Milly Lacombe e Guilherme Freitas lançam outros olhares sobre o futebol

31/03/2023

Compartilhe:

Leia a edição de abril/23 da Revista E na íntegra

Parece ser só futebol, mas um dos esportes mais populares do mundo desdobra-se em múltiplos significados. É que naquele campo, seja de barro, grama ou piso, seus praticantes – 11 de um lado e 11 de outro – dão variados contornos a tudo que envolve o jogo, dentro e fora das quatro linhas. Aos olhos da arquibancada, o que acontece durante os 90 minutos pode ser questão de “vida ou morte”, uma confraternização entre amigos ou a memória afetiva da primeira vez no estádio, de mãos dadas com o avô.

Entre apitos, pênaltis, bicicletas e outros passes, a história da bola em campo inspira variadas expressões artísticas. Seu legado está registrado no Museu do Futebol, em São Paulo; protagoniza diversas crônicas de Nelson Rodrigues (1912-1980), pioneiro em coroar Pelé como o “Rei do Futebol”; embala a música de Jacob do Bandolim (1918-1969), que impressionado pelos dribles de Garrincha (1933-1983), compôs o choro A ginga do mané. E, mais recentemente, inspirou o  cineasta Gabriel Martins, que em Marte Um (2022) coloca o futebol como pano de fundo para refletir sobre desigualdade social.

A partir da amplitude de cores vestidas pelo uniforme do futebol, entram em campo no Em Pauta deste mês dois entusiastas do tema. Em um dos artigos, o pesquisador Guilherme Freitas, autor de As seleções de futebol da União Europeia: identidade, migração e multiculturalismo através da bola (Dialética, 2022), lança seu olhar sobre a Copa do Mundo realizada em 2022, no Catar. “Trata-se de um evento histórico que sempre refletiu dentro de campo e nas arquibancadas o que se passa no mundo; uma grande aula de ciências humanas para se compreender a complexidade de nossa sociedade e se chegar a novas reflexões”, analisa Freitas.

O outro texto é assinado pela jornalista, escritora e comentarista esportiva Milly Lacombe, que se dedica à poesia das “miudezas” do jogo, sem deixar de apontar para os desafios da atualidade. “Valor de premiações, orçamentos, de compra e de venda de jogadores, casas de apostas nas quais se pode arriscar dinheiro no número de escanteios por jogo, no número de chutes a gol por partida…Estamos sendo convidados a fazer uma autópsia de cada jogo, usando planilhas e cálculos. Esse futebol não é exatamente futebol. É alguma coisa outra que não permite uma história em palavras, que mata a poesia e não deixa nenhum tipo de prosa nascer”, observa.

Todos prontos? Apita o juiz… bola em campo!

O futebol e suas histórias

Por Milly Lacombe

Toda partida de futebol é um multiverso de histórias. A partida em si, do começo ao fim, mas também cada um dos lances, o gol feito, o gol evitado, o drama de uma contusão, a falta violenta que rendeu expulsão, a torcida em transe, a torcedora que chora, o torcedor que levanta o filho sobre a cabeça para celebrar o time que entra em campo.

A forma como essas histórias são contadas, o olhar que é colocado em cada uma delas, é também futebol. Tudo é narração e contexto.

Há quem goste de contar a história com números, dados, estatísticas. Não me interessa muito esse ângulo cheio de concretudes, mas reconheço que existe nele um valor.

O que me intriga mesmo é a miudeza de cada lance, de cada toque na bola, de cada abraço dado depois de um gol.

Eduardo Galeano (1940-2015) e José Miguel Wisnik são meus escritores prediletos para falar do jogo.

Em Futebol ao Sol e à Sombra [L&PM Pocket, 2004] e em Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil, [Companhia das Letras, 2008], eles desnudam, respectivamente, o futebol e revelam ao leitor a alma de um jogo no qual o pequeno pode, a qualquer momento, vencer o grande.

A poesia contida no barulho da bola que explode na trave. A tragédia do gol contra numa final. O pênalti perdido na hora derradeira. A virada de jogo no último minuto.

Dor e desespero. Alegria e alívio. Transe. Vertigem. Gozo. Morte. Vida.

O futebol é uma cartilha para a dureza do dia a dia e, ao mesmo tempo, seu escape. Nele aprendemos a ganhar e a perder. Ganhar fala do ego; perder fala da alma.

O antropólogo Hilário Franco Júnior tem um livro incontornável para quem gosta de futebol: um recorte que vai do filosófico ao psicológico, passando pelo histórico e pelo antropológico [A Dança dos Deuses: Futebol, Sociedade, Cultura, Companhia das Letras, 2007].

O jornalista estadunidense Franklin Foer escreveu Como o futebol explica o mundo: Um olhar inesperado sobre a globalização [Zahar, 2005] e o olhar bastante estrangeiro para quem nasceu na terra do baseball – ainda que ele seja um apaixonado pelo soccer – faz o livro ser imperdível.

Mas talvez quem mais tenha captado a alma desse esporte seja o dramaturgo Nelson Rodrigues.

Como se trata de um homem do século passado, é preciso se aproximar dele com alguma ressalva no que diz respeito ao machismo e à misoginia que emprega, mas ainda assim é impossível não se deliciar com sua ironia, seu humor e com a beleza da lente que usa para ver o jogo.

Está em Nelson o encontro mais apoteótico entre futebol e literatura.

Da beleza de um lateral bem batido à fúria com que lida com a derrota de seu Fluminense.

A forma como analisa a torcida e a voz rouca e apaixonada que vem da arquibancada e de nenhum outro lugar nesse mundo. A terreirização do concreto, os corpos descontrolados, as almas que, por 90 minutos, já não se permitem domesticar.

O futebol de hoje está se afastando dessa poesia, invadido pelo universo das coisas objetivas.

Valor de premiações, orçamentos, de compra e de venda de jogadores, casas de apostas nas quais se pode arriscar dinheiro no número de escanteios por jogo, no número de chutes a gol por partida… Estamos sendo convidados a fazer uma autópsia de cada jogo usando planilhas e cálculos.

Esse futebol não é exatamente futebol. É alguma coisa outra que não permite uma história em palavras, que mata a poesia e não deixa nenhum tipo de prosa nascer.

Um jogo que não pode virar crônica não foi de fato um jogo, e seria preciso que nos impuséssemos contra esse estado brutal de coisas.

Uma luta inglória, dirão alguns.

Sim, pode ser. Mas não se entra em uma luta para ganhar ou perder. Assim como em uma partida de futebol, entra-se na luta por ser a coisa certa a se fazer.

O futebol insiste e resiste. Enquanto houver a chance de ser contado em sensações, enquanto houver um começo, um meio e um fim, haverá espaço para a boa luta.

Como diz o poeta Sérgio Vaz, “futebol a gente não vê; futebol a gente sente”.

E, sentindo, alguns de nós conseguem colocar a bola no chão e fazer poesia com ela.

Milly Lacombe é escritora, roteirista, corintiana e feminista. Graduada em rádio e TV, trabalhou como comentarista esportiva na Globo e Record, colaboradora da Folha de S.Paulo em Los Angeles, diretora de redação da Revista Tpm e roteirista do programa Amor&Sexo. É autora de cinco livros, entre eles o romance O ano em que morri em Nova York (Planeta, 2017).

Copa do Mundo 2022: uma relação entre o futebol e as ciências humanas

Por Guilherme Freitas

O craque, a taça e a bisht compõem uma imagem que ficará eternizada na memória de quem assistiu à final da Copa do Mundo de futebol masculino no dia 18 de dezembro de 2022. Após uma das maiores partidas da história, a Argentina superou a França e conquistou seu tricampeonato mundial. Na hora de levantar a tão cobiçada taça, o capitão Lionel Messi foi abraçado por Tamim bin Hamad Al Thani, Emir do Catar, que o vestiu com a bisht, uma vestimenta cultural local que é oferecida a guerreiros após uma difícil vitória e utilizada pela família real catari em situações especiais.

Para muitos não passou de uma singela homenagem a um dos maiores jogadores de todos os tempos. Porém, a cena também representou o que foi este Mundial no Catar, uma competição que não se limitou apenas às quatro linhas e que discutiu temáticas ligadas à sociedade, costumes e política. A cena de Messi erguendo a taça trajado com a bisht talvez seja o desfecho perfeito desta controversa Copa do Mundo.

A obscura escolha do Catar como sede do Mundial, a situação dos trabalhadores migrantes no país, o não respeito pelos direitos humanos, a acusação de sportwashing por parte dos cataris e a questão dos atletas com descendência estrangeira nas seleções foram alguns dos assuntos mais comentados ao longo das partidas no Oriente Médio, tanto na opinião pública, quanto na imprensa. E, consequentemente, também no meio acadêmico, com pesquisas e artigos científicos sendo produzidos nos mais diversos campos das ciências humanas, confirmando a teoria do sociólogo Pierre Bourdieu que certa vez disse que o “esporte não está alheio à sociedade”.

Falando nisso, as questões sociais foram muito debatidas neste Mundial. Com uma população muito pequena, aproximadamente 2,7 milhões de habitantes, o Catar sempre necessitou de mão de obra estrangeira para desenvolver sua economia. Em pouco tempo, foi de uma modesta paisagem de vilarejo no deserto para um emaranhado de arranha-céus luxuosos graças à exportação de gás e petróleo. Parte deste desenvolvimento teve grande colaboração de migrantes oriundos de países como Índia, Bangladesh e Nepal, que vão para lá visando melhores condições de vida e trabalho.

Atraídos por maiores salários em relação a seus locais de origem, estes trabalhadores não tiveram seus direitos respeitados. Denúncias registradas por veículos de mídia ocidentais e organizações de direitos humanos revelaram péssimas condições de habitação somadas a extensas horas de trabalho debaixo de um sol de mais de 40°C. Esta condição análoga à escravidão provocou muitas mortes. Números da rede britânica BBC apontaram mais de 6,5 mil óbitos de trabalhadores entre 2014 e 2020. Por outro lado, o governo catari afirma que apenas 37 trabalhadores faleceram. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), aproximadamente 50 milhões de pessoas no mundo estão sujeitas à condição de trabalho análogo à escravidão, um assunto urgente que teve na Copa do Mundo uma importante vitrine.

Ainda no campo dos direitos humanos, outro tema bastante abordado ao longo da Copa do Mundo foram os costumes do país-sede. Em um Estado onde ser homossexual é crime e as mulheres não têm os mesmos direitos que os homens, havia o interesse em saber qual seria o comportamento do Catar em relação a estas questões tão díspares de seu dia a dia. Nos estádios, a bandeira arco-íris, símbolo da comunidade LGBTQIA+, foi vetada. Jogadores europeus também não puderam usar uma braçadeira de capitão em apoio à causa, o que gerou protesto de atletas alemães. Mulheres iranianas protestaram contra o regime de seu país nos estádios e houve relatos de mulheres na mídia ocidental que sentiram insegurança no país, ante outras que declararam se sentir seguras no país, segundo a mídia local, em meio a uma posição neutra da FIFA.

Esta Copa do Mundo também foi um excelente campo de pesquisa para compreender os impactos da globalização na sociedade. Todas as 32 seleções que disputaram o Mundial tinham atletas que atuavam em ligas estrangeiras; 28 tinham pelo menos um atleta do time nascido em outro país, entre elas, todas as seleções africanas com vários jogadores nascidos na Europa. Pela terceira Copa do Mundo seguida, todas as equipes do continente europeu tiveram pelo menos um atleta migrante em seus elencos.

De volta a um Mundial após 36 anos, o Canadá exibiu uma jovem equipe formada por atletas descendentes de diversos países, e o autor do primeiro gol canadense em Mundiais foi justamente um refugiado: Alphonso Davies. Refugiados que também estiveram presentes na equipe australiana, sendo quatro de 23 jogadores. Outra seleção com uma história curiosa foi Gana, que antes do Mundial mapeou descendentes de ganeses pelo mundo e os ofereceu a naturalização, semelhante a uma política de Estado que busca repatriar os filhos da diáspora ganesa pelo mundo.

Mas talvez a situação que mais tenha chamado a atenção do público sobre essa globalização do futebol tenha sido o caso de jogadores que marcaram gols contra os países onde eles nasceram. Breel Embolo nasceu em Camarões e imigrou jovem para a Suíça com a mãe. Ele marcou o gol da vitória suíça diante dos camaroneses e não comemorou. Nascido na França e criado na periferia em meio à grande colônia tunisiana no país, Wahbi Khazri foi o autor do único gol da Tunísia no triunfo ante os franceses, e celebrou bastante seu gol. Duas histórias semelhantes, porém com contextos muito diferentes.

O caso de Khazri também traz à tona a tensa relação entre colônia e colonizador. Faz emergir um ressentimento histórico e social de décadas, hoje visto na figura do nativo e do migrante nas grandes cidades da Europa. E casos assim ainda potencializam a xenofobia e o racismo vividos por parte da comunidade marroquina na Bélgica, Espanha e França ao celebrar a histórica campanha de sua seleção e dos jogadores franceses negros descendentes de migrantes, que perderam seus pênaltis na final e foram atacados nas redes sociais.

Por fim, vale mencionar o uso do esporte por parte do governo catari como estratégia de alavancar seu soft power, e do sportwashing do país, usando a Copa do Mundo para “lavar” a imagem do Catar perante o mundo.

A Copa do Mundo não é apenas um gigante e lucrativo torneio esportivo. Trata-se de um evento histórico que sempre refletiu dentro de campo e nas arquibancadas o que se passa no mundo. Trata-se de uma grande aula de ciências humanas para se compreender a complexidade de nossa sociedade e se chegar a novas reflexões. Talvez por isso ela seja tão apaixonante.

Guilherme Silva Pires de Freitas é autor do livro As seleções de futebol da União Europeia: identidade, migração e multiculturalismo através da bola (Dialética, 2022) e doutorando em mudança social e participação política pela Universidade de São Paulo (USP).

A EDIÇÃO DE ABRIL/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de ABRIL/23 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.