O décimo segundo disco do compositor, cantor e violonista baiano Vicente Barreto, “Paleolírico“, chega às Lojas Sesc em CD e também estará disponível nas plataformas de áudio e Sesc Digital a partir de 23 de setembro.
Vicente tem uma longa trajetória como compositor e um vasto repertório de parcerias com artistas da música popular brasileira, como Vinicius de Moraes, Tom Zé, Alceu Valença, Paulo César Pinheiro. Esse último, parceiro frequente, compartilha com Vicente a autoria da faixa Roda de Capoeira, que veio à tona no começo de setembro como single para anunciar a nova empreitada do violonista.
O repertório acompanha uma investigação arqueológica das memórias musicais mais antigas do compositor nascido em Salgadália, distrito de Conceição do Coité, no interior da Bahia, mas criado na cidade de Serrinha. O disco tem onze canções, 10 inéditas, e inclui uma homenagem a Niède Guidon, arqueóloga franco-brasileira conhecida mundialmente por sua luta pela preservação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. Há também no álbum uma composição com um poema de Miró da Muribeca, escritor e poeta pernambucano falecido no último mês de julho.
“Nesse caminho de retorno às paisagens da infância, me deparei com a ideia de um instrumento que existe no Nordeste, chamado sanfona de oito baixos, ou sanfona Pé de Bode. Essa sonoridade, que eu ouvia desde criança, é parte de uma atmosfera presente nas minhas lembranças mais antigas, relacionadas à música e aos cantadores, e foi a partir dela que eu comecei a compor esse disco. A sanfona Pé de Bode foi o mote e o esqueleto desse novo álbum. E eu trago a dinâmica dessa sanfona para o meu violão”, explica Vicente.
Curiosamente, na empreitada de busca pelas origens sonoras, Vicente aponta para o futuro ao aliar-se a uma nova geração de parceiros, como seu filho Rafa Barreto, Maria Beraldo, Caê Rolfsen, Alessandra Leão, Rodrigo Caçapa, Ricardo Herz, Zeca Baleiro, entre outros, e o multiartista Manu Maltez, também responsável pela direção artística do CD e projeto gráfico.
Para Maltez, “É um disco sobre o tempo. De um Vicente aos setenta anos escavando as memórias do menino de sete, para a pura invenção no agora”. E complementa: “O título do álbum, uma palavra que inventei para batizar/conceitualizar o disco, remete ao período de maior duração na história, ou pré-história, da espécie humana. Época em que éramos apenas caçadores e coletores, nômades, soltos por aí. Quiçá o tempo mais feliz de nossa espécie, quando já havíamos inventado a arte, mas não a agricultura e, por conseguinte, a exploração do trabalho, o excedente de produção, a mais valia, e assim por diante, até a bomba atômica, o fast food, os vibradores, as redes sociais. Acredito que todos trazem nos genes um fiapo de lembrança desse tempo antediluviano, desse nosso paraíso perdido, da infância da humanidade. Ao mesmo tempo, Paleolírico traça um paralelo com a infância de cada um, daquele tempo imensurável da criança, onde tudo é assombro e encantamento. De quando sabíamos falar a língua dos bichos, das árvores, das pedras. Paleolírico fala desses paraísos perdidos, por um instante reencontrados, na canção Vicentina, na poética Barretiana, sempre procurando (e achando) seu frescor.”
A respeito do álbum, Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, pontua: “As composições navegam pela memória pessoal do compositor, que é também uma memória sonora coletiva do interior do Nordeste brasileiro. Da menção ao violão que emula o som da sanfoninha Pé de Bode à alusão à flor que nasce do cimento na cidade de São Paulo, temos um inventário artístico de Vicente Barreto, em som e palavras. O Sesc apoia a valorização de nossas tradições sonoras, bem como a difusão dos novos expoentes da música nacional. Paleolírico, de Vicente Barreto, alia essas duas pontas – o tradicional e o experimental – numa produção cuidadosa, coerente e inventiva”.
Confira na sequência o texto de Manu Maltez presente no encarte do álbum apresentando essa escavação onírica por traz das memórias músicais de Vicente.
Manu Maltez
“O passado às vezes sai do lugar”
Vicente Barreto, vestido de Cambaco
Por um acidente do discurso
Trocamos assim como quem brinca, a letra T pela L
O que resultou em duas estilingadas da língua no palato
Ou seja, uma narrativa de lagarto
Pra quem dá ouvido a pedra
Agora Assopra o bafo do tempo
Que vem da gruta-coração
Toda palavra estala nervo
Se meu maxilar não cair
logo agora
E virar pré história
É hoje que eu digo
O que só se diz cantando:
Paleolírico, como não diz a wikipédia
É o período Vicentino, que compreende o tempo imensurável
do Não Foi Mas Vai Que
da infância da humanidade
o tempo do causo
do menino que escuta o pé de bode pela primeira vez
de dentro da barriga da mãe embalançante
é o tempo da Rebatida ó meu pai, (como ricocheteia
seu bordão ainda agorinha)
é o tempo de quando éramos deuses tenros
porque nômades
quando subíamos no ombro da preguiça-gigante-de-cabelosvermelhos-
esvoaçantes
pra alcançar a mais alta goiaba-brava-com-bicho-porque-assim-ficamais-
gostoso
Como diria a primeira das Avós do mundo:
Meu filho,
o que não mata engorda
Paleolírico:
vida espelho da morte
buraco negro
teletransporte
trem da febre
linha São Paulo – Salgadália
onde ir é voltar
e o seu contrariar
última chamada
vamos embarcar!
Paleolírico
É o tempo-ventre
tempo-latente
tempo-serpente
se engolindo
é tempo em si
em corpo
envolto
em vulto
inlflado de vácuo
tempo sem semântica, tempo quântico
enfim o impensável:
tempo nu
Paleolírico
é uma fita cassete adormecida dentro do gravador empoeirado,
reencontrado em certa faxina, guardando esquecida canção
instrumental sabe-se lá quando gravada, por anos esperando o
nascimento da palavra que ainda não havia sido
Inventada:
Paleolírico
desligue agora o aspirador de pó,
e escuta só
o inconsciente coletivo de um compositor a renascer
Paleolírico
É o novo disco de Vicente Barretôiôiôiô
Como disse um amigo barranqueiro em certa tarde
nas margens do médio São Francisco
“O desconhecido mais famoso do Brasil”
Esse aí escapou-se das celebritudes
Viveu se esquivando da própria Tropicana sombra – Olé!
Bota fé é numa inesperada esbarrada no violão – ôlaiá!
Num dia de sorte, Daqueles em que a turma do encosto chega pra
sambar no sofá
(Você olhando não enxerga, mas tá todo mundo lá)
é aí que a coisa acontece
Segura os tubos de ensaio dona Wânia, que hoje vem composição
nova!
Entre a peste e a Guerra
Tem gente que ainda teima
E desenterra
Boas notícias da nossa espécie pré-extinta
Um balbucio de Vicente fala de coisas luzassombrosas
Carrunca mirunca fejunco trambuia furunfé furunfá
iê iá uôi!
Já garrou no juízo a melodia, num foi?
Pois é
Tudo aqui são vestígios
rastros
Ainda frescos
Do paraíso perdido
Paleolírico
Compreende também um segundo período
Apontado por alguns especialistas como o “paleolírico tardio”
É aí que surgem os letristas
Desconfia-se que os versadores das melodias Vicentinas
São bonecas de ventríloco
Troncos de kuarup
Que quando matam a charada, decodificam o barretinês,
criam carne
E saem boquiabertos por aí
Pois traduziram no abecedário algo que não sabiam
Não eram capazes, por eles próprios, coitados
De dizer o que disseram
No fundo intuem que são apenas instrumentos
De um mestre da psicografia
sim, por que por último fica sempre o mistério
a verdade no fundo desse telefone sem fio
de como seria a voz primeira
da sereia que só Vicente ouviu
Então tá explicado
Paleolírico é o que fizemos
do nosso sonho partilhado
Outro nome pra isso é música
Que não é outra coisa senão tempo
Liberto, desembestado
Sem futuro presente passado
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