Permita-se dar alguns passos para trás. Assim, a partir de uma certa distância, será possível enxergar o quadro como um todo: ver suas bordas, nuances, detalhes que parecem embaçados pela proximidade do olhar. É este o convite que a historiadora Annateresa Fabris nos faz em O Futurismo Paulista (1994), obra que ficou em segundo lugar na categoria Ciências Humanas na 37ª edição do Prêmio Jabuti. Depois de 22 anos de sua primeira edição, o livro da pesquisadora e professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP) aponta para uma importante direção trilhada pelos modernistas de São Paulo de 1920 a 1928. A obra delineia a influência exercida por artistas de Milão e Florença, como Filippo Tommaso Marinetti, fundador do futurismo – uma das vertentes das vanguardas artísticas do século 20 que começou com um movimento na Itália, em 1909. De forte tônica nacionalista, o futurismo rompia com tradições do passado e valorizava os avanços industriais, a velocidade e o automóvel, influenciando os jovens Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia na década de 1920. No ano e no exato mês em que se celebra o centenário da Semana de Arte Moderna, é importante reconhecer os bastidores que culminaram na realização da Semana, como os efeitos provocados pelo futurismo italiano, a fim de compreender os consequentes desdobramentos da arte pensada e produzida no Brasil desde então.
O que o modernismo brasileiro herda do futurismo italiano?
Eu acho que o futurismo de Marinetti, portanto o futurismo do grupo de Milão, está presente, sobretudo, no plano estratégico. O exemplo das noitadas futuristas, que congregam diferentes formas de arte, de maneira provocadora, no grande templo da burguesia que é o teatro, está na base da Semana de Arte Moderna, por exemplo. Reunir uma série de manifestações chamadas modernas, mesmo que elas não sejam de todo modernas – e acho que os artistas têm consciência disso, assim como os futuristas tinham consciência disso – significava criar uma atmosfera de enfrentamento com o público. Também a encomenda da vaia por Oswald de Andrade – como afirmam alguns autores – faz parte dessa estratégia, pois Marinetti contratava um grupo de pessoas para vaiar e um outro grupo para aplaudir, de maneira a criar um clima de tensão e até mesmo choques físicos que, muitas vezes, acabavam com a intervenção da polícia dentro do teatro. Então, quando se fala que Oswald de Andrade teria contratado estudantes de Direito para vaiar, a intenção era criar um clima de conflito a fim de mostrar a diferença entre a arte moderna e o passadismo.
Essa influência do futurismo italiano também está presente em outros aspectos da Semana de Arte Moderna?
Parece-me que Marinetti também está presente, num primeiro momento, na exaltação da civilização industrial e, sobretudo, da metrópole. Mas, como nós não tivemos uma Revolução Industrial de porte, os modernistas tinham certa dificuldade em lidar com rupturas radicais. E nisso entra o diálogo com o grupo de Florença, que quer modernizar a Itália, mas não de maneira tão radical, como propunha Marinetti. Antes, precisamos fazer uma diferença entre Florença e Milão. Milão é uma capital industrial, é a grande cidade moderna italiana; enquanto Florença, apesar de todo um passado glorioso, era uma cidade de província. O grupo de Florença quer modernizar o país, mas não quer romper totalmente com a tradição porque reconhece o legado do passado. Isso faz com que esse grupo não espose radicalmente a tábula rasa do passado que Marinetti propunha. Mas é necessário esclarecer: quando Marinetti fala em “incendiar museus e bibliotecas”, está usando uma metáfora. Ele não pretendia incendiar fisicamente esses espaços, ele queria chamar a atenção para a necessidade de renovar a cultura italiana. O mesmo acontece com Ardengo Soffici, que é o principal defensor da arte moderna naquele momento, e com o qual os milaneses querem fazer uma aliança. Em alguns artigos publicados em 1912, ele prega “a inundação do Louvre”: que as águas do Sena entrem no museu e arrastem todos aqueles quadros do passado, que tolhem a vitalidade das novas gerações. Evidentemente, trata-se, mais uma vez, de uma ideia metafórica, mas de todo modo, ela mostra a necessidade de renovação que os jovens artistas e intelectuais italianos sentiam no começo do século 20. Num primeiro momento, a relação dos florentinos e milaneses é bastante complicada; aliás, ela se resolve graças a um choque físico em 1911. Em junho de 1911, Soffici havia escrito um artigo contra a exposição de Arte Livre e Pintura Futurista e os futuristas, para se vingarem, partem para Florença numa chamada “expedição punitiva”. Os dois grupos se socam em duas ocasiões e na delegacia de polícia, finalmente, começam a costurar um acordo. Desse acordo vai resultar, depois, o ingresso dos futuristas na revista Lacerba, que é o órgão principal do grupo de Florença.
Qual a importância da revista Lacerba?
Trata-se de uma revista fundada em janeiro de 1913, da qual os futuristas participam durante um ano: publicam manifestos e artigos, um atrás do outro, que são acolhidos sem muitos problemas. Até que, em fevereiro-março de 1914, acaba acontecendo o embate entre o pintor Umberto Boccioni e o escritor florentino Giovanni Papini, motivado pelo ingresso de elementos reais nas obras de arte. Papini era contrário ao uso desses elementos nas obras de arte e, por isso, polemiza com as colagens e com certas experiências que os futuristas faziam com materiais reais. Esse embate começa a mostrar publicamente que existiam concepções de arte divergentes no aparente grupo até que, em fevereiro de 1915, os florentinos se dissociam dos milaneses e se proclamam “futuristas”. Desse modo, transformam os milaneses em marinettistas, denunciando o marinettismo como algo negativo e superficial. Por sua vez, o futurismo, isto é, o grupo de Florença, deveria ser entendido como portador do verdadeiro significado da modernidade. Em agosto de 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial, Lacerba se transforma numa revista política e deixa finalmente de circular em maio de 1915, quando a Itália ingressa no conflito. Toda essa discussão entre os dois grupos era conhecida pelos modernistas de São Paulo, sobretudo através do livro A experiência futurista (1919), de Papini, que circulou na cidade; ele estava presente, por exemplo, na biblioteca de Mário de Andrade. A partir das anotações feitas por ele em seu exemplar e de tomadas de posição em artigos, percebe-se como Mário de Andrade dialoga com essas ideias, apesar de o grande divulgador público das ideias futuristas ter sido Menotti Del Picchia.
Tanto que, na Semana de Arte Moderna, Menotti Del Picchia exalta o futurismo.
Antes disso, na coluna que tinha no Correio Paulistano, Menotti escreve tanto sobre Marinetti quanto sobre as ideias de Soffici e divulga alguns poetas futuristas também. Ele publica um trecho de um poema de Marinetti e os poemas de Corrado Govoni, por exemplo. Portanto, parece-me que a figura de Menotti teria que ser mais estudada nesse primeiro momento do modernismo porque, realmente, é ele o grande divulgador na imprensa dessas ideias. Provavelmente por ter um conhecimento melhor da língua italiana e pela própria origem. Se formos fazer um levantamento de livros conhecidos pelos autores que se envolveram no modernismo, podemos ver que havia um bom conhecimento dos debates teóricos italianos e, inclusive, da produção poética italiana moderna. Isso você vê tanto pela biblioteca de Mário de Andrade, como pela biblioteca de Yan de Almeida Prado, que estão no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Parece-me evidente que os modernistas devam ter encontrado ideias para as suas estratégias públicas no contato com toda essa produção teórica e literária. É por isso que eu digo que, mesmo que a Semana de 1922 não tenha apresentado obras de fato modernas ou selecionado trabalhos parcialmente modernos, sendo uma mistura de várias tendências, ela foi, em termos estratégicos, uma manifestação de vanguarda.
Quais tendências se sobressaíam?
O simbolismo, sobretudo. Na pintura, o que há de mais novo é Anita Malfatti e há um quê de cubismo num dos quadros de John Graz. Também há prolongamentos simbolistas em Di Cavalcanti. Portanto, a Semana de Arte Moderna, exceto no caso de Anita e Villa-Lobos, não apresenta ainda “a arte moderna” em si, mas se estrutura como uma ação de vanguarda. E essa ação também deve ser estudada a partir da imprensa porque, desde 1920, os modernistas ocupam os principais jornais de São Paulo com suas ideias. Aliás, quando eu fiz a pesquisa para o livro O Futurismo Paulista, eu tinha a sensação de que estava vendo dia por dia como se gestavam as ideias modernas, os embates que elas provocavam, as tensões e as contradições. A imprensa é uma caixa de ressonância para as ideias modernistas. Era necessário usar os meios de comunicação de massa, no caso, o jornal, para chegar ao público, e essa foi uma tática que os modernistas aprenderam com Marinetti. A Semana de 1922 é a culminação de um processo que vem desde 1920 com a divulgação dessas novas ideias. Às vezes os modernistas nem são tão modernos naqueles momentos iniciais. Por exemplo, eles rechaçavam o dadaísmo, inclusive o próprio Oswald de Andrade. Mas, de uma maneira ou de outra, eles conseguem um espaço de divulgação para as ideias modernas, criando um clima de interesse e tensão em relação a elas. Essa estratégia depois vai ser sabiamente usada na preparação da Semana de Arte Moderna. Quando se analisa todo o debate que se instaura na imprensa, na Gazeta, por exemplo, há uma coluna pró e uma coluna contra a arte moderna. De um lado havia Mário de Andrade defendendo a arte moderna e do outro, outra pessoa atacando a arte moderna. Entre os artigos que Oswald de Andrade escreve no momento da Semana, talvez o mais escandaloso de todos seja aquele em que ataca o maestro Carlos Gomes dizendo que ele é horrível. Você percebe que tudo isso é proposital. Há uma intenção de criar um ambiente de hostilidade contra o grupo que vai se apresentar no teatro. E tudo isso, a meu ver, foi apreendido com os futuristas. Você prepara um clima de conflito e de tensão para que as novas ideias possam ser ouvidas e, evidentemente, no futuro, se afirmar.
Sobre essa tática “publicitária” dos modernistas brasileiros, ao ler os artigos do Oswald de Andrade, mais agressivos, e do próprio Mário de Andrade, mais comedidos, Menotti Del Picchia fica entre os dois. Mas, percebe-se que é proposital em todos esses discursos que eles vão construindo uma argumentação contrária e vão elegendo inimigos, a exemplo de Carlos Gomes para colocar no lugar Villa- Lobos. Como se dá essa ação?
O artigo de Oswald de Andrade contra Carlos Gomes é uma tentativa de mostrar que ele era o que o grupo modernista chamava de passadismo. O compositor representava a ópera italiana, um gênero superado, na visão dos novos de São Paulo. Carlos Gomes tinha que ser atacado, vilipendiado para que pudesse se afirmar a novidade representada por Villa-Lobos. Aqui, realmente, há uma clara ideia de contraposição: o velho tem que ser destruído e há um novo que está chegando. Mesmo fora do plano musical, Villa-Lobos era uma expressão mais moderna do que outras coisas que estavam sendo apresentadas no festival. Nesse caso, há dois emblemas: o emblema do passado e o emblema do presente que se projeta no futuro. Mas acho que a estratégia publicitária vai além das contraposições. Quer dizer, eu chamo de estratégia publicitária essa disseminação contínua das novas ideias. É quando o tempo todo eu estou apresentando meu produto ao público, quando tento fazer com que o público entenda que a cidade de São Paulo é uma cidade moderna, mas não tem uma arte à altura da sua modernidade. Essa campanha publicitária tem esse objetivo, e a cidade de São Paulo é apresentada como o símbolo do Brasil que se deseja construir: um Brasil moderno, atualizado e industrial.
No entanto, os modernistas estão ligados aos latifundiários paulistas.
Num primeiro momento há uma contraposição a um Brasil agrário, mas é inegável que os modernistas estavam ligados aos latifundiários paulistas. Estes, ao mesmo tempo, estiveram na base da modernização da cidade, com a construção das ferrovias etc. Tratava-se de um Brasil ainda agrário, mas que olhava para um futuro em que deveria se tornar industrial. Por isso, nessas peças publicitárias aparecem os temas da multidão, de uma São Paulo como cadinho de raças e de povos… Aliás, Menotti acaba dizendo textualmente que São Paulo era futurista por ser um amálgama de raças. Vinham pessoas de todas as partes do mundo e se encontravam na cidade de São Paulo, criando uma nova geração, que virá a ser chamada de “geração de titãs”. Num artigo de 1922, Ronald de Carvalho chega a propor um paralelo entre o paulista moderno e a figura tão depreciada hoje em dia do bandeirante. O paulista do século 20 seria o representante dos bandeirantes que, com seus arcabuzes, tinham desbravado o sertão e ampliado as fronteiras nacionais. O bandeirante moderno era o industrial, era o banqueiro, era o “self-made man”. Na polêmica contra o passado, os indígenas são depreciados, particularmente por Menotti Del Picchia, que critica, através da figura do índio, o indianismo de José de Alencar. Essas questões acabavam se misturando: a questão política acabava, muitas vezes, se misturando com uma questão literária. A nova geração não queria mais saber de Peri e das outras figuras que haviam sido herdadas do romantismo.
Como os modernistas traçam esses limites ideológicos?
Esses limites ideológicos começam a se configurar claramente logo depois de 1922, quando acontece a cisão do grupo de Menotti Del Picchia e do grupo de Oswald de Andrade. De um lado há a exaltação de um traço fundamental da cultura indígena brasileira que é o antropofagismo, convertido em atitude criadora, isto é, a apropriação da cultura do outro, a sua deglutição e a sua transformação. Dessa forma, a figura do índio desempenha papéis diferentes: pode ser agressiva em Menotti Del Picchia, porque ele está atacando o indianismo, ou se torna, digamos assim, propulsiva para Oswald e o grupo da Antropofagia, que celebra um traço fundamental da cultura brasileira. Todas essas tensões acabam mostrando que a nova geração modernista estava procurando, de um lado, dialogar com os aspectos modernos da cultura europeia e, do outro lado, pensar nos elementos da cultura brasileira que poderiam ser usados para construir essa cultura moderna. Eles tinham consciência de que não iriam partir de uma tábula rasa e de que tinham alguns alicerces naquele mesmo passado que combatiam. É o caso da série de artigos de Mário de Andrade, Mestres do Passado, em que ele acaba por reconhecer que é filho do passado parnasiano contra o qual se levanta. Ou seja, há um jogo evidente no combate que o futurismo e o modernismo travam com o passado. O futurismo pode dizer teoricamente que não tem uma tradição, mas ele tem uma tradição, basta olhar as matrizes de cada um dos artistas.
A partir das rupturas que o futurismo italiano sofre, é possível fazer um paralelo com as rupturas pelas quais o modernismo brasileiro iria passar?
Eu acho que são duas realidades diferentes. No futurismo italiano, o grande racha é representado pela contraposição entre Milão e Florença. Quando se observa o episódio da revista Lacerba, vê-se que ele é o começo de uma série de abandonos, que vão demonstrar o descontentamento de alguns artistas com os rumos que Marinetti estava dando ao movimento. A crítica mais comum era que Marinetti acolhia qualquer um no movimento, desde que se declarasse futurista, tendo perdido toda e qualquer ideia de importância e de hierarquia de valores. Figuras importantes e principiantes eram colocadas no mesmo balaio e isso faz com que muitos artistas comecem a se dissociar do futurismo. É o caso de Carlo Carrà, de Gino Severini e de Umberto Boccioni. Este último, certamente, teria saído do futurismo se não tivesse morrido durante a Primeira Guerra Mundial, porque realmente discordava da ideia de grupo defendida por Marinetti. Na década de 1920 surge uma nova geração futurista, muito mais voltada para a arte da máquina. É uma geração que está mais sintonizada com as tendências construtivas da arte. Você percebe que a questão da máquina adquire um outro significado com essa nova geração futurista. A questão da máquina era muito mais romântica na primeira geração e com a segunda, ela se torna, de fato, muito mais construtiva. Inclusive chega-se a pensar em autômatos, robôs etc. como figuras fundamentais dessa modernidade.
Como foi essa relação entre Mário de Andrade e Marinetti?
A relação entre eles é bastante complexa. Acho que, em termos poéticos, Mário nada tem de futurista. Oswald exagera um pouco ao chamá-lo de “poeta futurista”, uma vez que a modernidade de Mário era mais moderada. Se Mário era um leitor de Marinetti, ele era também um leitor de Papini e de Soffici; ele se distancia de Marinetti porque conhece sua produção, conhece os manifestos, conhece a sua poesia e não é com ela que ele dialoga mais claramente. Acho que o episódio mais significativo dessa relação foi em 1926. Mário, num primeiro momento, havia sido convidado a fazer parte do grupo que recepcionaria Marinetti no Rio de Janeiro. No fim, ele acaba não indo e fica furioso com Manuel Bandeira, que serve de cicerone a Marinetti e à esposa, por quem se encanta, aliás. Mário pensa em recepcionar Marinetti na chegada a São Paulo, mas erra o horário… Finalmente, eles se encontram no hotel Esplanada, mas a visita é um tanto tensa. Acho que essa relação é um pouco a de um filho com o pai. Marinetti é o pai que Mário quer renegar, aquela figura importante que está no horizonte do modernismo, e que atrapalha um bocado a afirmação da nova geração. Ele não quer se reconhecer em Marinetti e prefere o silêncio público.
Nesse momento da vinda de Marinetti ao Brasil, já havia um movimento por parte dos modernistas de se distanciar do futurismo?
Em 1926, a ideia de se distanciar de Marinetti tem a sua razão de ser. Aliás, se a gente pega o recibo de aluguel da Semana de Arte Moderna no Theatro Municipal, nele está escrito “Semana Futurista”… Depois do festival de 1922, e ao longo de 1923 e 1924, os modernistas tentam se afastar do futurismo e mostrar que eles tinham usado certas táticas futuristas, mas que agora era um momento de construção e que eles estavam perseguindo outras questões, uma outra estética. Em 1926, quando Marinetti vem ao Brasil, a questão futurista volta a ser usada pelos detratores do modernismo. Mário de Andrade escreve numa carta, “Esse carcamano que veio fazer a gente perder quase metade do caminho andado, carece mas é de ser tratado com a importância que tem”. Com a chegada de Marinetti, volta toda essa questão e todos os jornais voltam a falar em futurismo. Para Mário, isso tem um significado pejorativo. No caso dele, a ruptura definitiva com o futurismo se dá com Macunaíma (1928). No romance, o escritor toma uma atitude decidida contra a máquina e a cidade e defende a preguiça como ócio criador. Através da figura de Macunaíma, ele exalta a indolência, isto é, a reação a um modo de vida que não lhe era congenial, cujo ponto de chegada seria a “civilização tropical”, necessariamente diferente do frenesi mecânico e da agitação futurista. 1928 é, para mim, o momento em que Mário rompe de vez com o futurismo. É por isso, aliás, que no livro O Futurismo Paulista os marcos temporais são 1920 e 1928: 1920 representa o começo da pregação futurista pela imprensa, a partir de Menotti Del Picchia; 1928 e Macunaíma parecem ser o diálogo terminal de Mário de Andrade com o futurismo.
Poderia falar um pouco do papel de Anita Malfatti no modernismo?
A primeira ação de vanguarda em São Paulo é de Anita Malfatti: ela rompe com uma série de convenções e faz isso sozinha. Talvez a gente pudesse chamá-la de uma precursora da consciência de vanguarda, que depois vai se constituir com o grupo modernista. Na verdade, estudos mais recentes sobre ela mostram que um certo nacionalismo e uma visão mais ordenada e menos expressionista, começam a aparecer em algumas obras da produção norte-americana, portanto, em 1915. Se Anita tinha desconcertado a família com os quadros que trazia da Alemanha (1914), esta fica ainda mais desconcertada com as obras produzidas nos Estados Unidos. Elas rompiam com tudo o que se entendia por arte em São Paulo e, sobretudo, por arte feita por uma mulher, mostrando a existência de uma questão de gênero. Quando Anita volta da temporada norte-americana, ela se encontra num ambiente em que as ideias nacionalistas estão em pleno vigor. A tela Tropical (1916), que pertence à Pinacoteca, é considerada uma obra-chave desse momento porque mostra a adesão da pintora a um tema nacional e local. Ao mesmo tempo, há nela uma espécie de conciliação entre o momento mais vanguardista e certa visão mais realista, como é o tratamento dado às frutas. Se nas frutas se nota um tratamento realista, no rosto da figura feminina é mantido certo diálogo com a vanguarda. Ao voltar ao Brasil, Anita já começa a ensaiar um certo processo de adequação às diretrizes artísticas do meio.
Houve um fato em particular que marca esse momento: a crítica Paranóia ou mistificação?, de Monteiro Lobato, publicada em 1917 no jornal O Estado de S. Paulo. No artigo, Lobato faz duras críticas às obras da artista. Por quê?
Na exposição de 1917, Monteiro Lobato não ataca a pintora, mas a arte moderna. Aliás, Lobato talvez seja um dos poucos que valoriza Anita Malfatti como uma boa pintora. Ele a afasta do domínio da arte feminina, isto é, de uma arte diletante feita por senhoritas que não tinham nada a fazer na vida. Lobato a vê como uma profissional, que, infelizmente, estava empregando seus talentos na direção “errada”. De todo modo, essa diatribe de Lobato desconcerta a pintora, que se isola, se recolhe e acaba fazendo uma produção bastante mais palatável. Em certos momentos, essa produção se torna “feminina” no sentido tradicional: Anita cria a partir de temas mais amenos, como flores e crianças e usa uma técnica mais suave, mais “adocicada”, como escrevia Marta Rossetti Batista. Isso não é bem visto pelos modernistas, que concentram sua campanha modernizadora na figura de Brecheret (1920-1921). Em 1923, ela vai para Paris com uma bolsa do Pensionato artístico e lá permanece até 1928. Nesse momento, ela encontra uma outra atmosfera artística em que as produções da vanguarda não estavam mais na ordem do dia e isso acaba por despertar seu interesse. A partir daí, ela faz uma série de experiências técnicas, colocando toda a produção desse momento sob o signo de “volta à ordem”. Em uma entrevista concedida em 1928, quando volta ao Brasil, ela deixa claro que o que estava fazendo em Paris era arte moderna; era o que faziam Picasso, Matisse etc. A exposição de fevereiro/março de 1929, em que mostra essa nova produção, provoca reações muito diferentes nos modernistas. Menotti Del Picchia não gosta e acha que ela retrocedeu. Guilherme de Almeida fala de uma arte “feminina”, mas sem implicações negativas. Yan de Almeida Prado aprecia muito a exposição e a contrapõe a artistas do sexo feminino que se dobraram aos desígnios do mercado. Ele reconhece em Anita um talento “viril”, comparando-a com alguns artistas do século 18 como Magnasco e Piranesi. Mário de Andrade comporta-se de maneira dúbia, mas o que importa salientar é que nesse momento os modernistas reconhecem finalmente seu papel histórico, penitenciando-se da atitude de 1920-1921.
Neste momento em que se celebra o centenário da Semana de Arte Moderna, de que forma as manifestações no campo das artes visuais, literárias e da música em 1922 ainda reverberam ações e reflexões hoje?
É complicado pensar nas “lições” que a Semana de 1922 nos legou porque o século que a separa do momento atual trouxe muitas modificações na sociedade, na cultura e na arte. A Semana de Arte Moderna poderia ser definida como uma reunião de fragmentos de um novo que está por vir. Por isso, ela choca o público, que busca obras acabadas, ao apresentar-lhe “rascunhos”, esboços, estudos. O culto do novo não está mais no horizonte da arte contemporânea. Esta tem relações bem diferentes com o público, que aceita pacificamente inovações superficiais, e com um mercado de arte agressivo e pautado cada vez mais pela lógica capitalista. Pensando em termos mais amplos, não se pode esquecer que os modernistas eram guiados por uma ideia fundamental – definir uma identidade nacional, capaz de abarcar todas as manifestações artísticas – e que esse programa encontrará uma condensação, até certo ponto paradoxal, no Ministério da Educação e Saúde, obra de um governo autoritário como o Estado Novo de Getúlio Vargas. As identidades atuais são setoriais e, não raro, sectárias, não permitindo vislumbrar a possibilidade de programas de ação mais amplos e diversificados. Provavelmente, o único ensinamento ainda válido de 1922 é o de que a arte e a cultura não podem se dissociar do presente e que o futuro não pode dispensar os ensinamentos da história.
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