Paul Thomas Anderson, cronista do presente 

22/07/2024

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Por Alysson Oliveira*

Com algumas mediações históricas e um pouco de exercício intelectual, é possível reconstruir o movimento do capital nos EUA a partir do início do século XX por meio de um arranjo da filmografia de Paul Thomas Anderson. O diretor investiga como as transformações político-sociais de seu país reverberam na vida de suas personagens e nas nossas.

A Mostra Paul Thomas Anderson permite reconstruir sua filmografia de forma a reorganizar o movimento histórico estadunidense a partir de como o político se torna pessoal. Herdeiro de cinemas como o de Robert Altman e Stanley Kubrick, PTA marca seu trabalho com rigor formal e inventividade narrativa. 

O cenário social e político é uma força que governa essas narrativas na percepção de como o dinheiro se move, e, na mediada em que as personagens ascendem financeiramente, sua moral se degrada. Daniel Plainview, protagonista de Sangue Negro (2007), interpretado por Daniel Day-Lewis, talvez seja o personagem mais paradigmático desse movimento. E assim o filme se torna o início de uma investigação da história dos EUA do século XX em diante. 

A narrativa começa em 1898 com o boom do petróleo na Califórnia. Plainview enriquece rapidamente. Ele é um sujeito taciturno e esperto que sabe fazer dinheiro, nem que tenha que enganar pessoas. Sua única companhia inseparável é seu filho pequeno WH (Dillon Freasier). A acumulação primitiva de capital retratada no filme é um caminho sem volta.

Plainview mergulha numa rede de pecados que o fazem bater de frente com Paul Sunday (Paul Dano), jovem pastor cuja família foi enganada pelo protagonista. A ética protestante e o espírito do capitalismo se encontram na tela de maneira pungente. Poucos filmes explicitam de forma tão sofisticada a relação entre religião e dinheiro nos EUA.

E religião, novamente, será uma força no filme seguinte do diretor, O Mestre (2012), no qual um veterano de guerra, Freddie Quell (Joaquin Phoenix), é uma figura misteriosa dentro de uma narrativa sobre um culto religioso chamado A Causa, e liderado por Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), um homem sob a força de sua mulher, a Lady Macbethiana Peggy Dodd (Amy Adams). 

Esse é um filme lacunar, cuja trama se esconde tanto quanto se revela. Ao retratar um personagem sofrendo de um duro estresse pós-traumático, PTA figura um país inteiro sofrendo de desesperança e sem rumo. A moral divina do estranho culto é, ao mesmo tempo, uma força organizatória e destrutiva da nação e da esperança. Peggy quer que seu marido governe o mundo. A Era Atômica é o trauma materializado que precisa ser superado, mas como? 

Se em O Mestre a repressão é a regra, em Vício Inerente (2015), PTA investiga as consequências da contracultura dos anos de 1960 na década seguinte. Adaptado de um romance homônimo de Thomas Pynchon, o diretor realiza um noir pós-moderno e lisérgico ainda sobre a influência dos loucos anos anteriores.  

Novamente Phoenix é o protagonista, Doc Sportello, um detetive particular investigando um caso complicado do desaparecimento de uma ex-namorada. Essa narrativa em si não importa muito à trama que é propositadamente intrincada e, em momentos, confusa. 

A questão é que esse filme, ao lado de Licorice Pizza (2021), investiga como o neoliberalismo cooptou as utopias e os sonhos dos anos de 1960, e usou deles como sua desculpa para se sedimentar. Lançado em meados da década de 2010, no entanto, o filme fala mais sobre esse presente do que sobre o passado que retrata.

E esse tema está, novamente, presente, e ainda com mais força, em Boogie Nights: Prazer Sem Limites (1997), que colocou PTA no mapa do cinema. O filme tem como cenário a indústria pornográfica de Los Angeles na segunda metade da década de 1970. É um momento de sucesso e glória, quando esse tipo de cinema vai bem econômica e até artisticamente dá alguns voos.  

A questão é que a virada da década marca essa indústria pela decadência. A ascensão do videocassete permitiu que as pessoas vissem filmes pornográficos em casa, e, pior, poderiam ir direto para as cenas explícitas, matando o que poderia haver de mais cinematográfico nos filmes. Essa é a forma que o diretor usa para, alegoricamente, retratar a transformação do neoliberalismo como ideologia econômica hegemônica no mundo ocidental a partir da década de 1980. 

A partir daí, como se diz, está tudo dominado. As pessoas passam a viver aquilo que os pensadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval chamam de “a razão neoliberal”, ou seja, esse modelo econômico se impõe de tal forma no mundo, que coloniza todas as áreas da existência, até as mais íntimas da vida humana. 

Os filmes de PTA situados na década de 1990 e no século XXI são uma investigação de como isso se apresenta nas dinâmicas sociais, familiares e até amorosas. Obras como Jogada de Risco (1996), Magnólia (1999), Embriagado de Amor (2002) e até Trama Fantasma (2017), que mesmo situado no passado responde ao presente, materializam relações pessoais mercantilizadas transformando sentimentos em mercadorias – não que antes desse momento, no mundo, fosse muito diferente, mas, a essa altura, não existe mais a necessidade de escamotear isso. 

Como um cronista de seu país, cuja posição hegemônica econômica, política e cultural reflete em todo o mundo ocidental, PTA nos lega uma visão bastante realista, e, por isso mesmo, pessimista, de como chegamos até aqui. Se o faz muito bem é por conta de seu cinema ímpar e destemido, que, ao olhar para o passado, nos mostra como todos os seus filmes são sobre o nosso presente.

*Alysson Oliveira é jornalista e crítico de cinema.

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