com algumas músicas do repertório dele que, de alguma maneira, já se relacionavam com o tema. Só que começou a pandemia e a peça foi interrompida dez dias antes da estreia. O Tom deu algumas entrevistas nas quais ele até fala que nem notou o que acontecia porque estava enclausurado trabalhando e que acabou fazendo 11 músicas sobre o tema da peça. Ou seja, um disco inteiro inédito. Aí, um belo dia, ele me disse que queria fazer o disco Língua Brasileira e falei: “Tom, para mim é um orgulho imenso que você decida isso. Eu não sei o que vai acontecer com a peça, e o disco é um material que não pode ficar parado”. Isso abriu um novo caminho para a Língua Brasileira. Além da peça, que agora está voltando, acontece também agora, naturalmente, o lançamento de um disco do Tom Zé e ele me chamou para ser o diretor artístico com ele. Tenho o maior orgulho disso. Então, durante a temporada do espetáculo, vai sair esse disco. Outra coisa também aconteceu: a pesquisa foi tão interessante, nos envolvemos com pessoas tão importantes que pensam a formação da língua brasileira, que a gente acabou ganhando o apoio institucional do Museu da Língua Portuguesa, do Sesc São Paulo, da TV Cultura e da RTP. Então, a gente começou a fazer um documentário sobre essa pesquisa e devemos lançá-lo no segundo semestre. Conversamos com essas pessoas que nos apoiaram, que nos deram consultorias sobre a língua brasileira. Porque a peça, ela não explica, ela não é acadêmica e diz: “A língua veio daqui e depois foi pra lá”. A peça em si é um passeio poético.
E como você descreveria a dramaturgia desse espetáculo?
É uma dramaturgia poética no sentido que usamos textos, poemas e preces em todas as línguas que passaram por esse caminho, que formaram esse caminho. A gente começa com cosmogonias, porque é sempre bom lembrar que essas línguas já habitavam os continentes africano e europeu, mas sobretudo das línguas nativas, porque está na hora de a gente entender que não fomos descobertos há 500 anos. Aí a gente passa a usar exemplos e textos de toda ordem da cultura dessas línguas que formaram o que Olavo Bilac chama de “esplendor e sepultura” – uma definição maravilhosa do Brasil: a sepultura é formada por esses dois holocaustos, um do povo nativo e o outro do povo escravizado. Hoje temos mais de 100 línguas em processo de extinção no Brasil, segundo a Unesco. Então, a gente usa o apiacá como exemplo, uma língua que tem apenas dois ou quatro falantes no país ainda. O Brasil é essa grande sepultura que ainda nos marca, embora a gente não consiga perceber e entender o quanto. Ao mesmo tempo, é inegável o esplendor da mistura. É inegável o esplendor da nossa língua, e do povo brasileiro, a partir dessa mistura, ainda que a base dela seja trágica. A gente usa vários exemplos dessas línguas formadoras.
Como essa experiência da língua é passada para a plateia?
Uma grande diferença é que a gente traduz alguns desses exemplos, desses trechos cujo conteúdo nos interessa passar para quem assiste, para a plateia. Outras partes são mais de ordem sensorial porque nos interessa mostrar que a língua começa com uma sensação oral, algo remotamente distante do português e que vem se aproximando do que falamos hoje quando ela encontra o latim. É como se a peça navegasse por todos esses idiomas, tanto de ordem auditiva quanto de maneira sensorial: você começa a perceber a aproximação com o português até o português-brasileiro porque, a partir do Brasil, chamamos de português-brasileiro, já que no século 20 você começa a ter uma sofisticação que vai desaguar nisso.
Na sua pesquisa, você também investiga a uniformização da língua provocada pela televisão?
O que acontece é que não só a televisão, mas também o desenvolvimento tecnológico nos aproximaram muito do anglicanismo. Na peça, a gente chega aí. Também falamos da influência latino-americana, que é mais recente. As segundas migrações do século 20, provocadas pela Primeira e Segunda guerras mundiais, de imigrantes italianos e japoneses, entre outros, tudo isso trouxe também características à língua brasileira, embora já tenha ouvido falar de nossos linguistas consultores que essas não são influências de ordem formativa. Já nesse final do século 20 e início do século 21, a tecnologia perpassa tudo e seu linguajar é o inglês. Não só o inglês como também a língua tecnológica. Então, hoje a gente fala em blockchains, em token, em job, fora expressões diárias, como stand up. Com certeza fomos atravessados por esses elementos e isso se deve à influência enorme da cultura americana nas nossas televisões e em toda linguagem tecnológica. Agora, tem outra coisa: o que a televisão fez – e imagino que você tenha perguntado por isso –, ela de alguma maneira passou a levar a cultura, principalmente da Região Sudeste para todo o Brasil, o jeito de falar etc. Hoje tenho uma dúvida em relação a essa influência: a televisão está ficando para trás, ela é usada numa condição muito diferente da condição do século 20. Acho que a maior influência atualmente é da cultura americana, que está cada vez mais forte, algo que se percebe pelos streamings, que estão ganhando uma força gigantesca. Mesmo a televisão, que monopolizava nossa cultura diária, está perdendo força em relação a essas corporações.
A partir da música Língua Brasileira, de Tom Zé, nasceu a colaboração entre o compositor, Felipe Hirsch e o Coletivo Ultralíricos. Desse trabalho em conjunto surge uma epopeia dos povos que formaram a língua que falamos: seus mitos e suas cosmogonias, passando pelas remotas origens ibéricas, por romanos, bárbaros e árabes, pela África e América nativa. Um passeio pelo inconsciente do português brasileiro, suas graças e tragédias, seu “esplendor e sepultura”, o espetáculo também marca a retomada das temporadas teatrais no Sesc São Paulo. (De 6 de janeiro a 20 de fevereiro, quintas, sextas e sábados, às 20h; domingos, às 18h, no Sesc Consolação. Classificação indicativa: 14 anos)
Na pandemia, foi notável o alcance das plataformas de streaming e como boa parte do mundo estava assistindo aos mesmos conteúdos. Você acha que esse comportamento gera um empobrecimento do conhecimento?
Concordo. Sou talvez muito desagradável quando falo sobre esse assunto porque, quando critico, sou muito rígido em relação ao domínio da linguagem dos streamings. Falo sobre isso, e as pessoas respondem: “De fato, acho que você tem razão”. E, logo em seguida: “Mas você viu essa série?”. Então, parece que ando com vários “zumbis” consumidores de séries de segunda e terceira linha. Meu ponto é que as pessoas que comandam esses streamings no Brasil não podem ser simplesmente escolhidas pelas suas capacidades acadêmicas expostas no LinkedIn. Elas têm que entender muito bem a nossa cultura e porque é importante fazer séries ou filmes com características da nossa cultura. Poxa, a gente construiu uma história com o Cinema Novo, o Cinema Marginal para na retomada passar a responder com padrões de produção norte-americana? Eu não vejo por quê. Então, é possível fazer, inclusive séries de entretenimento, não estou falando de séries intelectualizadas. A gente pode fazer uma série incrível de entretenimento que tenha a cara do nosso país, que não pareça uma tradução malfeita de algo que produções de fora fazem melhor. Não fui picado por esse vício, sou dinossauro mesmo. Eu não maratono nada. Isso não quer dizer que não existam bons trabalhos. Obviamente, eles existem, mas gostaria que os artistas brasileiros, tão talentosos, estivessem produzindo as séries que de fato façam sentido no Brasil. E acho que, aos poucos, eles estão entendendo isso.
Como foi fazer teatro para ser exibido pela internet, por meio de plataformas de streaming?
Fiquei muito comovido com a vocação dos artistas, não exatamente com as obras. Eu assistia às obras e pensava criticamente como aquilo não havia sido pensando para o streaming. Nós não tivemos tempo para elaborar, embora essa linguagem já estivesse em transição havia muito tempo, embora essas fronteiras estivessem caindo, nós não tivemos tempo para pensar aquilo que a gente viu durante a pandemia para o vídeo. É importante que a gente entenda e reconheça que a presença no teatro é essencial porque você lida sensorialmente com todos os sentidos. Ali no vídeo não. Ali estamos falando de audiovisual e a gente tem que entender o que a gente pode sublinhar nessa linguagem, inclusive para ser mais interessante no caráter audiovisual do que no teatro, embora o resultado se transforme em outra coisa. Mas não, a gente improvisou. E o que me comoveu nesse processo foi a vocação que os artistas têm, a relação deles com a obra no teatro, de manter essa chama acesa. Porque o teatro nunca vai acabar. O teatro passou por todas as guerras, por todas as pestes. O teatro passou por tudo. Quem não passa somos nós. Nós vamos ficando pelo caminho. Então, dois anos de pandemia para o teatro não é nada diante de tudo por que o teatro passou. Para nós, esse período significa uma parte considerável da nossa vida. Acho que quem estava ali (nas plataformas de streaming) em xeque eram os artistas e não o teatro.
Voltando ao espetáculo Língua Brasileira, qual a relação que você estabelece entre este e outros de seus trabalhos, como Selvageria, A Tragédia e Comédia Latino-Americana? O que interliga esses espetáculos?
Por 20 anos, tive a Sutil Companhia e nosso maior interesse era trazer os jovens para dentro do teatro. A gente fez espetáculos muito importantes e, principalmente, trouxe muita gente para o teatro, para se interessar pelo teatro. Então, nosso público era de toda ordem e formado por muitos jovens. Tenho muito orgulho disso. Só que depois de 20 anos, eu estava exausto de ir para uma sala de ensaio e do método um pouco tradicional de repetição. Eu estava exausto disso, e era muito centralizador. O Coletivo Ultralíricos começou a partir de um convite para participar da Feira de Livro de Frankfurt em 2013, porque eu tinha um projeto sobre literatura brasileira e um curador do Sesc, o Antonio Martinelli me convidou para estar com um time maravilhoso de artistas naquele ano em que Brasil era o convidado de honra da feira. Foi lá que nós fizemos a primeira peça da tetralogia, Puzzle, sobre literatura brasileira. Isso aconteceu um pouco de surpresa, mas me revelou coisas. Primeiro que eu poderia voltar a ter prazer numa sala de ensaio, porque de fato o processo se coletivizou. A gente começou a lidar com mais de 100 artistas de toda ordem: atores, designers gráficos, pintores… Muita gente veio do processo da Sutil Companhia, como Daniela Thomas, Guilherme Weber, Verônica Julian, pessoas que já trabalharam comigo. Nós nos juntamos e o processo passou a ser de mesa, de pesquisa, de experimentação. Aliás, quando me peguei experimentando já foi tarde na minha vida, mas isso me trouxe um prazer imenso. Vou a um ensaio hoje com muito prazer.
Tom Zé sempre foi um artista à frente de seu tempo. Radicado em São Paulo desde os anos 1960 – quando acompanhou Caetano Veloso e fez parte do espetáculo Arena Canta Bahia (1965), de Augusto Boal –, Tom estava presente na gênese do movimento tropicalista e teve um início de carreira bem-sucedido com o LP Grande Liquidação (1968). Por vezes, entretanto, ele dependeu primeiramente de um olhar estrangeiro para a compreensão e apreciação de sua obra no Brasil. Durante os anos 1970, caiu no ostracismo conforme seus álbuns se tornavam cada vez mais ambiciosos. Foi em meados dos anos 1980 que se deu a primeira intervenção estrangeira em sua trajetória. David Byrne, ex-líder da banda Talking Heads, descobriu, por acaso, o álbum Estudando o Samba em uma de suas vindas ao Brasil e, durante os anos 1990 e 2000, se tornou uma peça fundamental na construção da carreira internacional do artista brasileiro. Tom Zé, o Último Tropicalista (Edições Sesc São Paulo) conta esta e outras histórias sobre o artista nascido em Irará, na Bahia. Fruto de outro olhar vindo de fora sobre sua obra, a biografia escrita pelo jornalista e pesquisador italiano Pietro Scaramuzzo, traz memórias e histórias a partir de uma cronologia, discografia e fotos. A publicação ainda conta com um texto introdutório do próprio Tom Zé e um prefácio escrito por David Byrne.
Saiba mais: www.sescsp.org.br/edicoessesc.
Como você desenvolve temas que não são aparentemente dramatúrgicos e os coloca no palco? Como é esse processo de deglutição?
Acho que tudo pode resultar nesse processo, mas não é fácil. Você tem que mergulhar na ideia e, a partir daí, você vai buscar a linguagem dela, o que vai aproximá-lo de uma forma. É raro que eu comece pela forma, embora isso possa acontecer. Às vezes, começo pela música. E a música tem essa propriedade e capacidade de chegar até você com uma mediação intelectual menor – mesmo o dodecafonismo de Arnold Schoenberg. A música bate no seu emocional muito mais rápido que no intelectual. Então, às vezes, esse processo começa com uma música. Sinto que dirijo e crio muito a partir dessa linguagem. Mas é quase sempre um desenvolvimento a partir da ideia para então, buscar a linguagem e a forma. E às vezes a ideia não chegou estruturada com uma dramaturgia convencional. Às vezes, você tem que preparar o terreno para isso. Tenho como influências grandes dramaturgos como Shakespeare, Beckett… Percebo que alguns materiais não têm evidentemente uma forma dramatúrgica e eles podem se transformar no palco em algo, podem se revelar. Não é fácil. O próprio Língua Brasileira me parece um concerto sensorial, da ordem da audição: ele entra mais pela musicalidade do que por uma história dramatúrgica. Esse é nosso trabalho: construir essa dramaturgia e, para isso, a gente fica meses discutindo, conversando, pesquisando.
Como se dá esse olhar e esse trabalho que parece esculpir as interpretações dos atores?
Tenho alguns caminhos. Trabalho com um grupo de atores que já têm uma história e com atores que me desafiam a conhecê-los. A teoria teatral tem muitos clichês e um deles é: “Tal pessoa dirige ator e tal pessoa não dirige ator”. Isso é um facilitador muito equivocado quanto ao trabalho de direção porque, primeiro, para mim, lidar com atores é lidar com seres humanos que estão sujeitos a todas as intempéries do momento, sejam elas emocionais ou culturais. Qual o interesse daquele ator naquele momento em que ele está fazendo a peça? Como está o emocional dele? Como ele está pensando e vendo o mundo? Qual o interesse dele naquele trabalho? É uma quantidade tão grande de variantes que fazem o momento do ator que é impossível imaginar que você tenha apenas uma técnica para dirigir atores. Existem processos fracassados de direção de ator porque naquele momento você não consegue lidar com o que ele precisa e existem momentos em que você tem que se aproximar tanto que é um trabalho de 24 horas, para além dos ensaios. É sobre convidar aquela pessoa para dentro, para somar-se à ideia principal do trabalho. Dirigir atores é complexo.
Dentre todas essas características particulares do seu trabalho, o que você acha que atrai tanto o público?
Eu me recuso a acreditar em fatores facilitadores que, por exemplo, você vê nos streamings e na televisão brasileira desde sempre. Continuo lutando contra isso, contra essas ideias do que pode arrastar o público para dentro, do que pode ser popular. Quando comecei a fazer espetáculos de quatro, cinco horas de duração, foi justamente quando se falava que um espetáculo “tinha que ter uma hora”. E assisti a espetáculos de uma hora que eram insuportáveis, pareciam ter oito horas. Também vi espetáculos de quatro ou cinco horas que passaram rápido. A questão é o que você vai apresentar para as pessoas. “Ah, mas isso aqui é muito difícil para esse público. Isso aqui é nichado.” A gente ouve essas besteiras e às vezes a classe artística aceita esse tipo de situação. Ao aceitar isso, você começa a colocar parâmetros inexistentes e equivocados. Acredito que se eu fizer um espetáculo sobre temas que pareçam ser árduos, a gente pode ter mil pessoas assistindo com muito interesse, e todo tipo de gente, de todas as classes sociais. É esse preconceito em relação ao público que leva à criação de nichos e, consequentemente, vai se falar: “Viu como a atenção do público é decadente?” Agora nos streamings há a história de que nos cinco primeiros minutos você tem que prender a atenção do público, senão ele desiste [da série ou filme]. Só que sempre vem um exemplo de fora que contradiz essa regra. Isso também acontece muito na cultura norte-americana. Para cada um que transgride [esses parâmetros], você tem 100 mil pessoas fazendo simulacros, e é óbvio que o transgressor é o mais pop. As coisas estouram de baixo para cima. O interesse que a gente tem na pessoa é o fato de ela ser única. Só você tem a sua educação sensorial. É isso que você tem que mostrar e não tentar ser outra pessoa. Tento mostrar o que vejo, penso e como eu sinto o mundo.
Leia a seção Encontros com Tom Zé, publicada na Revista E no 294, de abril de 2021, e assista aos vídeos dessa conversa com o músico no canal do YouTube do Sesc São Paulo: https://www.youtube.com/watch?v=-vVRUEXRIZs&t=6s.
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