JORNALISTA E PESQUISADOR EM COMUNICAÇÃO DIGITAL, VINICIUS ROMANINI INVESTIGA AS POTENCIALIDADES E OS IMPACTOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA SOCIEDADE
Por Luna D’Alama
Leia a edição de JANEIRO/24 da Revista E na íntegra
Ao iniciar a carreira como estagiário de jornalismo, com apenas 15 anos de idade, Vinicius Romanini escrevia para um periódico da cidade de Adamantina, a 70 quilômetros de Presidente Prudente (SP), no interior paulista. As letras que compunham as páginas dos jornais da época – até pelo menos a década de 1980 – eram fundidas em blocos de chumbo, numa técnica chamada linotipia. Passaram-se apenas quatro décadas, porém, para que o caldeirão de chumbo desse lugar aos recursos de inteligência artificial. “Estamos num momento único na história da humanidade, diante de uma mudança paradigmática na produção de conhecimento que vai impactar profundamente a nossa trajetória”, destaca o pesquisador e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), ambas da Universidade de São Paulo (USP).
Nos últimos 20 anos, segundo Romanini, a Lei de Moore (sobre a velocidade das revoluções tecnológicas) se confirmou: a cada 18 meses, dobra-se a capacidade computacional e de memorização das máquinas e dos ambientes digitais. Isso significa um aumento gigantesco na quantidade de dados disponíveis, e um futuro cada vez mais incerto. Neste Encontros, o doutor em ciências da comunicação pela USP e integrante de grupos de estudos sobre semiótica, informação, design e comunicação fala sobre inteligência artificial, redes neurais, ChatGPT e o futuro das profissões.
Inteligência é uma palavra guarda-chuva, onde cabem muitas coisas. Um micro-organismo unicelular chamado paramécio, por exemplo, é um protozoário que não tem cérebro nem conexões neurais. Mas, em alguns aspectos, ele é muito mais inteligente que o ChatGPT (chatbot da empresa estadunidense OpenAI), porque é capaz de reagir a concentrações químicas no ambiente, tomar decisões, fugir de certos perigos, mover-se por meio de cílios no meio líquido. Então tudo depende de como definimos inteligência, se é autoconsciente ou não consciente, se envolve processos instintivos ou reações químicas. Quando falamos em inteligência artificial, nos referimos à capacidade de produção, inferências, julgamentos e efeitos lógicos realizada de forma autônoma por máquinas, computadores e processos. São, em resumo, máquinas capazes de processar informações, provocando uma mudança de estado no mundo ou uma mudança de estado nelas próprias. Esse tipo de informação é chamado de discreta, não é contínua e tem um pacote de dados definido: os bits – menor unidade de informação que pode ser armazenada ou transmitida.
O cérebro humano tem bilhões de células, os neurônios, que vão trocando sinapses (sinais elétricos e químicos) por meio de uma série de estímulos que recebemos do meio, das experiências que temos no mundo. Na década de 1950, nos Estados Unidos, um pequeno grupo de pesquisadores tentou reproduzir artificialmente a maneira como o nosso cérebro processa as informações. Foi aí que nasceram as redes neurais, que agiam no processo de produção da informação a partir de conexões semelhantes às do cérebro humano. Mas, inicialmente, elas foram consideradas um fracasso, com resultados pífios, e esquecidas por pelo menos duas décadas. Nos últimos anos, tivemos um aumento dramático na quantidade de dados disponíveis e na quantidade de computação possível. E o que se viu é que aquelas redes neurais, que haviam sido um fracasso no passado, no momento em que adquirimos capacidade suficiente de computação e de banco de dados, conseguiram reproduzir o tipo de inteligência que o nosso cérebro tem – pelo menos, a inteligência linguística.
Em 2023, fomos impactados pelo lançamento do ChatGPT-4, versão mais atualizada do chatbot da OpenAI. É um sistema com um poder de computação muito grande e com diversos bancos de dados envolvidos. Para o senso comum, hoje inteligência artificial significa fazer perguntas ao ChatGPT, como se fosse uma diversão. Comparo o ChatGPT ao jogo de videogame Pac-Man. Nós achávamos, nos anos 1980, que aquilo era o ápice da humanidade. Mas o ChatGPT não é a cereja do bolo: trata-se de um modelo de grandes linguagens, ou seja, ele tenta simular a maneira como nós, humanos, processamos informações por meio da linguagem. É uma rede neural de aprendizado profundo, modelada com os padrões do nosso cérebro, que tem várias camadas de neurônios. Essa rede, porém, não permite uma supervisão humana; ou seja, é uma caixa-preta, e nós não temos capacidade cognitiva para entender o que realmente acontece lá dentro.
O ChatGPT é treinado pelos humanos e, quando traz respostas erradas, nós o corrigimos. Esse sistema se chama retropropagação, capaz de mudar todas as configurações da rede neural e os resultados quando retificado. É como se realizasse um ajuste nas sinapses, na comunicação entre dois ou mais neurônios, para que, da próxima vez, quando você fizer determinada pergunta, seja oferecida a resposta desejada. É um aprendizado em tempo real. Por isso, todos nós teremos que nos especializar em sermos bons perguntadores, para extrair da IA o máximo possível e materializar o conjunto de possibilidades que ela oferece. Esse é o papel, cada vez maior, que artistas e criadores devem assumir a partir de agora. Por outro lado, penso que estamos entregando nossa autonomia para essas máquinas, o que pode ser muito perigoso.
Estamos entrando numa espécie de aceleração exponencial, um crescimento desenfreado dos sistemas e algoritmos que ninguém tem condições de prever onde vai terminar. Como é que o mundo estará daqui a alguns meses ou anos? Estamos num momento único na história da humanidade, diante de uma mudança paradigmática na produção de conhecimento que vai impactar profundamente a nossa trajetória. Por exemplo, dos meus 15 aos 55 anos, ou seja, em um intervalo de apenas 40 anos, nós saímos da linotipia de chumbo no jornalismo [processo de impressão utilizado em livros, jornais e revistas desde o século 19] para a inteligência artificial. O caldeirão de chumbo do linotipo pertencia a um sistema de produção semelhante à prensa de Gutenberg, do século 15, e similar a processos anteriores da Idade Média. No arco de apenas quatro décadas, atravessamos tudo isso. Por outro lado, os humanos têm uma dificuldade muito grande em lidar com problemas complexos que nós mesmos criamos, como as mudanças climáticas. Então, de certa forma, vamos entregar – até com certa alegria – a gestão dos nossos maiores problemas para as superinteligências artificiais, que em certo momento poderão até se autoprogramar, ou seja, serem capazes de aprimorar o próprio código, colhendo informações do mundo e se adaptando.
Um dos meus alunos criou um selo de certificação chamado Made By Humans, que atesta que determinado produto cultural (uma música, um livro, uma obra de arte) foi feito exclusivamente por humanos, com cognição humana. Isso pode virar um nicho, assim como temos os mercados de discos de vinil, de fotografias analógicas, de vegetarianos e veganos. Cada vez mais, a produção massiva de conhecimento e de ciência será feita com uso direto de inteligência artificial, mas algumas pessoas poderão fazer questão do made by humans ao consumirem algo.
Gosto muito de uma palavra chamada serendipidade, que é o encontro fortuito, o ato de descobrir coisas agradáveis por acaso. [Como cantam os Titãs em Epitáfio,] o acaso vai nos proteger. Quando você sai na rua, pode encontrar o amor da sua vida, achar algo maravilhoso numa feira ou num brechó, ou ser assaltado. A serendipidade tende a desaparecer com essas ferramentas de IA, que serão grandes regurgitadores da produção cultural armazenada em bancos de dados. Assim, corremos o risco de ter uma cultura em que o nível de acaso se torne cada vez menor e não haja uma criatividade genuína.
Na primeira onda da robótica, com a chegada dos primeiros robôs às fábricas a partir da década de 1960, a mão de obra que envolvia força física foi a mais impactada. Hoje, ocorre o contrário: as profissões que têm como especialidade a manipulação de objetos, uma sintonia fina, como a de encanador, estão menos ameaçadas pela inteligência artificial. Já a medicina deve ser profundamente transformada. Daqui a alguns anos, um médico terá que pedir permissão para realizar uma intervenção diferente daquela que a IA recomenda, após o paciente ter feito todos os exames, escaneamentos e receber o diagnóstico. Se o(a) profissional discordar da IA, terá que chamar uma junta médica e explicar por que discorda daquela proposta, justificando sua decisão. Arquiteto(a) é outra profissão ameaçada, porque a inteligência artificial poderá, para além do projeto, fazer todos os estudos de viabilidade: analisar melhor a estrutura, o terreno, a quantidade de iluminação e vento disponível, o histórico de ocupação da região, se há rios subterrâneos. Com acesso a bancos de dados, a IA pode fazer isso em segundos, com uma qualidade técnica imensamente superior à de qualquer arquiteto(a). O que sobra para o profissional é a parte humana, a função de mediador, pois cada cliente tem uma expectativa sobre sua residência, por exemplo. O que um supercomputador ainda não é capaz de fazer é pegar um copo de água ou uma garrafa atirado(a) a trinta metros de distância. Nós conseguimos, sem fazer cálculos, pegar esse objeto, abri-lo e beber a água. Para a IA, porém, isso ainda pode levar décadas. Então quem investe em habilidades cognitivas associadas a movimentos finos e a capacidades emocionais e corpóreas ainda está protegido desse primeiro “tsunami”. Não acho que estará protegida para sempre, mas ganhará uma sobrevida, um fôlego para continuar trabalhando dentro de um nicho específico.
Estamos entrando naquilo que considero a fase mais perigosa da inteligência artificial, que é a captação dos estados emocionais das pessoas, a partir de selfies ou vídeos postados nas redes sociais para amigos e familiares. Todo esse material vira um banco de dados disponível para as novas ferramentas, que já conseguem, inclusive, prever distúrbios de personalidade ou propensão para determinados tipos de comportamento social ou sexual. Se caírem nas mãos erradas, essas ferramentas podem produzir estragos imensos em uma sociedade polarizada, que já tem muitos problemas para lidar. Acredito que o uso da IA pode piorar, exponencialmente, as condições que a gente tem hoje. Acho que teremos dois ou três anos muito difíceis pela frente, até que comece a melhorar e alguma regulação apareça e controle tudo isso. Preparem-se, apertem os cintos, porque vamos passar por momentos atribulados nesse sentido.
Hoje nós conversamos com o ChatGPT, mas a próxima fase da inteligência artificial, daqui a alguns meses ou anos, envolverá o lançamento de versões personalizadas de IA para cada indivíduo. Vamos acompanhar os passos dessas inteligências – serão nossas sombras digitais e intelectuais. Acredito que, no futuro, as crianças terão uma IA que as acompanhará em todo o processo educativo, fazendo a mediação entre os conteúdos complexos e as capacidades cognitivas de cada aluno(a). Isso abrirá um novo capítulo na história da produção de conhecimento. As obras de grandes autores, como Sigmund Freud (1856-1939), Karl Marx (1818-1883), Max Weber (1864-1920) e Albert Einstein (1879-1955), poderão se transformar em redes neurais, e poderemos conversar com eles, fazer-lhes perguntas, e eles responderem em português de acordo com o nosso repertório, mas preservando as ideias fundantes de seus pensamentos. Imagine fazer uma pesquisa e poder dialogar com esses grandes nomes, testando os limites da nossa própria capacidade cognitiva?
Eu diria que a História é uma espiral, mais do que cíclica. Ao mesmo tempo que a gente dá volteios e retorna ao mesmo ponto, segue para um patamar diferente – não, necessariamente, melhor. Na cultura, não existe a ideia de evolução ou “melhorismo”, de que no futuro todos nós seremos mais conscientes. Na verdade, com a inteligência artificial, o mais provável é que fiquemos mais ignorantes. Acredito, inclusive, que o uso da IA pode piorar, exponencialmente, as condições que a gente tem hoje. O futuro, porém, está em aberto. Pode até ser que a gente aprenda alguma lição e saia disso melhor, mas já ouvi algo semelhante na pandemia e vejo que não aconteceu. Essa ideia de que o ser humano aprende com o sofrimento e amadurece é uma grande autoilusão. Por outro lado, precisamos ter responsabilidade e consciência de que as decisões que tomamos hoje em relação às superinteligências terão um impacto brutal nas próximas décadas. Ainda estamos dando os primeiros passos numa janela que se abriu e que, provavelmente, vai mudar todas as esferas da produção, da fruição, das artes e da cultura.
É urgente debatermos questões legislativas e jurídicas em relação à inteligência artificial. Na verdade, já deveríamos estar com isso em mãos, nossa discussão está atrasada. Estamos num momento muito perigoso, fragilizados e expostos a deepfakes, que sobrepõem áudios e imagens para criar arquivos audiovisuais falsos. É como se a gente desembarcasse num mundo selvagem, em que vale a lei do mais forte – no caso, da IA. Idealmente, deveria haver um órgão internacional, formado por especialistas em algoritmos, para supervisionar o grau de autonomia das superinteligências e produzir travas de controle que pudessem, em determinadas situações, fazer alguma intervenção, como desligar ou reiniciar o sistema. Mas não adianta os Estados Unidos fazerem, e a China ou a Rússia, não, por exemplo. Precisa ser uma questão orquestrada internacionalmente, do ponto de vista geopolítico. Eu, particularmente, defendo uma pausa no lançamento de novas ferramentas e aplicativos de IA, na qual as superpotências mundiais vão lançar versões cada vez mais desenvolvidas de superinteligências capazes de fazer gestão massiva de processos de controle. A corrida pela IA está muito acirrada, e pouca gente nos governos entende os riscos ou está interessada em contê-los. Teremos um novo colonialismo, com cada vez mais disparidades geopolíticas e sociais, pois as IAs não serão produzidas a partir das perspectivas e necessidades de cada país. Eu, particularmente, defendo uma pausa no lançamento de novas ferramentas e aplicativos de IA, mas sei que é uma utopia; o mercado e a sociedade não aceitam frear a inovação. Então, precisamos amadurecer essa discussão nos ambientes escolares, familiares e governamentais, capazes de criar políticas públicas.
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