Por Kiusam Regina de Oliveira*
“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente”. (Tierno Bokar)
Com a promulgação da Lei nº 10.639/03-MEC, que altera a LDB – Lei de Diretrizes e Bases e estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais, que instituiu-se no país a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, exigindo novos posicionamentos, posturas e práticas das/os educadoras/es, as epistemologias negras ganharam visibilidade.
Nesse cenário, ganham destaque Mãe Stella d’Oxóssi, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Neusa Santos, Ana Célia Silva, Maria de Lourdes Siqueira, Sandra Petit, Mestre Didi, Henrique Cunha Júnior, Abdias Nascimento, Kabengele Munanga, Carlos Moore, Allan da Rosa, Renato Noguera, Eduardo Oliveira, Wanderson Flor do Nascimento, entre tantas/os outras/os. Entre estes nomes, me encontro tentando sistematizar a episteme negra em um campo teórico-metodológico em construção. Eu a chamo de Pedagogia da Ancestralidade.
A Pedagogia da Ancestralidade é, antes de tudo, um posicionamento político contrário ao que se estabeleceu no país como uma lógica incontestável, direcionada ao branco, considerado a norma, enquanto o não-branco é o desvio. É uma pedagogia que se opõe ao colonialismo e à colonialidade, que continuam reafirmando a desumanidade de negros e indígenas.
Ela se opõe à hegemonia epistemológica eurocentrada, propondo uma forma de ser-pesquisar-conhecer-pensar-juntar-articular-agir que reconheça o continente africano como o berço da humanidade e se dá a partir da criação ou recriação de laços e formas afeto-coletivas de acolher-ouvir-aprender-falar-trocar-compartilhar, protagonizada não só pelas/os mais velhas/os, mas também pelas crianças e jovens.
Um cuidado é preciso: nessa pedagogia o recorte de gênero se faz necessário, pois entende que mulheres negras têm enfrentamentos violentos no cotidiano por carregarem os fenótipos desprezados pela sociedade. Tais especificidades vividas por cada uma delas incidem diretamente no bem-estar e na qualidade de vida emocional, acadêmica, psíquica, espiritual, social de cada mulher, afinal, elas vivem uma saga crepuscular em busca de si mesmas a partir de uma contradição: se socializar e se aceitar em uma sociedade que as rejeita.
A Pedagogia da Ancestralidade considera os conhecimentos ancestrais como elementos-chave para qualquer tipo de aprendizagem, que podem ser encontrados em plataformas diversas, como histórias de vida, memórias, provérbios, mitos, itans, letras de músicas, literaturas, danças, gestualidades, poemas, performances etc., e tem no corpo-templo um território sagrado, consciente de que precisa ser reestruturado como um corpo-templo-resistência que seja capaz de combater o racismo institucional e a necropolítica cotidianos, em uma perspectiva sócio-cosmo-política.
Além disso, essa pedagogia tem na intencionalidade para o empoderamento negro feminino seu método principal. Tal método se movimenta de modo circular e espiralado a partir do que tenho chamado de campos de potências: Ancestralidade, Corporeidade, Imaginário, Subjetividade, Oralidade, Identidades, Memória, Processos Educativos e Ancestralidade.
Ela fundamenta-se, nesse sentido, nos seguintes princípios: 1) na consciência de que existe a colonialidade no e do poder; 2) na necessidade da emancipação epistêmica; 3) na luta por uma educação antirracista; 4) no entendimento da importância da formação para a educação das relações étnico-raciais. Ela enxerga na infância um período primordial para combater posturas que reproduzem aprendizagens discriminatórias e racistas desde as brincadeiras infantis, altamente racializadas pelas crianças.
A Pedagogia da Ancestralidade estabelece uma ruptura provocada pela decolonialidade: não se trata mais de falar pelo corpo, mas proporcionar situações para que o próprio corpo fale por si, alimentado pela cultura vivida na e pela carne. Esse corpo-templo que se (re) significa na e para a resistência, com o propósito de se tornar um corpo-templo-resistência – porque resistir às atrocidades também é sagrado –, acaba por estar conectado com a realidade vivida na coletividade, em seu entorno e, dessa forma, é um corpo capaz de sobreviver às intempéries sociais.
Sobre a infância, é importante exemplificar: no candomblé, por exemplo, ela é cultuada durante a vida inteira de uma pessoa, pois mesmo ao envelhecer nesse espaço é possível preservar, dentro de si, a energia das crianças, dos erês. Como? Ora, “dando erê”, isto é, incorporando a essência ancestral infantil.
As crianças no candomblé vivenciam, portanto, a infância não somente nos corpos infantis, pois desde cedo compreendem que a infância pode estar presente também em corpos não infantis, de idosas/os, tendo, assim, a possibilidade de compreender que os corpos são perecíveis e fenecem, mas a infância não: ela é um traço da personalidade que pode e deve ser cultivado a vida inteira, a fim de manter-se como chama ativa na continuidade do legado ancestral. Vou deixar aqui o mito de Ewá como um presente para ser analisado de forma negrorreferenciada, isto é, a partir das experiências negras que você tem, provocando as rupturas epistemológicas com o pensamento europeu e subvertendo as noções do senso comum.
Ewá era uma princesa filha de Nanã e irmã de Obaluaiyê, Oxumarê e Ossaim. Contam suas histórias que era uma jovem de beleza infinita e sua mãe queria que ela se casasse de qualquer jeito. Assim, a mãe anunciou a mão da jovem e muitos pretendentes – príncipes – se ofereceram para desposá-la. Tal concorrência transformou-se em disputas que levaram muitos jovens valentes a lutarem até a morte pela mão da princesa. Foi muito sangue derramado. No reino de Nanã, todas as plantas foram secando, o sol já não aparecia mais no céu e a tristeza fez de lá a sua morada. Ewá, triste, foi consultar-se com Orunmilá, que lhe passou alguns ebós com o poder de colocar fim em tantas atrocidades. Os ebós deram certo e o sol voltou a aparecer no céu. As plantas voltaram a ficar verdes e, num belo dia, para o espanto de todos e diante dos olhos deles, a princesa começou a se desintegrar, a perder a forma, a transformar-se em bruma branca e densa, e essa névoa se espalhou por ali, avançando o chão junto a um cantar radiante. Sim, Ewá cantava com força e sua bruma ganhava formas e dimensões. Finalmente, ela estava livre e feliz. Recebeu o poder de ir ao céu como nuvem e, quando quisesse, poderia voltar à terra como água da chuva.
Apontarei somente três ensinamentos que esse mito traz para mim, enquanto você apontará outros tantos trazidos para você: 1) a vida é transformação (ser fria/o como o gelo e ser envolvente como a água; ou hoje rastejamos, amanhã voaremos); 2) quando a vida ficar difícil é sempre possível mudar nossa energia para o estado gasoso (pensamentos/reflexões/conversas) a fim de retornarmos, mais tarde, como água (ação/reação/posturas/decisões/vida que segue em seu fluxo); 3) somos seres miméticos, isto é, somos seres capazes de nos ajustar a uma nova situação, entendendo a adaptação enquanto estratégia.
Nesse sentido, a Pedagogia da Ancestralidade aponta para a necessidade de a criança negra saber não apenas que há um exército ancestral com as paramentas de combate para lutar por ela, mas também que há um exército negro e feminino na contemporaneidade, espalhado por todo o país, que jamais soltará a sua mão e que só deseja que a criança negra se ame e, assim, se cure, porque a Pedagogia da Ancestralidade está escrita nas nuvens e nos ensina a fazer o mesmo.
* Kiusam Regina de Oliveira é pedagoga, doutora em Educação e mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Autora de livros infantil e juvenil que classifica seu tecer literário como Literatura Negra-Brasileira do Encantamento, por ser escrita por uma mulher negra que vivencia práticas racistas e busca respostas práticas para elas, cujo propósito da escrita é o de provocar o (re) encantamento da criança negra pelo seu próprio corpo. É também arte-educadora, bailarina, coreógrafa e produtora cultural. Assina o material do educativo de algumas exposições artísticas negrorreferenciadas. Especialista na implementação da Lei 10.639/03, em corporeidade poética, ancestralidade, orixás e educação. Ebome Odé T’Oju, com o cargo de iyalorixá.
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De 13 de maio a 20 de novembro, todas as unidades do Sesc São Paulo oferecem ações artísticas, reflexivas, experimentais e formativas que abordam as lutas, conquistas, manifestações e realidades do povo negro. Acompanhe a programação completa aqui.
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