Perfil: Belchior

26/10/2021

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Leandro Melito (caderno de ondas) é jornalista e pesquisador musical em São Paulo (SP). Com passagem pelas redações da Rede Brasil Atual e Empresa Brasil de Comunicação (EBC), cobriu música, cinema, política e direitos humanos. Atualmente trabalha como editor do site Brasil de Fato e colabora com a programação musical da Rádio Raio (Antena Zero).

ilustrações e colagens por Nirtu Bergamini

Reunião da gravadora Phonogram/Philips, Rio de Janeiro (1976)

Marco Mazzola chegou animado pra reunião de produção artística, realizada às segundas-feiras na sede da gravadora.

Ele havia descoberto um novo artista, que passava então por uma fase difícil em São Paulo mas que, acreditava o jovem produtor, tinha tudo para estourar. Pagou a passagem para que ele fosse ao Rio, registrou as músicas no estúdio, voz e violão, e fotografou aquele cearense de 29 anos. Mazzola estava com 28.

No início da década de 1970, a Phonogram reunia um grande time de compositores da música brasileira. Mazzola havia produzido uma série de discos emblemáticos, entre eles os três primeiros álbuns de estúdio de Raul Seixas, Krig-Ha, Bandolo! (1973), Gita (1974) e Novo Aeon (1975), Elis (1974) de Elis Regina e Refazenda (1975) de Gilberto Gil.

A empolgação de Mazzola com o artista recém-descoberto, contudo, não foi partilhada pelos demais presentes. O júri, responsável por definir uma boa parcela daquilo que viria a ser escutado pelo público brasileiro gongou sem qualquer remorso a proposta do produtor e vetou a contratação do artista. “O cara é feio e canta anasalado”, explicou um dos jurados ao oferecer o veredito.

— Mas gente, tem duas músicas que são mortais, que estão no disco da Elis Regina que vai sair cara, que pô…cês viram ai João Bosco cara, a mulher gravou João Bosco, tá ai nas paradas…

— Não, mas ele é muito feio.

Participavam das reuniões artísticas da gravadora naquele período o presidente da empresa, André Midani, os diretores artísticos Roberto Menescal e Jairo Pires, o diretor comercial Heleno de Oliveira, o diretor de marketing Armando Pittigliani e o time de produtores que, além de Mazzola, contava com Nelson Motta, Paulinho Tapajós, Guti Carvalho, Eustáquio Sena e João Mello.


Diálogo entre o cantor de voz anasalada e a cantora rouca, Rio de Janeiro (1979)

Darcy Marcelo: Ô Belchior, a Angela tá lançando um disco maravilhoso, não sei se você teve oportunidade de ouvir…

Belchior: Eu tenho ouvido alguma coisa já da Angela, assim de pé, ao pé do piano né? Devagarinho na noite, e acho muito muito legal, acho muito incrível porque temos pouca tradição da música expressiva, da música de sentimento, de feeling assim. E a Angela tá trazendo essa coisa bonita assim de cantar com a garganta, de cantar “from the bottom”.

Angela Ro Ro: From the bottom né, gostei [risos]

Belchior: Assim, sabe, aquele cantar rouco. Cantar mesmo com o corpo. Com uma certa rudeza de expressão, com nasalidade, guturalidade, que são qualidades profundamente expressivas. Qualidades também nordestinas né? Quer dizer, a nasalidade…

Darcy: Aquele negócio da voz de lata, que fala ali né?

Belchior: Perfeito, a voz do cantor não é de ouro nem de prata, mas de lata.

Angela: Tranquilo, tranquilo.

[…]

Belchior: É muito importante essa conversa sobre timbres assim vocais, porque eu creio que o timbre mesmo é a própria personalidade do músico.

Angela: Mas é Bel, mas é mesmo…

Belchior: A personalidade do cantor.

Angela: É o diapasão da gente né?

Belchior: Essa coisa do timbre é mesmo a própria forma sonora da alma do artista né? A própria forma vocal de ser. A existência externa do artista se manifesta principalmente através do timbre. Quer dizer, isso é assim…uma colocação modesta sobre isso. Mas eu acredito perfeitamente nisso. Você pega a Billie Holiday, pega Ray Charles, você pega Augusto Calheiros…

Angela: Maravilha.

Belchior: John Lennon. Esse pessoal todo firma assim a sua personalidade de artista no seu timbre, no modo de emitir, no modo de usar a garganta, vamos dizer assim, no modo onde firma a palavra né? Onde é que ele vocaliza a palavra, se mais na garganta…

Angela: Sem o medo da sujeira vocal, porque a sujeira vocal é a riqueza né?

Darcy: É a emoção acima da razão né?

Angela: Perfeito.

Belchior: Então tem esse lado assim, profundamente lúdico da arte, profundamente individual também, em que a pessoa cria seu estilo através da estetização das suas qualidades né? Que, em determinado momento, podem ser consideradas fora da norma, podem ser consideradas fora da tradição.

Darcy: Dos padrões preestabelecidos né?

Belchior: Então esses padrões preestabelecidos estão ai para serem ultrapassados né?. O padrão existe justamente para ser derrubado, para ser vencido, entende? Então é importante que existam os padrões para que a gente possa derrubá-los.

Darcy: Tamos ai, tô contigo.

Estúdio de gravação Sonima, Avenida Rio Branco, São Paulo (1974)

— Olha Bel, vamos preservar esse seu canto. Vamos tentar trabalhar numa linguagem orquestral mas sem perder o seu toque nordestino. Vamos preservar isso, mas vamos misturar com uma sonoridade mais moderna. Vamos ter que saber equilibrar isso aí.

O que Marcus Vinícius mirava em termos de sonoridade moderna naquele momento eram as referências de música pop. Para aquela produção o que mais o influenciava era o trabalho de George Martin com os Beatles, com linguagem orquestral mas sem perder a “impressão pop”.

— Minha música é um pouco mais voltada para uma prospecção de coisas novas, de sonoridades relacionadas à vanguarda. E o Bel não, Bel era mais força bruta mesmo, ele via sentido numa coisa mais telúrica, mais voltada para a terra.

Nascido em Pernambuco, Marcus morou um tempo na Paraíba e se mudou para o Rio de Janeiro, onde se formou músico em 1970 pelo Instituto Villa-Lobos. Enveredou pelo caminho da música atonal e da música instrumental de vanguarda.

Ele mesmo fez os arranjos de Dédalus seu disco de estreia lançado naquele mesmo ano. Teve liberdade total para gravar, não houve interferência da Continental em seu processo criativo. O resultado impressionou Belchior que iria gravar seu primeiro álbum pela Chantecler, então uma subsidiária da Continental.

O produtor dos discos era o mesmo: Walter Silva, conhecido como Pica Pau. Ciente da afinidade artística entre eles, Pica Pau deu carta branca para Marcus:

— Marcus, eu vou fazer o seguinte: faz os arranjos do disco do Belchior, porque como você entra no estúdio e você não é apenas arranjador, maestro, mas também é produtor musical, eu deixo você ir no estúdio para vocês fazerem o que quiserem.

O formato voz e violão utilizado por Belchior para apresentar suas composições, não conseguia passar toda a força que a música dele pedia. Marcus enxergava uma potência na voz do cantor, que remetia à imagem de um sertanejo, um vaqueiro cantando um aboio. Era preciso um suporte sonoro maior para valorizar aquele canto.

As letras já estavam prontas e balançavam na cabeça de Belchior enquanto caminhava pela Rua da Consolação até o apartamento de Marcus Vinícius na rua Frei Caneca, na Bela Vista, região central de São Paulo (SP).

Vamos andar
Pelas ruas de São Paulo
Por entre os carros de São Paulo
Meu amor, vamos andar e passear
Vamos sair pela rua da Consolação
Dormir no parque, em plena quarta-feira
E sonhar com o domingo em nosso coração

Quando chegava ao apartamento de Marcus, Belchior mostrava a letra da canção em que iriam trabalhar. Discutiam os arranjos, Belchior escrevia. O processo durou dois meses.

Para gravar, Marcus recorreu aos músicos de estúdio em São Paulo. O resultado foi um sofisticado disco de estreia para Belchior, com sopros e cordas embalando suas letras com forte referência da poesia concreta.

A capa verde do álbum leva o nome de Belchior — nome também do disco — e seu perfil estampado em preto e branco, na fotografia de Mario Luiz Thompson, com os olhos fechados.

As gravações do disco inaugural de Belchior foram feitas no estúdio Sonima na avenida Rio Branco, em São Paulo. Elis também entrou naquele estúdio, meses depois, para gravar o disco Elis. Na capa, a cantora aparece também de perfil, olhos semicerrados, olhando para baixo.


Estúdio de gravação, Campos Elíseos, São Paulo (1975)

Olhando para baixo, os olhos bem abertos de Elis Regina viram Belchior sentado no canto do estúdio. Não era mais aquele rapaz barbudo, longa cabeleira, da fotografia do primeiro LP. Ostentava um bigode, que acompanharia sua silhueta por toda a vida.

Os olhos abertos de Belchior assistiam a uma sessão de gravação de dois amigos que fez em São Paulo: o violonista Toquinho e o poeta Vinícius de Moraes. Assim como o compositor, Vinícius também trilhou o caminho da poesia em direção aos palcos e às ondas do rádio. Gostava de Belchior justamente porque este conhecia sua obra poética, contou certa vez o cearense.

Com 30 anos, a cantora buscava repertório para um espetáculo que refletia sobre as glórias e dissabores de ser artista no Brasil. Sua voz já tinha dado vida, vento e vela aos versos daquele compositor. Mas não conhecia Belchior pessoalmente.

Naquele dia estava sendo gravado Vinícius e Toquinho (Philips, 1975), lançado com uma capa forte de Elifas Andreato, o desenho de duas mãos negras entrelaçadas.

No momento em que Elis o encontrou, não era só a aparência de Belchior que havia mudado em relação ao primeiro disco. Novas composições também o acompanhavam naquele momento. A cantora quis escutar.

— Olha eu não posso gravar a fita pra você porque eu não tenho violão, eu não tenho gravador, eu não tenho fita, eu não tenho casa pra morar. Não adianta a senhora me convidar pra sua casa, porque eu não tenho dinheiro pra ir de ônibus até lá.

Elis ri.

— Então você pode ir até a minha casa hoje, eu mando o carro para apanhar você.

— Então a senhora por favor mande o carro me apanhar na hora do jantar [risos].

O encontro com Elis Regina foi narrado por Belchior em diferentes entrevistas, e era uma das histórias que ele mais gostava de contar pessoalmente aos interlocutores próximos nos últimos 10 anos de sua vida, sem a mediação da imprensa.


Estúdio de gravação, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (1976)

De olhos fechados e punhos cerrados, Elis começou a cantar a última música daquela sessão de gravação.

Com um tom mais alto, aquela canção foi a que mais exigiu da cantora e, por isso mesmo, foi deixada para o final daquela sessão. Ela estava há cinco horas no estúdio e havia gravado outras nove faixas, a voz junto com os instrumentos, sem playback.

O repertório do disco foi selecionado do espetáculo que estava sendo apresentado pela cantora no Teatro Bandeirantes desde o ano anterior.

Elis estava isolada dos outros músicos na cabine do estúdio recém inaugurado da gravadora, que ficou suspenso no ar, durante quatro minutos e onze segundos. Ela só abriu os olhos depois de cantar o último verso: “E precisamos todos rejuvenescer”.

— Essa música foi gravada por Elis em primeira mão e ela me falou uma vez que essa música era uma música difícil, uma música complexa, uma música com uma letra violentamente geracional, mas que ela não gostaria de ouvir essas palavras ditas por ninguém mais antes dela. Então esse depoimento valeu pra mim, como uma emoção, como uma oportunidade de estar diante de uma mulher rara, uma artista enorme na música popular brasileira.

***

André Midani, então presidente da Philips, atende o telefone.

— Ô André, aqui é o Mazzola.

— Ô minino, fala ai.

— Eu levei pra uma reunião de produção um artista que tá gravando com a Elis Regina e eu confio muito nesse cara, gostaria muito de fazer um trabalho com esse cara, mas a empresa vetou, os produtores todos vetaram, a direção comercial, tudo isso.

— Então leva de novo pra próxima reunião.

Na reunião seguinte Midani estava também presente e Mazzola consegue autorização pra gravar Belchior, mas teria que ser uma produção de baixo custo. Com receio do que poderia acontecer caso aquele trabalho não decolasse, ele volta ao assunto com Midani.

— André, e aquele artista? Eu tô preocupado em fazer e depois dá errado e as pessoas vão falar…

— Minino, faz… faz minino.

****

Olhos fechados, sobrancelha arqueada e a cabeça voltada para o alto, a boca levemente emitindo um canto torto. A barba feita, a veia saltada do pescoço. A cabeça tombada para a direita num ângulo de 45º.

— Se você me perguntar porque tem esse ângulo, vou dizer pra você: não sei, eu vou fotografando.

Januário Garcia registrou Belchior em diversos retratos em preto e branco durante a gravação do disco. Ele buscou captar com sua câmera as imagens projetadas pelos versos do cearense. O ângulo foi uma escolha baseada no feeling daquele momento.

— Porra é aqui, essa praia aqui.

Pra dar conta de toda a complexidade trazida por aquele canto, a imagem em preto e branco, como no primeiro disco, não era mais suficiente. Januário refotografou a própria foto. Ainda não tinha chegado onde queria, tentou mais uma técnica. Durante o processo de revelação do negativo, acendeu e apagou a luz. Um gesto rápido, pois o tempo é fundamental nesse processo. “Se fizer demais, vai embora”.

Januário reparou que Belchior segurava um papel em uma das mãos.

— Que é isso aqui Bel?

— É um desenho meu, eu às vezes…

— Deixa eu fotografar isso, vai ficar legal tu botar na capa.

Feito com caneta hidrocor e lápis, o desenho que remete a um circuito eletrônico foi inserido na contracapa do disco, montado sobre uma foto do artista de perfil.

— Eu desenho como uma coisa muito íntima, como uma coisa assim um ambiente, um espaço em que eu tenho total e inteira liberdade e nenhuma consideração pelo que possa acontecer com aquele objeto produzido. Quer dizer, essa parte mais íntima do meu modo de criar, é o meu espaço livre, totalmente livre, onde eu posso ser, onde eu posso fazer aquilo que meu coração quer e que o meu corpo pede.

O estúdio da Phonogram na Barra da Tijuca começou a ser construído em 1974 e ficou pronto em 1976, assim como o segundo disco de Belchior.

Quando o compositor cearense soltou seu canto anasalado para gravar Alucinação, estava no “mais sofisticado e moderno de todos os estúdios do grupo Philips / Siemens”, conta André Midani em seu livro de memórias Do Vinil ao Download. O único problema, segundo ele, eram os músicos “que não queriam ir até a Barra gravar”.

Mas para Alucinação, Mazzola reuniu um time de grandes músicos da gravadora.

Como conseguiu autorização pra gravar o artista com muitas reticências e orçamento limitado praquele trabalho, Mazzola resolveu convocar músicos tarimbados para aquela tarefa.

— Falei, bom vou chamar os músicos da melhor qualidade. Ai trouxe um músico de São Paulo pra guitarra, trouxe um baterista que eu gravava sempre com ele, trouxe o Belchior.

Antenor Gandra e Rick Ferreira foram os guitarristas daquela gravação e se revezaram entre a guitarra elétrica e a viola caipira. Pedrinho Batera assumiu a bateria, e José Roberto Bertrami tocou piano, órgão, teclado e sintetizador. Paulo César Barros assumiu o baixo e Ariovaldo Contesini a percussão. O disco contou ainda com Lui nas harmônicas e viola caipira e Evinha, Maritza e Regina nos backing vocals.

Mazzola se deu conta que além de compositor, Belchior tinha facilidade pra cantar as próprias composições.

— Eu quero um disco como se fosse live, um disco de estúdio mas que você cante ao vivo. O disco tem que chamar Alucinação, tem que ser uma coisa… já que você faz a voz assim, você não é um cara tão bonito assim, vamos botar pra quebrar logo.

Após a escolha do repertório, os músicos passaram uma semana ensaiando no estúdio. Quando todos estavam tinindo em sintonia, Mazzola levou o time pro estúdio de gravação. Na primeira tarde foram seis faixas e no dia seguinte, as quatro restantes.


Lançamento de “Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo”, Rádio Nacional, Rio de Janeiro (1979 )

Darcy Marcelo: Quanto tempo de estúdio hein Belchior?

Belchior: Normalmente eu gravo muito devagar, levo mais de um mês pra fazer o disco. Porque além do cuidado de finalizar a letra, que sempre faço isso no estúdio, além do trabalho de finalizar as melodias e de pensar, produzir os arranjos, tem também assim aquele vagar pra que as condições técnicas do disco sejam finalmente perfeitas, sem assim os vacilos que um descuido no estúdio pode provocar dentro do disco. Então eu prefiro gravar devagar, mais lento, pra que o trabalho saia perfeito.

E também porque, como artista que trabalha com um objeto estético muito sofisticado como é o disco, eu quero acompanhar todas as fases de produção. Assim, desde a mesa, a arregimentação das pessoas, a programação do estúdio, a gravação, o corte do disco, a mixagem, a feitura da capa, como é feita a distribuição do disco, como é feita a divulgação do disco. Quer dizer, como artista assim atual, eu me interesso por todas as fases da produção de música, eu quero saber de todos esses processos e quero fazer do conhecimento desse processo, um dado criativo incorporado ao meu trabalho.

Darcy: E a base desse disco, são músicos que trabalham normalmente com você ou não? São arregimentados apenas para o disco hein Belchior?

Belchior: Dessa vez eu mesclei assim. Eu gostaria de poder fazer um trabalho com os músicos com quem convivo, no show assim…na televisão, e na batalha mesmo do dia a dia, de fazer a música e apresentá-la ao público. Mas algumas vezes não é possível mesmo por problemas de mudança no conjunto. Sai um baterista, um tecladista. Então eu não pude até aqui manter assim um conjunto que trabalhasse 2, 3 anos comigo, que já pudessem, de certa forma, padronizar o meu som.

De forma que eu prefiro mesclar dentro do disco, com pessoas que tem mais habilidade técnica no estúdio e pessoas que convivem com meu trabalho há bastante tempo, como é o caso desse LP onde os arranjos assim de base foram conduzidos inicialmente pelo Palhinha e finalizados no estúdio pelo Robson George. E teve um concurso de músicos assim extraordinários, como é o caso de Maurício Einhorn, Robertinho Silva, Chiquinho do Acordeon, Rick e diversas outras pessoas que trabalharam convidadas no estúdio.

Então eu acho uma coisa muito importante, que os músicos todos compreendam esse significado da feitura do disco ali no estúdio. Precisam ser músicos competentes que possam de cara chegar e entender, e sentir através de uma primeira audição da música toda uma intenção estética, de sonoridade e de letra que deve passar para o espectador, o ouvinte de música através do disco.


Residência em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, 26 de outubro de 2016

Em sua residência em Santa Cruz do Sul (RS), ao lado da companheira Edna Prometheu, Belchior acompanhou animado as homenagens feitas na imprensa por ocasião de seu aniversário, assim como as manifestações dos fãs na internet, que pediam pela volta do artista.

Vivia em uma casa grande, com espaço suficiente para se dedicar à meditação, escrita e desenhos, suas principais atividades durante aquele período. Estava isolado e podia caminhar sem ser visto.

Comemorou o aniversário ao lado de Edna, Aline Kwiatkowski e Flávio da Silva, os vizinhos com quem compartilhava o segredo de seu paradeiro, conforme relatam Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti no livro Viver é Melhor Que Sonhar.

Quando completou 70 anos, Belchior era dado como “desaparecido” pelos veículos de comunicação. Quase ninguém conhecia o paradeiro do compositor, que havia se lançado em um autoexílio, deixando no ar os questionamentos sobre “onde está Belchior” e quais seriam as motivações desse sumiço.

Imagem: Reprodução/Blog do Simão

Naquele momento, o Brasil havia dado os primeiros passos para um lugar escuro com a derrubada da presidente Dilma Rousseff. O desespero chegou e Belchior não estava ali para dar voz a ele. “Fora Temer, volta Belchior” parecia uma possibilidade em 2016.

Eu trabalhava em um veículo de comunicação em Brasília e também não sabia onde estava Belchior. Procurei por ele nos arquivos da empresa e me espantei com a pergunta da radialista Geisa Herrera que chegava com frequência dos ouvintes da Rádio Nacional FM do Rio de Janeiro: “Onde anda Belchior?”. Em 1987, ele sorriu com a pergunta.

— Realmente, essa pergunta tem me sido feita com uma frequência incrível nos mais diversos lugares. Veja que eu já estou dando a dica de que essa pergunta tem sido feita em lugares diferentes onde eu estou.

Dos registros de Belchior que encontrei no acervo da empresa em 2016, o mais recente era de 2003. Belchior vestia calça e jaqueta jeans e cantou suas canções mais conhecidas, sentado em um banquinho e acompanhando sua voz ao violão, como no início da carreira. Contou sobre seu encontro com Elis Regina e falou sobre as músicas Velha Roupa Colorida e Como Nossos Pais ao apresentador Luís Carlos Miele.

O Belchior de 1979 foi o que mais me impressionou: me mostrou, faixa por faixa, um disco forte de sua discografia: Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo, que até o aquele momento eu desconhecia.

Além da clareza das ideias e do raciocínio agudo de Belchior naquela entrevista, me chamou a atenção a cadência de sua fala pausada, em um tom calmo. Transmitia ideias fortes com tranquilidade, havia confiança e serenidade naquela voz.

Em 2016, dois livros sobre Belchior estavam sendo escritos, mas a publicação do primeiro deles só viria no ano seguinte. Foi então que encontrei uma explicação para aquela cadência em sua fala: o convento dos frades capuchinhos em Guaramiranga (CE), onde ingressou em 1964.

Foi lá que adquiriu “o jeito pausado de falar, com uma entonação falsamente ordinária, sem picos nem falhas”.

“Ao mesmo tempo, as palavras eram ornamentadas por uma perfeita dicção, refinamento feito de erudição íntima, sem afetação. O conhecimento vertiginoso chamava a atenção dos interlocutores e, muitas vezes, os intimidava”descreve o jornalista Jotabê Medeiros, no livro Apenas Um Rapaz Latino-Americano.

Foi nessa cadência que Belchior iniciou aquela entrevista de 1979.

— Você sabe que a pessoa do artista é menos importante do que o personagem artístico, quer dizer, o trabalho do artista importa mais do que o significado particular da sua vida.


San Gregório de Polanco, Uruguai (2009)

Em 2009, em sua última entrevista para um canal de televisão, Belchior recorreu a esses versos para justificar sua estadia no Uruguai naquele momento. “Você sabe que eu tenho uma ligação muito forte com a América Latina. Eu sou apenas um rapaz latino-americano”, diz e sorri com a afirmação, em um dos poucos momentos de descontração daquela entrevista.

Hospedado na cidade de San Gregorio de Polanco no Uruguai, ele foi surpreendido pela equipe de reportagem do Fantástico, que passou o dia de plantão na porta do chalé, onde ele estava acompanhado de Edna. O compositor cedeu quando já era noite. Vestia calça jeans, tênis All-Star e uma camisa branca de botões e mangas longas. Estava com o cabelo pintado. Iluminado pela luz dos spots, se mostrou visivelmente incomodado com a presença da emissora.

— Quando minha assessoria falou do programa achei estranho, porque achei que não tinha nenhuma relação comigo. Sabe, eu sou uma pessoa… eu não sou uma celebridade. […] Eu não tenho interesse pessoal na vida de nenhuma pessoa sabe, em nada.

Fortaleza, Ceará (1968)

Jorge Mello foi para Fortaleza em busca do sonho de trabalhar na televisão. Em sua bagagem carregava a experiência que havia acumulado no rádio em sua cidade natal Piripiri (Piauí). Em Fortaleza, frequentava os shows do tipo jovem guarda e se inscreveu no vestibular de direito “para almoçar mais barato”.

Vivia em uma modesta república, com colchões ao chão. Dividia a casa com o irmão Emanuel de Carvalho Melo, que se mudou para Fortaleza com o objetivo de estudar medicina. Naquele março de 1968, o mais perto que Jorge tinha chegado da televisão era como vendedor desses aparelhos e outros eletrodomésticos.

Depois de passar a manhã na rua vendendo aqueles eletrônicos, Jorge chegou em casa. Emanuel estudava com outro colega de sala em uma mesinha de plástico. Nunca tinha visto aquele rapaz, mas lembrou que seu irmão já havia lhe falado sobre um colega da faculdade que era muito ligado em música.

— Jorge, o carinha lá toca violão igual você, não quer saber nem de estudar, bicho. O sujeito não estuda porra nenhuma, só toca violão debaixo das árvores. Às vezes a gente empresta o caderno, ele copia e tal.

Jorge deitou nos colchões, pegou o violão e botou no peito.

— Tiririm tururum, pra descansar, esperando dar uma sonequinha.

O amigo de Emanuel se virou e sentou ao seu lado.

— Rapaz, comé que faz esse acorde? Que acorde cê tá fazendo?

— Ah. Isso é um si menor.

— É mesmo? Poxa, deixa eu botar aqui. É aqui? — monta o acorde no violão.

— É sim.

Emanuel se vira para Jorge:

— Jorjão, cê lembra do sujeito que falei que não estuda porra nenhuma, só pensa em tocar violão? É esse aí, o nome dele é Belchior.

No dia 23 de março de 1968, Jorge Mello e Belchior fizeram a primeira música juntos: Porque Choras, Madalena? Desse período, entre maio e junho de 1968, a parceria rendeu três composições que permanecem inéditas: Garotas da Aldeota e Colorido da Pobreza.

Belchior ainda não cantava suas próprias composições. Emanuel Melo foi seu primeiro intérprete. Ele e Lucinha de Menezes deram vida aos primeiros do compositor no circuito universitário e na florescente boemia da capital cearense.

Não era no prédio da Medicina, nem do Direito, que aqueles compositores se reuniram durante o período universitário. Foi o curso de Arquitetura, com um diretório acadêmico isolado dos outros prédios que serviu de local de reunião daquela patota.

Uma casa pequena com sala de estudos, banheiro e um quarto com beliche. Era o único curso que tinha esse ambiente exclusivo para os estudantes e se tornou a sede do movimento dos musicais. De lá, partiam para a boemia da capital cearense. No primeiro ano, a aglutinação dos jovens músicos acontecia no Balão Vermelho, botequim localizado na avenida Duque de Caxias. Mas rapidamente migrou para o bar de um ex-ascensorista, na beira da praia, o bar do Anísio.

Foi durante uma prova de estrutura de concreto do curso de Arquitetura, que Fausto Nilo reencontrou Belchior.

— Tava fazendo a prova e via a cabeça dele na porta, ele botou a cabeça assim na horizontal e eu quase não reconheci quando apareceu.

Era um Belchior diferente daquele que havia conhecido no Liceu do Ceará. Estava com o cabelo mais longo e de bigode, “mais ou menos com essa imagem que ele ficou depois”. Belchior riu, e ficou esperando do lado de fora. Quando Fausto entregou a prova e deixou a sala de aula, Belchior fez uma proposta.

— Ele chegou falando altíssimo, ele falava alto, aquela voz…

Naquele momento, Fausto Nilo era vice-presidente de José Genoíno no diretório acadêmico. De posse dessa informação, Belchior procurou o amigo pra agendar uma apresentação musical no restaurante universitário. Belchior contou que tinha largado o seminário de frades, estava na faculdade de Medicina e que era compositor.

Nilo já acompanha o movimento de compositores que orbitava em torno da universidade, era amigo do grupo, mas a chegada de Belchior o espantou.

— Aquilo me desorientou, primeiro que eu nunca imaginei ele fazer um show. Eu não esperava nunca encontrá-lo como compositor e com aquele visual todo que ele tava. Uma coisa realmente desorientadora pra o que eu conhecia do cara anterior.

Belchior pediu pra mostrar as músicas, ali mesmo no pátio, no horário do almoço, para que o amigo avaliasse seu repertório e desse o aval para a apresentação no restaurante.

Ai meu senhor, dono da casa
Acorde, pois o Sol quer lhe dizer
Que a morte fez metade do caminho
Abra, que sou seu vizinho
Saia, pra me responder

Belchior começou a cantoria com os versos de Senhor Dono da Casa, que seria gravada pela primeira vez dali a seis anos. A essa se seguiram várias outras, um repertório de aproximadamente 20 músicas apresentadas aos estudantes que transitavam pelo pátio e trabalhadores da universidade. Fausto Nilo ficou sem compreender o que se passava diante dos seus olhos, e mesmo seus ouvidos não ajudaram.

— Puxa, esse cara tá pirado bicho, esse negócio de fazer música, esse cara era ligado na bíblia…

Ao redor de Belchior, foi juntando gente, estudantes e funcionários da universidade pararam pra escutar e dedicaram atenção àqueles versos. Vendo o interesse estampado no rosto daquela plateia que se formou, Nilo decidiu inserir o nome de Belchior entre as apresentações do restaurante universitário. Mas naquele momento ainda não havia digerido a música que o amigo apresentava.

— Eu confesso que sem compreender aquele cara ser compositor de música popular. Eu achei a voz esquisitíssima, aquela voz roufenha assim, e não sabia dizer sobre aquelas músicas, eram diferentes do que eu estava habituado. Reconheço que tive um certo preconceito, ouvi mal no começo.

Depois da apresentação no restaurante universitário, Nilo apresentou o amigo para o grupo de compositores que frequentavam com ele o bar do Anísio, na praia de Mucuripe.

Ainda em 1968, Jorge Mello alcançou o objetivo que foi buscar em Fortaleza: foi contratado como diretor musical da TV Ceará e levou Belchior como produtor do programa Porque Hoje é Sábado de Gonzaga Vasconcelos. Toda aquela efervescência musical e artística da boemia passou a ter lugar também nas telas da emissora. Parte dela se concentrava no Gerbaux, logo na esquina.

Belchior começou a desenvolver o violão apoiado em Jorge Mello naquele período. A dupla também passou a frequentar o bar do Anísio.

A opção por trabalhar em um programa de TV naquele momento, revelou naquele grupo o pragmatismo de Belchior em relação ao trabalho musical. Naquela época, com os provimentos do programa de televisão, o compositor rodava pelas ruas de Fortaleza dirigindo um Dolfini cor de vinho. Mais pra frente, trocou o carro por um Opala usado.

— Ele passa a ser um membro do bar lá da turma, um compositor superativo, um poeta potente e, ao mesmo tempo, se apresentou no grupo como um cara que gostava de grana, porque aceitou trabalhar na TV, que os outros jamais iriam — observa Fausto Nilo. Então tinha uma diferença assim e ficou famoso no grupo ali, com pouco tempo, com respeito a ser mão fechada de grana assim, um cara econômico, o grupo chamava ele de econômico. Não era muito gastador, entendeu?

Entre cervejas, nos caixotes de madeira improvisados como banco brotaram muitas composições.

Uma delas Belchior entregou para um rapaz mais novo, que começou a frequentar aquele bar ainda menor de idade. Iniciada em uma tarde no bar do Anísio, no dia seguinte estava musicada por Raimundo Fagner a canção Mucuripe.


Lançamento do disco Melodrama, Rádio Nacional, Rio de Janeiro (1987)

Locutor: Você fez essa música a título assim de uma lição de vida, uma lição de formação para uma geração?

Belchior: Eu posso dizer que essa música não é exatamente assim uma lição de vida porque eu não tenho competência para tais lições. Mas posso dizer que é uma reflexão, uma autocrítica da minha própria geração, um momento em que tentei aprofundar um pouco qual a natureza do nosso sonho, da nossa utopia. Porque o nosso sonho de jovem realmente não aconteceu. Essa música trata disso, da nossa utopia, do nosso sonho bloqueado. Sonho de mudar as coisas, de mudar a vida, de mudar o amor, de transformar o mundo e as pessoas.


TV Escola, Rio de Janeiro (2003)

Luís Carlos Miele: Com todas essas mutações da música popular brasileira, esse tempo todo que você vive com ela, nós ainda somos como nossos pais?

Belchior: Eu acho que essa canção é uma canção absolutamente amarga sobre essa visão, ela tem aquele amargo medicinal sobre isso, né? O poeta está dizendo, está deplorando que apesar de tudo o que aconteceu, nós ainda sejamos continuadores dos nossos pais, continuadores dessa tradição que não é aquela artística né, que todos queremos definitivamente mudar. Espero que nós não sejamos iguais nem parecidos com os nossos pais. Demos continuidade aos sonhos deles sim, mas que sejamos absolutamente outras pessoas, personagens de um mundo novo que a música está definitivamente ajudando a criar.


Rio de Janeiro (1975)

Marco Mazzola ligou para o telefone anotado na fita com as músicas que Belchior gravou para Elis Regina.

— Oi, eu gostaria de falar com o Belchior.

— Quem?

A pessoa que atendeu o telefone trabalhava em uma construção.

— É um rapaz que veio do Ceará, toca violão.

— Ah sim, só um momento.

Belchior vivia na obra da casa da jornalista Irede Cardoso, no Sumaré (SP). Ela cedeu o espaço para moradia provisória do artista até que a casa ficasse pronta.

Ele se alojou primeiro no quarto da frente. Conforme a construção avançava, ia mudando de cômodo. Quando os pedreiros, o barulho e a poeira se aproximavam, ia para o quarto do meio, depois para o outro, mais perto da cozinha.

Assim caminhou até o momento em que Irede, vendo que a obra estava pra ser concluída, avisou.

— Ó Bel, tu arruma um jeitinho de ir para outro lugar porque a casa está indo, a casa tá crescendo.

Assim como os últimos anos de sua vida, no começo da década de 1970 Belchior teve uma vida cigana em São Paulo. Passou por muitas casas e morou em mais de uma construção.

Em 1975, o músico Carlinhos Vergueiro teve um encontro fortuito com Belchior, entre as alamedas Franca e Tietê, na região central de São Paulo. Vergueiro tinha acabado de sair de seu apartamento, na Bela Cintra, por volta do meio-dia, pra esticar as pernas.

— Ô Belchior, tudo bem? Como é que você vai, tá fazendo o que por aqui?

— Poxa, eu tô procurando casa…

— Quer ficar uns dias em casa, até encontrar um lugar pra morar?

Belchior morou com Carlinhos por cerca de um ano. Os caminhos de Vergueiro e Belchior já haviam se cruzado outras vezes. A primeira delas em 1972, em uma república de cearenses localizada na rua Oscar Freire, área nobre na região central de São Paulo.


Oscar Freire, 1.500, região central de São Paulo (1971)

Belchior passava o dia sentado no chão, como um monge, cantando e escrevendo músicas, em uma atividade febril de criação.

A casa tinha dois quartos, sala, corredor, cozinha e banheiro, área lateral e um imenso jardim, descreveu Fagner em uma carta aos pais publicada por Regina Echeverria no livro Raimundo Fagner: quem me levará sou eu .

Era também uma casa em obras, mas esta estava para ser demolida. Ficava de frente para o apartamento de Rodger Rogério, que já era o reduto dos músicos cearenses em São Paulo.

Foi emprestada para Belchior pelo cineasta Mario Kuperman, depois de uma visita à casa de Rodger quando encontrou aquela bando de marmanjos amontoados, dormindo no chão.

— Rapaz, aquela casa ali em frente é minha, eu não tenho interesse naquilo, um dia eu vendo, mas vocês podem ficar lá enquanto vocês quiserem.


Um diálogo sobre composição e parcerias, Rádio Nacional FM, Rio de Janeiro (1979)

Darcy: Você ainda há pouco falava da [música] Pequeno perfil [de Um Cidadão Comum], parceria com Toquinho, e eu li uma declaração que você afirmava que você tem problema de fazer parceria…

Belchior: Eu sempre fui letrista convidado assim, sabe. Quer dizer, no começo mesmo por uma coisa íntima, de timidez pessoal mesmo e não me achegar até as pessoas que já estavam ai no sucesso, até os ídolos, até… essa coisa de bloqueio mesmo pessoal que é muito comum em artistas e…

Darcy: Em mitificar né, aquela coisa…

Belchior: Perfeito. Então eu nunca me aproximei assim de compositores, de cantores, de intérpretes. Você pode até tirar uma conclusão bastante razoável e profunda disso que, ainda hoje, eu conheço pouquíssima gente, eu tenho pouquíssimo contato com os meus companheiros de trabalho. Mesmo até pelo fato de eu não ter intimidade assim pra ligar, pra telefonar, entende? E isso ai tem dificultado muito o trabalho de parceria, essa peculiaridade da minha pessoa.

Então eu sempre sou letrista convidado assim, quer dizer, quando a pessoa convida pra fazer uma letra, então eu faço. Mas eu não tenho aquela cancha, sabe? Pra chegar e propor um trabalho e tal. Sempre aconteceu assim, mesmo em Fortaleza, mesmo em parceria com o Fagner assim, sempre eu fui convidado a fazer esse trabalho. No caso de Toquinho, no caso de Gilberto Gil, no caso de todos os outros parceiros, sempre aconteceu assim.

E também, eu tenho um certo senso de delicadeza pessoal, de não querer submeter meu próprio parceiro à minha loucura criativa, meu caos, minha desordem de compor.

Eu componho continuamente, desordenadamente, de forma que pego uma música, faço três quatro versos, largo, vou fazer outra música, abandono as duas, pego dois, três meses depois. Então eu não tenho rotina de trabalho e seria muito injusto da minha parte, até mesmo um pouco grosseiro, querer submeter alguém a uma desordem assim criativa né, tão total.

Darcy: É Belchior, quem tá chegando aqui é Angela Ro Ro, abre ai.

Belchior: Que bom hein?

Darcy: Oi Angela, como é que vamos?

Angela: Oi meu amor. Como é que cê tá Darcy? Belzinho lindo. Belchior como é que cê tá? tudo bem?

Darcy: Ô Angela, nós estamos falando aqui de problema de parceria né? Que eu li uma entrevista do Belchior, que ele falava que tem dificuldade e tal de fazer parcerias. Ele tava comentando que ele é um pouco indisciplinado e fica com problema por isso. Ele demora muito tempo assim pra fazer a letra, ele acha que de repente o compositor, o autor, né? Compositor. Autor…

Belchior: Autor da letra e compositor da melodia.

Darcy: …Compositor fique chateado, então é um ato até de indelicadeza dele demorar tanto tempo. Como é que você vê isso, você acha que tem um tempo estabelecido pra se entregar uma letra?

Angela: Não, assim… acho que criação nunca tem nada estabelecido dentro dela, né?

Belchior: Eu vivo isso com a maior profundidade possível, quer dizer, a ordem é não ter ordem nenhuma.

[risos]

Belchior: Agora eu concebo também o fato de que outra pessoa possa não gostar dessa desordem. Quer dizer, a minha indisciplina é uma coisa totalmente pessoal, individual, intransferível, de forma que eu não submeteria ninguém a esse ritmo, por que sei que é um ritmo louco, né?

Angela: Perfeito, só encontrando outro louco no caso, né?

Belchior: Perfeito.

Angela: Eu me ofereço, eu me ofereço. Olha eu aqui…[risos]

Belchior: Esse encontro teria que ser absolutamente espontâneo, né? Sem programação nenhuma, como costuma acontecer entre pessoas desse naipe, né.

Angela: Sim, graças a Deus.

Outubro de 1973

Quando chegou em São Paulo no final de 1973, Marcus Vinícius trazia prontos os arranjos de seu primeiro disco e um contrato com a gravadora Continental. Se instalou em um apartamento na rua Bela Cintra, junto de sua companheira Anah. Mas seu ímpeto foi colocado à prova por fatores completamente alheios à sua vontade: a ocupação de territórios palestinos pelos israelenses durante a guerra do Yom Kippur.

Em outubro daquele ano, em represália à ocupação israelense, os países árabes membros da Organizações dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) embargaram o produto para os Estados Unidos, o Japão e a Europa Ocidental. A crise afetou o mundo todo e em particular a indústria fonográfica.

Quando chegou em São Paulo, as gravadoras tinham suspendido a prensagem dos discos de vinil, cuja matéria prima é o petróleo. Os artistas ficaram em compasso de espera.

Enquanto não podia gravar o disco, Marcus passou a frequentar um programa de televisão cujo cachê era a salvação de muitos músicos que estavam se aventurando pela terra da garoa naquele momento.

Foi durante as gravações do Mixturação, produzido por Walter Silva, na Rede Bandeirantes, que Marcus reencontrou Belchior.

Os dois se conheceram no Rio de Janeiro em 1971, pouco depois do IV Festival de Música Brasileira da TV Tupi, do qual Belchior saiu vencedor com a composição Na Hora do Almoço. O pernambucano Marcus sentiu ressonância no perfil do cearense Belchior. A afinidade entre eles ia para além da música.

— A gente tinha uma convivência, digamos assim, um pouco mais voltada para outras áreas de interesse. Eu tinha uma vinculação com o Bel muito mais poética do que propriamente musical.

Em 1973, Belchior também acalentava o desejo de gravar seu primeiro disco. Estava com seu baú musical bem fornido e tinha conseguido um contrato com a Chantecler pela qual lançou um compacto contendo de um lado Na Hora do Almoço e do outro Sorry Baby.

Além da crise do Petróleo, havia outro problema atrasando a concretização do projeto criativo daqueles músicos. Um homem de sotaque inglês nascido no Uruguai, conhecido por mister Morris. Acontece que ele era o diretor artístico do grupo Continental, que havia adquirido a gravadora Chantecler no ano anterior. Não bastava o petróleo para que os discos fossem prensados, precisavam também do aval daquele senhor.

Marcus se recorda do gringo como um diretor artístico “muito tacanho”, que desconhecia música brasileira e o deixava irritado com suas indagações.

— Quantos discos vocês acham que vão vender?

— Olha, eu garanto 12.

— Mas como isso?

— Mister Morris, eu sou o artista, eu tô aqui para gravar o disco, quem vende o disco são vocês. Você é que tem que dizer para a gente qual é a expectativa, o que é que vocês querem com a gente.

Para a sorte de Marcus Vinícius e Belchior, mr. Morris não durou muito na gravadora, assim como a crise do petróleo.

No segundo semestre daquele ano, Belchior foi para a cidade de Bertioga, no litoral norte de São Paulo (SP) participar de um encontro internacional de Yoga, realizado no Sesc local. Foi na companhia do fotógrafo Mario Luiz Thompson, responsável pelo retrato que estamparia seu primeiro disco, quando a boa vontade da gravadora e dos países exportadores de petróleo assim o permitissem.

No último dia do encontro de yoga, Belchior conheceu Angela Henman, paulistana de família inglesa que circulava por Bertioga naqueles dias dirigindo um Karman Guia vermelho.

“Varamos a noite na praia, conversando de tudo”, recorda Angela Henman Belchior.

Imagem: Reprodução/Acervo Folha

Apresentação no Teatro Mackenzie, 23 novembro de 1974

Show da MPB: Belchior, Carlinhos Vergueiro, Marcus Vinicius e Anah, estampava o anúncio da Folha de S. Paulo, promovido pelo Centro Cultural Mackenzie.

A expectativa para aquele show no Auditório Mackenzie, girava em torno de uma incerteza. Belchior voltaria a São Paulo a tempo de fazer aquela apresentação? Dois mil ingressos haviam sido vendidos.

Depois do lançamento do primeiro disco Belchior (1974) pela Chantecler, o músico cearense fez uma temporada de shows no Teatro de Arena. Tocava de quarta a domingo. Marcus também se apresentava naquele espaço, marcavam juntos as apresentações.

Com propostas ousadas, os discos de Marcus e Belchior correram o circuito artístico e da crítica, mas não foram sucesso de vendas.

Marcus estava disposto a seguir a linha de experimentação poética e de vanguarda musical que havia começado em Dédalus (1974). Já Belchior esperava uma reação mais calorosa para aquele trabalho.

Quando estavam fechando uma data para o show no Mackenzie, Belchior avisou que precisava de um tempo.

— Não, tudo bem. Eu vou para o Ceará e volto nas vésperas do show, tô precisando resolver umas coisas por lá. Tô precisando pensar um pouco.

Antes da viagem para Fortaleza, Belchior apareceu na televisão falando sobre suas referências musicais e a vida de garoto em Sobral (CE). Contou até seu signo: escorpião. No programa MPB Especial, dirigido por Fernando Faro, um Belchior de 27 anos cantou e tocou violão vestido com uma bata branca, corrente no pescoço, cabelo longo e barba espessa. Era o Belchior da capa do primeiro LP.

— Eu acho que é preciso desafinar de novo, sabe?. O Marcus Vinícius que lançou um disco maravilhoso chamado Dédalus, ele diz isso na capa do disco: ‘É preciso desafinar de novo’. É preciso desenrolar o carretel da linguagem até onde dá, sabe, desafinar o coro dos contentes. Você não vê, mas eu não posso deixar de dizer meu amigo, uma nova mudança em breve vai acontecer. O que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo, precisamos todos rejuvenescer.

Belchior em 1974 tocando violão na casa de amigos antes dar adeus aos cabelos longos e a barba | Foto: Angela Henman Belchior/Acervo Família Henman Belchior

Assim de sopetão, numa cadência rápida de fala, Belchior soltou para as câmeras da Fundação Padre Anchieta os versos da música Velha Roupa Colorida, que ainda não havia sido gravada. Foram apenas as palavras, naquele 2 de outubro de 1974, sem tocar sequer um acorde ao violão.

Antes da viagem, na entrevista para o programa de Fernando Faro, o compositor falou sobre a solidão paulistana e a importância da experiência mística para a população do Nordeste.

Quando eu vim pra São Paulo eu percebi novamente o sentimento místico da multidão, sabe? No Ceará acho que todo mundo tem isso, no Nordeste todo, Ceará, Bahia, onde tem grandes ajuntamentos de pessoas com finalidades religiosas né? Então a gente perde mais ou menos a individualidade, é uma coisa muito… É uma espécie de êxtase em que você perde a individualidade e você passa então a um sentimento místico da multidão, sabe? Isso é importante, porque quando eu cheguei em São Paulo, essa coisa se intensificou em termos de massa assim sabe, a grande manada humana, basicamente cidades onde a gente perdeu qualquer sentimento de vinculação, a gente fica profundamente individualizado, profundamente a gente mesmo, mas perde toda a vinculação e os laços com outras pessoas, isso é muito, muito ruim. Então dá uma solidão muito grande, a solidão da grande cidade eu acho que é isso né, afinal de contas acho que é muito bom a gente ser índio, sabe?

O programa que foi ao ar na TV Cultura teve duração de quase 52 minutos. E trouxe um Belchior verborrágico, com uma fala rápida e rasgada, diferente do tom calmo e professoral de seminarista que marca a maior parte de suas entrevistas no rádio e na televisão.

As câmeras mostram um Belchior risonho a maior parte do tempo, em especial quando conta histórias de sua infância. Falou sobre a importância da música nordestina, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, do canto de igreja e também de Beatles e da Tropicália em sua formação. Tocou ao violão e cantou uma versão blues de Asa Branca e Procissão de Gilberto Gil, além de músicas que marcaram sua infância.

Ao final do programa, ele apresenta Fotografia 3×4 que faria parte do disco Alucinação, seguida de A Palo Seco que já aparece em seu primeiro álbum e seria também regravada no segundo, com uma ligeira atualização do desespero em 1973 para o desespero em 1976.

“Essa música A Palo Seco é uma música pra depois do sonho…” , diz Belchior ao final da execução. Com a feição séria, ele assume um tom ríspido, e solta o verbo enquanto sobem os créditos do programa.

Fala-se que depois de Caetano, de Chico, de todos que estão ai, não apareceu mais ninguém. É muito interessante observar com mais cuidado. Porque tá aparecendo muita gente: Marcus Vinícius, Walter Franco, Carlinhos Vergueiro, o pessoal do Ceará, muita gente, muita gente. Fagner, o Luiz Melodia, o Raul Seixas, todos, todos os novos são muito bons. Eu tô muito interessado no trabalho desse pessoal, não tô interessado no passado. O resto pra mim é passado e não tô interessado no passado, o resto é material de discussão, o resto é tradição. Então eu tô interessado em uma linguagem nova dentro da Música Popular Brasileira, novas palavras, novos signos, novos símbolos, quer dizer, a música popular brasileira precisa se desprovincianizar e precisa perder o medo dos ídolos.

Nós não estamos interessados em idolatrias, em mitologias. Todos os mitos são iguais aos sabonetes, iguais aos pacotes de açúcar, iguais aos pacotes de macarrão e às frutas dos supermercados, pra que esconder esse papo? Pra que ficar cultuando, pessoal? É mais interessante uma perspectiva de trabalho, a perspectiva de uma abertura mais nova, o Brasil é grande e o trem tá dividindo o Brasil como um meridiano: tudo é Norte e tudo é Sul. Tudo é Leste, tudo é Oeste. Tudo é sol, tudo é lua. Todo tempo é tempo, todo tempo é contratempo.

Anotações no diário de Jorge Mello sobre a composição de A Palo Seco | Imagem: Leandro Melito

Na rua Itambé, 135, no dia 23 de novembro, o Belchior que desceu do carro em frente ao Auditório Mackenzie não era o mesmo que havia embarcado para Fortaleza. “Ele já estava com um look diferente, sabe?”, recorda o amigo Marcus. As roupas mudaram e a barba deu lugar ao bigode, que se tornaria sua marca. Estava com 28 anos, recém completos.

Belchior entrou no palco empunhando um violão de doze cordas, já com uma pegada “meio Dylan”. O repertório também tinha novidades.

Para uma audiência de 2 mil pessoas, ele tocou Freedom de Richie Ravens e apresentou ao público pela primeira vez algumas músicas que iriam compor o repertório do disco Alucinação.

Marcus não fazia ideia do que ocorrera na viagem de Belchior ao Ceará, mas acredita que o compositor passou por um processo de muita inquietação “pra ele ir de jeito e voltar razoavelmente transformado”.

“Eu acho que ele refletiu melhor e definiu o que seriam os passos novos da carreira dele”, analisa Marcus ao desenrolar no novelo da memória aqueles acontecimentos em nossa conversa por telefone . Em 2021, pensando no processo de transição do Belchior do primeiro disco rumo ao Alucinação, a apresentação no Mackenzie é o turning point de sua cronologia.

— Ele se soltou mais no palco e começou a cantar de pé, com os gestos mais abertos. E começou a usar umas roupas um pouco menos convencionais.

Vim num voo internacional — o que de certo modo me faz ver o Ceará como um distante país amigo. Mas tudo bem. Aqui em São Paulo ainda está frio. Creio, porém, que rever as pessoas queridas e brincar de novo ao sol daí é o bastante para ter calor durante muito tempo.

Foi dessa maneira, sentado à máquina de escrever Olivetti que sempre o acompanhava, que Belchior datilografou sobre seu retorno ao frio paulistano, em carta enviada ao casal de amigos Ricardo Bezerra e Elisabeth, com quem esteve durante a temporada no Ceará. A carta foi enviada com data de 25 de novembro, dois dias após a apresentação.

As notícias aqui são as seguintes: fiz um show na Escola Mackenzie (2.000 pessoas) juntamente com Carlinhos Vergueiro e Marcus Vinícius. Além de composições novas (algumas você ouviu aí em casa) cantei “Freedom” do nosso querido Richie Havens.

Recebi um convite para a RCA. Estou estudando as propostas.

Belchior não viajou sozinho para Fortaleza. Estava acompanhado de Angela Henman, queria apresentá-la à sua família. No dia que a carta foi enviada, a foto do casal ilustrou uma matéria de capa do jornal O Povo, sobre sua jornada em terras paulistanas: Belchior: Foi, Viu, Venceu.

O casal estava em busca de um novo visual. Aproveitaram a temporada em Fortaleza para investir no figurino: tecidos, rendas e trabalhos manuais abundantes por aquelas bandas. Visitaram também o casal destinatário daquela carta.

Ricardo Bezerra tinha passado um ano em Pernambuco trabalhando como diretor de criação na empresa Italo Bianchi, maior agência de publicidade do Nordeste naquele momento.

“Meu trabalho era cobrar redatores, arte-finalistas. Foi muito duro porque eu não gosto de cobrar nada. Era tudo pra ontem, tava sempre correndo, virando a noite”.

Voltou para Fortaleza, em busca da vida criativa e se instalou em um sítio na beira da lagoa Maraponga, que pertencia à família de Elisabeth. Era uma casa simples, pitoresca, com vista para a lagoa, repleta de mangueiras e outras árvores frutíferas. No período da seca, a lagoa se afastava e a terra úmida se tornava fértil para o plantio. Cultivavam o próprio alimento, levavam uma campestre com rápido acesso ao centro urbano.

— Foi essa posição que eu assumi, preservando a família e tendo uma vida mais natural. Respirava ar puro, tinha uma vaquinha que dava leite fresco, quintal, na beira da lagoa, uma proposta de vida menos industrial. Era uma vida meio rural, a gente achava que era importante criar os filhos naquele ambiente.

Ricardo Bezerra cursou arquitetura na Universidade Federal do Ceará. Fazia parte daquela patota de compositores que se reunia no diretório acadêmico e seguia para os bares de Fortaleza. Data daquele período a composição Cavalo Ferro, em parceria com Fagner. Diferente dos amigos, Bezerra não quis se aventurar como artista popular no Sudeste.

— Eu tava no meio da faculdade, tinha uma cabeça meio burguesa, vi que aquela vida era muito dura, aquele monte de gente amontoado em uma quitinete, achei que não era pra mim. Não me atraia a música de palco. Meu objetivo era fazer música. Subir em palco eu até subo, mas não é algo que me agrada.

Em Maraponga, havia também o piano de Elisabeth e a música circulava, assim como os compositores. “Tinha a rua, o futebol que se jogava no meio da rua, criou-se ali um polo cultural”.

Bezerra não se recorda daquela visita em particular, em novembro de 1974, mas se lembra do casal ter frequentado aquela casa. E acredita que o movimento criativo que orbitava em torno do sítio pode ter influenciado Belchior na concepção de seu novo disco.

— Isso é provável pelo movimento que envolvia a casa, pelas pessoas que frequentavam a casa, que se tornou esse ponto de atração. Toda essa gente que girava em torno dessa casa. O Bel era uma pessoa de cultura eruditíssima. Uma pessoa que tem uma cultura como o Bel, tem condições de construir uma obra muito consistente, para além dos palcos e de ser um artista popular, ele tinha essa raiz cultural muito forte.

Meu desejo é que vocês estejam felizes. A casa de vocês é uma maravilha…Quadros, redes preguiçosas e uma criança alegre começando tudo. Escrevam.

Foi dessa maneira que Belchior encerrou aquela missiva de 25 de novembro de 1974.


Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (1976)

Marcus Vinícius, que estava de passagem pelo Rio de Janeiro, foi convidado para a primeira audição do novo trabalho do amigo. Belchior fazia questão que produtor e arranjador de seu primeiro disco estivesse no petit comitê que daria a opinião sobre aquele trabalho, já com a mixagem pronta. Quando Marcus chegou, estavam no estúdio além de Belchior os produtores Marco Mazzola e Roberto Santana.

Aquela primeira audição deixou Marcus preocupado “não pela opção estética assumida pelo Belchior, mas um pouco pela questão do tratamento”.

O medo era que a inflexão para o lado pop, na produção daquele disco, tornasse o trabalho homogêneo, pasteurizado. Conforme escutava as canções, ele era tomado por uma inquietação, uma dúvida sobre o caminho adotado na produção do disco, em relação à originalidade daquelas composições.

— Os arranjos e a linguagem usada no disco Alucinação acho que não captaram bem o avanço estético que ele tinha, acho que o tratamento do disco não correspondia muito com a própria intenção estética de Belchior. Acho que ele merecia ter uma coisa um pouco diferente, era a única ressalva que eu fazia. Eu gostava muito das músicas, das composições e tudo, mas achava que não tinha havido alguém que tivesse trazido aquilo, até numa linguagem pop, mas um pouquinho diferenciada dos chavões da época.

Belchior chamou Marcus pra um boteco próximo ao estúdio. Molhou as palavras com um gole de cerveja e se dirigiu ao amigo com toda a sinceridade:

— Ô Marquinho, vamos conversar. Eu fiz questão de te chamar porque sei lá, a gente trabalha junto há tanto tempo e ali é um caminho diferente. Olha, é o seguinte: até então a minha carreira sempre foi muito direcionada para fazer uma música ligada a referências poéticas, mas eu sinto que eu gostaria de ter mais alguma coisa…

Outro gole de cerveja, abriu o coração e falou:

— Eu vejo que o seu caminho na música é um, o meu é outro. Eu tenho uma vontade de ter uma…sabe, eu gostaria de ser um ídolo popular…você é um cara que é maestro, arranjador, você escreve, tem uma carreira mais direcionada pra esse lado cultural. Você faz música pra cinema, pra teatro, eu não faço isso. E eu tenho vontade de sabe… de fazer a coisa… eu quero subir no palco e ser um “pop star”.

— Bel, mas claro, isso é legítimo!


Quitinete da Rua Barata Ribeiro, Rio de Janeiro (1971)

No apartamento, oitavo andar, abro a vidraça e grito
Grito quando o carro passa: teu infinito sou eu
Sou eu, sou eu, sou eu

Belchior estava no quarto ano do curso de Medicina, quando recebeu a carta de Jorge Mello, avisando que já tinha lugar pra morar no Rio de Janeiro. O compositor esperou vários dias no aeroporto a oportunidade que tinham lhe oferecido pra viajar no avião do Correio Aéreo Nacional.

A família, embora nutrisse gosto pela música, se colocou contra a escolha, que considerava uma aventura.

Justamente por ser uma aventura foi que me atraiu e nessa estrada eu estou há bastante tempo e espero poder continuar nela durante muito tempo pois eu quero cantar a vida inteira. Foi essa aventura que deu sentido à minha vida, que deu equilíbrio, que deu força e sobretudo me deu vontade de participar de uma forma mais viva e direta na poética brasileira, na arte popular do Brasil, o rádio, o jornal, a televisão e o desejo de, de alguma forma, influir no ambiente emocional e cultural do meu lugar.

Na primeira parada, em Salvador, Belchior foi obrigado pelo comandante a cortar o cabelo, do contrário não poderia seguir viagem. “Esse foi o meu bilhete, foi a minha passagem”.

Eu cheguei no Rio de Janeiro sem conhecer ninguém, sem conhecer praticamente a cidade e com uma disposição grande de conhecer o povo daquele lugar e de conhecer assim, os caminhos todos que a música popular brasileira tava percorrendo naquele momento. Naturalmente que eu era mais um imigrante, mais um nordestino na cidade grande, sujeito portanto a todos os descaminhos, a todas as dificuldades que o nordestino tem na cidade grande. A diferença era que eu estava com um projeto muito nítido na minha cabeça, no meu coração, essa coisa de fazer música, e um projeto muito nítido e muito profundo ajuda na perseverança, no esforço, no desejo de concluir e de chegar lá. Mas eu vim mesmo como um dos últimos pau de arara.

Quando venceu o IV Festival Universitário de Música Brasileira, com a música Na Hora do Almoço, um Belchior ainda sem barba nem bigode vestia uma bata e calça branca.

— Bel, pega essa calça e vê se cabe aí em você.

— Pô Jorge, cabe.

— Então vai lá e canta. Pega essa camisa minha aqui e corre pra lá.

— Ô Jorjão, beleza

— Cara, teu violão é muito ruim, usa aqui o meu.

Jorge Mello foi para o Rio de Janeiro contratado pela TV Tupi, depois da experiência no programa Porque Hoje é Sábado de Gonzaga Vasconcelos na TV Ceará. Com emprego fixo, alugou uma quitinete na esquina entre Santa Clara e Barata Ribeiro, no 8º andar, em cima do Cine Olido. Lá moravam cinco pessoas, que dividiam duas camas. Belchior e Fagner estavam entre elas.


Pessoal do Ceará (1972)

Depois de uma visita ao programa, o diretor Manoel Carlos ofereceu a Jorge uma oportunidade na TV Tupi, e ele prontamente se mudou para o Rio. Considerava que havia esgotado as possibilidades da capital cearense.

Na TV Tupi, Mello era responsável pela direção musical do programa de entrevistas do maestro Isaac Karabtchevsky, que propôs uma edição especial com aquele grupo de artistas que orbitavam em torno da quitinete no 8º andar. O nome seria “Encontro do Pessoal do Ceará”. Jorge não gostou da ideia.

— Não, não, pra nós não presta.

— Mas Jorge rapaz, é como a turma dos baianos.

— Não não não, não confunda. Nós somos uma tropa de pessoas com seus trabalhos individuais, então tira a parte do pessoal, só faz assim: os cearenses, tá ótimo.


Programa Vox Populi, Fundação Padre Anchieta, São Paulo (1983)

Julio Lerner inicia a sua fala:

— Aconteceu há uns 10, 11 anos atrás, e foi comigo. Eu era o produtor de televisão que os lançou aqui em São Paulo. Você, Ednardo, Rodger Rogério, Teti, Fagner, Jorge Mello, enfim, basicamente todo o “pessoal do Ceará”. E esse grupo era muito criativo, ele tinha muita coisa para acrescentar e para trazer em termos de música popular brasileira. Acontece Belchior, que à medida que vocês foram evoluindo no trabalho, nós percebemos claramente que a qualidade dele ia diminuindo. E, no entanto, vocês tem um potencial de criatividade muito grande. Então quero saber de você, com toda franqueza, o que está acontecendo?

 Quero começar dizendo que não concordo em absoluto com a posição demonstrada e a afirmação tão explícita de decaída da qualidade do trabalho.

Belchior respondeu de forma séria, mantendo o tom calmo de voz:

— O que acontece é que o Sul do país e especificamente talvez você num primeiro contato conosco tem uma expectativa, teve ou mantém uma expectativa muito caracterizada a respeito do nordestino. Nós chegamos do Nordeste e fomos logo identificados aqui mesmo no seu programa como um bloco de pessoas que estava trazendo uma nova música do Nordeste.

Belchior reforça sua posição de “dissidência desse sentimento e dessa consciência a respeito dos nordestinos” e ressalta que sempre pretendeu em seu trabalho revelar outro Nordeste.

— Eu não concordo de modo nenhum com a sua declaração e creio que ela é baseada em uma nostalgia de um momento nordestino que não vai vir nunca mais e que eu espero que no meu trabalho seja bastante explícito isso, esse tipo de sentimento nunca mais deverá voltar no meu trabalho porque foi a sua base e hoje é um passivo morto que deve ser simplesmente o objeto de uma grande renúncia.

Belchior vestia uma jaqueta bege e camiseta listrada, calças brancas e sandália. Depois de apresentar Monólogo das Grandezas do Brasil, faixa que integra o repertório do disco Paraíso [1982], recebeu a seguinte pergunta, por meio de um VT, enquanto colocava o violão no chão do palco.

— Eu queria saber qual é a sua relação com a crítica. O Chico Buarque, o Caetano Veloso e a Simone em algum momento de suas carreiras foram massacrados pela crítica. E deram o troco na hora. Eu queria saber se você, que é tão atacado pela crítica, também reage dessa forma ou vai reagir. Enfim, quero saber como é que você se sente em relação à crítica.

Belchior começa a responder no tom calmo característico de sua fala e explica que enxerga a crítica dentro do contexto de liberdade de expressão.

— Eu tenho sido, posso dizer, uma pessoa muito mal quista da crítica, isso não me impede em nenhum momento de fazer o meu trabalho nem de reconhecer que esses senhores tem o seu direito de dizer o que eles querem.

Belchior balança levemente a cadeira em que estava sentado de um lado pra outro e gesticula com as mãos, de forma a garantir o entendimento daquilo que estava comunicando.

Classificou a escrita sobre seu trabalho nos jornais como “profundamente superficial” e “sem o interesse mais aprofundado de conhecer os segredos de produção do artista” e disse que ele mesmo não tinha interesse em responder aos comentários sobre suas canções por não se identificar com o que era escrito sobre sua pessoa e sua música. Nesse momento o músico está enquadrado no centro da tela, em plano americano.

— Não vi ainda sinceramente e isso é até uma pena, nenhum momento da crítica com respeito a meu trabalho, em que eu pudesse ver tranquilamente uma coisa que merecesse uma resposta refletida. Quer dizer eu não reflito, eu não reflito assim sobre a minha música de um jeito que essa resposta seja importante por exemplo. Responder à altura significaria responder muito…[sorri antes de completar a frase] muito baixo.

Nesse momento a câmera foca o apresentador de costas, no estúdio, à sua frente uma série de monitores de televisão, onde Belchior aparece focado de diferentes ângulos.

— A crítica realmente o tem apresentado agressivo, etc. E você demonstrou aqui uma grande docilidade. Se bem entendi, você acha que a crítica deformou a sua obra, e a sua pessoa.

— Eu acho que simplesmente ela não compreendeu as coisas que estavam sendo ditas ou cantadas.

No momento em que Belchior inicia sua resposta, a câmera se aproxima em zoom dos monitores até enquadrar aquele que mostra a imagem da câmera 3, em que ele aparece em um plano mais fechado. Ditas na mesma voz calma e pausada do restante da entrevista, as palavras vão se tornando mais afiadas, como navalhas.

— Esse não compreender é uma coisa importante também, quer dizer, ela não compreende e manifesta isso. Então isso evidencia uma falta de recursos técnicos de tratar daquilo que está sendo matéria de uma reportagem. Em nenhum momento, por exemplo, eu me sinto lesado ou atingido pessoalmente ou me sinto… ou tenho raiva do que se escreve sobre mim, eu simplesmente acho que as pessoas não tem razão de dizer aquilo que estão dizendo porque a maior parte não tem competência para tratar do que está tratando. E quem não tem competência não se estabelece, eu acho que isso é fundamental.


Lançamento de “Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo”, Rádio Nacional, Rio de Janeiro (1979)

Darcy: Belchior, e a crítica continua a te perturbar né?

Belchior: Muito pelo contrário, a crítica não me perturba não. Eu tenho desenvolvido meu trabalho assim, super bombardeado pela crítica. A crítica tem um ser assim de secundidade né, ela é secundária ao processo de criar. E assim, modestamente, humildemente eu prefiro, com toda a sinceridade, os efeitos de uma música medíocre do que uma crítica de primeira. Entende?

Eu não observo muito o que acontece ao nível da crítica, até mesmo porque eu prefiro outro tipo de noticiário. Por exemplo, eu prefiro o noticiário político ao de música popular, porque acho mais relacionado com fatos, com eventos, com circunstâncias históricas. E a crítica de música popular eu acho mais relacionada com impressões, com boatos, com coisas que dizem respeito assim a uma coisa muito particular na vida dos artistas, de relacionamento dos artistas com pessoas, então não tenho muita preocupação com isso não.

Darcy: O Hermeto, no especial dele, ele falou que ele fez um show aqui no Rio e a crítica pixou, falou muito mal. E ele discordou de muita coisa que foi dita e tal, e ele falou que a partir de então, quando ele fizesse um show, ele ia chamar o crítico pra acompanhar todo o processo de elaboração do espetáculo, a época de ensaio, como o pessoal do esporte faz com os jogadores. Vão lá na concentração, bate papo com os jogadores, ai ele acha que seria uma forma de o crítico entender depois o que ele tá apresentando no palco.

Belchior: Eu não tenho muito estímulo pra que o crítico entenda. Quer dizer, o meu propósito inicial do meu trabalho é fazer a música, é fazer a letra, é fazer o disco, é tentar uma aproximação com os canais veiculadores da música. É outro senso.

Eu não tenho preocupação com o ato de comentar a música, a minha preocupação com a música é uma preocupação mais criativa. É de fazer a música, é de fazer a letra, é de fazer o disco. E depois, o que acontece depois, o próprio sucesso do trabalho, o comentário eu tenho pouco interesse porque já estou pensando no outro disco, já estou pensando na outra canção, já estou pensando no outro show. Mas eu estimulo muito sabe a crítica, eu acho que é uma atividade interessante, as pessoas que quiserem se dedicar à crítica eu dou a maior força. Eu particularmente escolho uma atividade mais criativa sabe? Por um problema de talento e por um problema de escolha também.


Sobral, Ceará, algum momento dos anos 1950

O pai de Otávio Belchior Fernandes era dono de uma bodega, que vendia tecidos na cidade: cáqui Floriano, mescla, verde oliva, umbrim, murim, pano de saco, açúcar, farinha, fumo, essa coisa toda.

O tecido era um produto importantíssimo na região naquele período. Mas a bodega ia além disso: era um ponto de encontro onde as pessoas, além de comprarem os produtos da sua necessidade, também se informavam sobre o mundo para além dos vizinhos próximos. Deixavam recados, ouviam notícias no alto-falante e também músicas.

Para além disso era o encontro mesmo entre pessoas vindas de diferentes regiões, que paravam ali e falavam sobre a vida. Ciganos e cantadores que na bagagem traziam histórias, versos, repentes. São muitas as maneiras de falar sobre a vida, melhor quando tem rima.

Motes e glosas, décimas perfeitas, canto de pé quebrado, canto de quatro. Inclusive aqueles cantados por um repentista negro, tal de Zé Limeira, que não se sabe quando nasceu, diziam que não era morredor, mas é fato que morreu em Teixeira, no sítio Tauá (CE) em 1955, quando o menino Antonio Carlos Belchior completaria 9 anos de idade. Muitos desses versos ficaram guardados ali naquela caixola.

Zé Limeira pode ter levado pessoalmente seus versos para aquela bodega e os apresentado a quem quisesse ouvir. Seria impreciso dizer se as andanças do cantador o levaram para Sobral naquele momento. Mas os versos têm vida própria e podem ter chegado por aquelas bandas na voz de outra pessoa. Ou mesmo pelas ondas sonoras dos serviços de alto-falante, que também apresentavam versos dos repentistas.

Eu já cantei no Recife,
Dentro do Pronto Socorro,
Ganhei duzentos mil réis,
Comprei duzentos cachorro,
Morri no ano passado,
Mais esse ano eu não morro.

Não foram só os versos que ouvia que Belchior carregou daqueles dias em Sobral. Levou também o gosto por contar boas histórias. Para que ficassem boas, muitas vezes era preciso inventar um pouco, aumentar, criar. Para convencer o interlocutor incauto em uma mesa de bar, pedia com um olhar a cumplicidade de algum amigo.

Em muitos momentos, Belchior fabulou também sobre a própria vida, pra dar mais cor e narrativa, nas entrevistas para os jornais e televisões do Sudeste. Foi elaborando seu personagem, primeiro muito ligado à cultura sertaneja, mas que incorporou as modernidades da música, da poesia, do figurino.

Sempre carregou os trejeitos sertanejos daqueles anos em Sobral. Guardava gestos incontroláveis que, mesmo se quisesse, não conseguiria conter. Em um lapso de momento, durante uma conversa intelectualmente avançada sobre temas universais, revelava, de forma involuntária, gestos típicos, que só quem passou a infância em Sobral poderia apresentar, disse um de seus grandes amigos.

A vida de Belchior continua a ser contada, nas lembranças das pessoas que conviveram com ele. Transformados em memória, esses momentos ganham vida nas falas carregadas de saudades e humor, histórias curiosas e engraçadas sobre esse personagem da música brasileira, que cresce a cada dia no imaginário brasileiro.

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