Perfil: Rodger Rogério

27/11/2024

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Yuri Euzébio – Jornalista e historiador: gosta de literatura, quadrinhos, cinema, música, cultura popular e de escrever sobre as coisas. Vencedor do 2º Prêmio de Jornalismo Cultural, do 1º Prêmio AMPE de Jornalismo em Saúde e do 2º Prêmio InfoVacina Trainee. Já contribuiu para veículos como Nexo Jornal, Marco Zero Conteúdo e Revista Continente.

Ilustrações de Aline Bispo – Multiartista visual, ilustradora, curadora do Acervo Ibirapitanga e colunista do Nós, mulheres da periferia. Em suas produções, investiga temáticas que cruzam a miscigenação brasileira, gênero, sincretismos religiosos e étnicos. Tem obras expostas e/ou presentes em importantes acervos de arte brasileira.

No filme Bacurau (2019), ele aparece pela primeira vez, discretamente, sentado em um banco no enterro de dona Carmelita (interpretada por Lia de Itamaracá), com um semblante triste, desolado, cabeça baixa, já vestido com seus indefectíveis trajes de trovador do sertão. Ali no cortejo, ele entoa as suas primeiras músicas.

Seu nome é Carranca, designação dada no Nordeste a uma escultura com forma humana ou animal, produzida em madeira e utilizada a princípio na proa das embarcações que navegam pelo Rio São Francisco e, mais tarde, nas casas das pessoas para proteção aos maus espíritos. Ele é o violeiro da cidade fictícia.

Presença musical incidental em momentos-chave do filme, o personagem é constantemente relembrado pela cena emblemática em que encontra uma dupla de sudestinos em frente à mercearia da cidade. A passagem viralizou nas redes, muito por conta dos versos cantados com bom humor:

“Esse povo do Sudeste não dorme nem saí no sol
Aprenderam a pescar peixe sem precisar de anzol
Se acha melhor que os outros, mas ainda não entendeu
Que São Paulo é um paiol.”

Carranca é interpretado por Rodger Rogério e meio que se confunde com ele. Mestre da geração que se tornaria conhecida por “Pessoal do Ceará” ao abrir espaços na indústria fonográfica nacional para os nordestinos no início dos anos 70, Rodger, cantor, compositor, violonista, ator e físico cearense viu sua carreira atingir um novo público a partir de sua participação no filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Ilustração: Aline Bispo

De jeito manso, tranquilo e atencioso, Rodger completou 80 anos em 2024 cercado por celebrações a uma das mais importantes e longevas vozes do Ceará. O nome diferentão, meio rockstar, meio estrela do brega, parece cair como uma luva. Afinal, Rodger Rogério é mesmo uma pessoa singular. E não é só pela pompa excêntrica da letra D no meio do nome ou pelo composto de erres digno do alter ego de algum super-herói, mas por se tratar de uma estrela multifacetada das artes do Nordeste que nos privilegia há tantos anos com letras e canções que mais parecem declarações de amor: ao Ceará, à região, à arte e à cultura.

Rodger se recorda que sua história com a música começou ainda muito novo. “Eu me lembro que ainda nos meus primeiros anos de escola eu já gostava de música. Uma coisa que eu me lembro bem foi de quando eu tava me alfabetizando, meu grande objetivo de ir para as aulas era aprender as letras das músicas”, conta. O músico explica que naquela época vendiam folhetos com as letras das músicas que tocavam nas rádios e ele sempre se interessou em ler essas composições, mas ainda não conseguia. Sua grande meta era lograr ler na velocidade que o cantor entoava as canções.

“Eu criança, na década de 40 ainda, era o rádio ligado o dia inteiro na minha casa. Naquela época não tinha televisão, e eram duas rádios em Fortaleza: Rádio Clube e Rádio Iracema. Ficávamos de uma para outra e tocava música do mundo todo”, relembra garantindo que foi assim que iniciou sua formação musical. Rodger cresceu mergulhado nessa sonoridade global, e naturalmente foi se aproximando do cancioneiro nordestino. “De início me apaixonei por Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Ary Lobo e pelo samba”, rememorou. Daí para surgir a vontade de tocar algum instrumento foi um pulo.

Ainda pequeno fez aulas de piano por pouco tempo. Na sequência veio o encantamento pelo instrumento que marcou sua trajetória: o violão. “Quando eu ouvi bossa nova, com o João Gilberto cantando e com aquele jeito de tocar que era diferente de tudo o que eu tinha ouvido, deu vontade de fazer aquilo”. Daí pra frente ele não parou mais. Aos 12 anos, conseguiu comprar um violão e o método de tocar para canhotos, uma revista que existe até hoje e que ensina os jovens a tocar. Foi assim que aquele baiano de Juazeiro mudou a vida do cearense.

O físico encontra o músico

Apesar de ter despertado logo cedo uma paixão pela música, demorou um certo tempo para a carreira de Rodger se profissionalizar. Ele brinca que até hoje isso não aconteceu, e a responsabilidade por isso pode se dever, em parte, a outra paixão do multiartista: a Física.

É isso mesmo. Graduado em Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC), o violeiro continuou os estudos na Universidade de São Paulo (USP) e fez mestrado na Universidade de Brasília (UnB) em meados da década de 1970. Durante sua carreira acadêmica, se dedicou a estudar mecânica quântica. “É uma coisa meio enigmática, para todo o mundo, mesmo para aqueles que estão na vanguarda do saber. E é algo que tá no meu pensamento constantemente, mas estou conformado em saber que não vou entender nada”, brinca.

Na época em que foi professor na Universidade Federal do Ceará, Rodger ajudou na criação da Rádio Universitária da instituição. Esse é um dos exemplos de como em sua vida a música e a física se encontram em vários momentos, ainda que nem sempre de forma tão direta. Para exemplificar de que modo isso acontecia em suas composições, mas sem parecer aula da disciplina (“Senão vira aula de Física, né? E não é todo mundo que vai gostar”), ele cita uma de suas canções sobre o tempo:

“O tempo que disse
Que o tempo não existe”

Outra canção sua que não foi lançada diz que: “Tudo o que você vê tá no passado / Até o seu amor do seu lado / No passado está / como ele também lhe vê no passado”. Rodger explica que esse assunto do tempo é física clássica em sua essência. As intersecções entre física e música ficam bastante claras no seu álbum Instante Zero ou o Primeiro Sinal Luminoso (2023) em conjunto com o jovem músico cearense Vitoriano.

No álbum, Vitoriano transforma em música notas sobre física e filosofia que Rodger guardou por mais de quatro décadas, cuidadosamente datilografadas e encadernadas, do período em que foi professor. A concepção do disco é assinada pela dupla e os arranjos, assim como a produção, são de Vitoriano. “Nesse disco lanço mão de alguma coisa do pensamento físico. Meio que transformo em música minhas vivências no departamento de Física”, explica Rodger. O cantor recorda que desde jovem já curtia a disciplina, mas demorou para decidir seguir carreira na área.

Capa do álbum Instante Zero ou o Primeiro Sinal Luminoso de Rodger Rogério e Vitoriano

Seu pai havia sido piloto de avião e, por algum tempo, Rodger conta que pensou em seguir o mesmo caminho. À Revista Entrevista em 2009, o artista explicou: “Meu pai era aviador. O sonho era esse, que meu pai era aviador e ele morreu de desastre. Então, pra minha mãe, ela não aceitava de forma alguma que eu fosse ser aviador. Ela fez de tudo: acendeu vela, foi pra macumba (rindo), fez tudo o que tava ao alcance dela fazer para eu não entrar na Aeronáutica, não tirar minha via, essas coisas…”. Além disso, a mãe foi de grande influência por sua trajetória como professora para o menino que gostava muito de estudar.

“Eu pensei: gosto de fazer isso [ajudar os colegas mais apertados na escola], o pessoal diz que professor não pára de estudar nunca, então vou por aí”, resumiu o cantor. “E a música sempre esteve comigo, muito presente sempre, mas eu não via a música como uma coisa profissional, sabe?”, completou.

No último ano de graduação, um convênio da Universidade Federal do Ceará possibilitou que Rodger estudasse na Universidade de São Paulo e isso abriu as portas para que o músico ocupasse uma vaga no corpo docente da instituição durante um tempo a partir do ano de 1970. “No ano seguinte à minha formação, voltei pro Ceará e vim ensinar em Fortaleza. Um professor meu de São Paulo foi coordenar o Departamento de Física na UNB, e convidou a mim e a alguns outros para fazer o mestrado e ensinar lá. Aí eu fui”, lembra. Durante o fim do mestrado, um professor da sua banca de avaliação o convidou para trabalhar com ele em São Paulo.

Foi assim que o cearense chegou a São Paulo e encontrou seus conterrâneos: Belchior, Fagner, Fausto Nilo, Wilson Cirino e outros. Rodger trabalhou por dois anos no departamento de Física da Universidade de São Paulo. O músico recorda que os anos que passou na USP foram ao mesmo tempo tumultuados e felizes, mas garante que foi um período importante de aprendizado para sua carreira na Física, apesar do preconceito que sofreu na época. “Foram bons tempos. A gente sofria um pouco por ser nordestino na época, né? Tinha um preconceito e eu era visto como um cara que foi para São Paulo tirar o lugar dos paulistas, tinha essa coisa”, disse.

Programa Proposta e o Pessoal do Ceará

Na capital paulistana ele chegou a trabalhar em um programa de televisão, na TV Cultura. Junto com Ednardo, Belchior e Téti, fez parte do Proposta, programa de entrevistas da emissora. Os quatro músicos cearenses eram provocados durante as gravações a compor e apresentar canções que estivessem ligadas ao assunto abordado com o entrevistado. “A gente se encontrava com o convidado na casa dele, conversava com ele. No mínimo eram quatro horas e meia, cinco horas com ele. Quando saíamos da conversa, sabíamos da vida toda do sujeito”, lembra. “Daí a dois dias o produtor mandava um roteiro pra gente, dizendo onde queria as músicas”. Rodger diz que para cada convidado era pelo menos uma música diferente.

“Foi a partir desse programa que a gente conheceu um produtor de discos que se interessou pela música da gente, e que ajudou a gente a gravar”, conta. Um dos entrevistados do programa foi o produtor musical Walter Silva, que quis produzir um disco com eles. Assim nasceu o seminal LP Pessoal do Ceará – Meu Corpo Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem (1973). Na época, Belchior não entrou no disco porque já tinha projeto solo encaminhado. Fagner contribuiu com faixa Cavalo Ferro em que assina a composição juntamente com o Ricardo Bezerra.

A cantora Téti lembra com detalhes dessa passagem. “Ele [Walter Silva] era um disc jockey famosíssimo de São Paulo e ficou encantado com a gente, queria fazer um disco com todo o mundo, mas só eu, o Rodger e o Ednardo não tínhamos contrato com outras gravadoras. E por que o nome Pessoal do Ceará? Porque aqui nós temos esse costume de falar isso, tudo é o pessoal”, lembrou.

“Durante minhas pesquisas sobre o Zé Ramalho e o Belchior, eu entendi que o Pessoal do Ceará na verdade é uma reunião, um encontro, entre vários desses no bar do Anísio para conviverem mesmo. Conversando, vivendo, tocando e participando de programas de televisão, enfim, vivendo a cena musical do Ceará e fazendo as coisas juntos”, detalha a jornalista e pesquisadora musical Chris Fuscaldo.

Segundo Chris, apesar dessa vontade por questões de força maior, alguns desses músicos não conseguiram concretizar o desejo de se manterem como um grupo. “Eles acabaram se separando. O Fagner foi o primeiro que conseguiu gravar. O Belchior logo depois do 4º Festival Universitário (1971) também já gravou”, disse. Ednardo então encabeçou o projeto de um disco em conjunto com os outros artistas que ainda não tinha gravado. “E assim surgiu o disco Meu Corpo, Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem (1973) que é um disco com o Rodger e a Téti, claro que tem a influência do Augusto Pontes, dos mentores envolvidos”, continuou a jornalista.

Capa do álbum Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem
Capa do álbum Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem

De acordo com o pesquisador Pedro Rogério, “a ideia de criar o Pessoal do Ceará partiu de Augusto Pontes, tendo como base os movimentos Tropicália e Clube da Esquina. Desta forma, o Pessoal do Ceará encontra-se inserido no contexto sociocultural dos movimentos musicais daquela época.” Chris complementa: “O que eu acho bacana desse projeto, e lamento que não tenha tido a participação de todos eles, é que o Pessoal do Ceará foi uma tentativa de realizar um movimento como foi a Bossa Nova, a Jovem Guarda, a Tropicália. Principalmente a Tropicália, porque também foi pensado pelo Caetano e Gil, que convidaram muitas pessoas para reuniões e quem topou está na capa do Tropicália ou Panis Et Circenses como Tom Zé, Capinan, Nara Leão, Mutantes”.

“Aquele pessoal é quem ficou para o projeto tropicalista e gravou o disco, músicas e fizeram shows com a estética. Eu acho que o Ednardo queria fazer algo parecido com isso, marcar um novo movimento com os músicos do Ceará. Aí eu lamento um pouco que o Belchior, o Fagner, a Amelinha, enfim, não tenham conseguido participar do disco”, afirma a pesquisadora. Chris explica que, curiosamente, depois que o tempo passou, parece que hoje quando se fala do Pessoal do Ceará todo mundo entra “no mesmo pacote”, inclusive aqueles que não estavam no disco. São, afinal, considerados parte do grupo, pois começaram juntos e todos gravaram algo na mesma época.

Para o jornalista, músico e produtor cultural cearense Dalwton Moura a música de Rodger Rogério é, simultaneamente, ancestral e ultramoderna. “É algo que remete a Fortaleza dos anos 60 que era outra cidade, outro mundo. Não havia os arranha-céus de 50 andares na beira mar e ao mesmo tempo se comunica diretamente com os jovens artistas. É múltipla e atemporal, extremamente ousada na parte lírica”, explicou.

“Suas músicas sempre foram muito modernas, muito cheias de significados ainda a decifrar. E ele continua compondo e produzindo bastante. Tem inéditas, inclusive com Belchior aguardando gravação e ainda tem o Rodger intérprete com uma voz singular, inconfundível”, destaca Dalwton.

Naqueles anos em que morou em São Paulo, Rodger era professor e músico atuante na noite paulistana. Em 1975, conseguiu gravar o disco Chão Sagrado, em parceria com a cantora Téti, sua esposa na época. O disco foi lançado tendo como faixa-título uma parceria de Rodger com Belchior e foi produzido por Walter Silva, mesmo produtor de Pavão Myzterioso de Ednardo. Na época, Rodger morava em um apartamento na frente da casa onde Belchior morava. “Belchior era um poeta de mão cheia, e eu tive a sorte de fazer algumas músicas com ele. Tínhamos uma amizade boa, uma parceria mesmo”.

Retorno ao Ceará na ditadura

De volta ao Ceará, Rodger voltou a fazer parte do departamento de Física da UFC onde se aposentou há uns 15 anos. “A física perdura ainda hoje, vivo atrás de artigos e pesquisas pra ler”, afirmou. “O som é uma onda, né? Eu estudava onda e tal, o som é uma onda que progride no ambiente. E eu estudei tudo isso”, diz, comparando suas paixões.

A entrada do cantor no ambiente acadêmico foi tumultuada. Em 1973, Rodger passou em um concurso público para ser professor da UFC, mas foi impedido de tomar posse do cargo pelo governo militar. “Cara, eles me atrapalharam a vida o quanto puderam. A ditadura me observava o tempo todo, teve concurso que eu não conseguia me inscrever. Nesse eu me inscrevi, tirei o segundo lugar e sumiram com o processo”, relembra sobre o período da Ditadura Militar.

Rodger chegou a ser preso na época de estudante ainda nos anos 1960, passou o dia na delegacia de polícia e à tarde o levaram para o quartel do exército onde ficou dez dias incomunicável em uma cela solitária. “Eu não sabia de nada, o que tinha acontecido, por que eu estava preso. Só descobri alguma coisa quando fui interrogado”, relembra.

Na época, o regime militar o associou a um grupo militante de estudantes secundaristas. “Um dia ameaçaram colocar um fio elétrico na cela e jogar água”, conta. O dano que o cantor sofreu à época foi reconhecido pelo Governo do Ceará em 2022, quando a Comissão Especial de Anistia Wanda Sidou, vinculada à Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), concedeu parecer favorável a um pedido de desculpas público e à indenização em R$30 mil pelos prejuízos sofridos.

Ilustração: Aline Bispo

Estilo musical do trovador do Nordeste

Rodger reflete quando perguntado sobre as definições da sua música. Pára, respira, pensa e responde com muita gentileza e didática como parece ser de seu feitio. “No começo eu queria tocar bossa nova. Depois que eu passei a compor, com um olhar crítico sobre o que eu vinha fazendo, foi que eu passei a experimentar mais com os gêneros”, explica.

Tango, fado, toada e rock são alguns dos ritmos que ele enumera para explicar o tipo de música que produz. Claro que tudo com uma generosa pitada de elementos regionais. “Sempre procurando um leito para que o meu rio pudesse correr com mais facilidade”, filosofa.

“É uma procura minha. Um jeito que eu identifique como uma coisa minha é até difícil. Eu sigo muitos caminhos por isso, acho”, diz o músico. A música de Rodger é simples e sofisticada ao mesmo tempo, mistura de trovador nordestino com psicodelia, rock e jazz. Ele consegue unir diversos elementos em sua amálgama de ritmos, sempre apontando pro futuro mesmo nas produções do começo de carreira, na década de 70. Sua parceria com Téti foi o pontapé inicial para a invasão nordestina na música popular brasileira dos anos 70.


O nome diferentão, meio rockstar, meio estrela do brega, parece cair como uma luva. Afinal, Rodger Rogério é mesmo uma pessoa singular.  


Foi ainda na adolescência que a colaboração com Téti começou. “Quando eu vim de Quixadá pra Fortaleza, o Rodger já morava aqui e meu irmão tocava violão muito bem e sempre ficávamos à noite tocando violão na varanda, na calçada. E o Rodger foi se chegando. Começamos a namorar com 16 anos”, recorda Téti.

Ela lembra que a partir daí foram formando uma turma que se unia todas as noites para tocar juntos. “De repente, eu e o Rodger começamos a participar de programas de televisão. Meu irmão já tinha caído fora nessa época. Tocávamos juntos, às vezes ele me acompanhava, outras eu fazia segunda voz”, disse.

Rodger e Téti formaram uma dupla ideal muito pelo perfil dos dois, da personalidade e das vozes que se complementavam. “Na verdade, o Rodger na época mais compunha do que cantava. Eu era a intérprete das músicas dele. Ele veio desenvolver o canto, que ele adora, já bem mais tarde”, explica Téti. “O Rodger foi o parceiro ideal em vários aspectos da minha vida e somos muito amigos até hoje, nos falamos sempre”, completou a cantora.

Atualmente, depois de tantas noites insones com shows e filhos para equilibrar, a cantora evita sair à noite, embora se mantenha ativa no canto. “Eu não estou muito atuante, confesso, porque de tanto frequentar a noite e acordar cedinho para cuidar dos filhos, cuidar de casa, eu não sou muito de sair à noite mais, não. Mas vez por outra faço show e faço com prazer. Hoje em dia mais curtindo do que profissionalmente”, afirmou Téti. “Sei que sou uma profissional, isso não se esquece, sou uma cantora, adoro cantar. A música representou muito na minha vida, porque foi atrás dela que eu conheci várias pessoas. Através da música que eu desenvolvi o hábito de cantar e foi muito enriquecedor pra mim. E ela tá aqui comigo até hoje, sempre que eu posso eu faço uso dela, sem expectativas, bem tranquilamente”.

Rodger teve três filhos com Téti: Pedro, Daniela e Flávia. Atualmente é casado com Vânia Porto, com quem teve mais três filhos: Rami , Tainá e Mayra. São seis netos e um casal de bisnetos. Muitos deles são músicos ou mantêm forte relação com a música.

Um tímido no cinema

Questionado sobre quando nasceu a vontade de ser ator, Rodger brinca. “Acho que não nasceu nunca, porque a minha timidez não deixa”, aos risos. É mesmo surpreendente que uma pessoa tímida feito Rodger tenha se interessado pela atuação. Tudo nasceu a partir da escrita, quando já tinha seus 45 anos e lecionava na Universidade Federal do Ceará.

“Eu fui estudar teatro no momento em que eu estava escrevendo um programa de rádio sobre física. Era diário e tinha de 3 a 5 minutos sobre física, eu pegava um fenômeno que tivesse a ver com a vida das pessoas e escrevia sobre aquilo”, conta. No início da década de 1980, ele assumiu a direção da recém-criada Rádio Universitária FM (107,9). Ali, idealizou e apresentou o “Ciência ao alcance de todos”, que depois seria “Anotações do Professor”.

“Eu adorava escrever, aí queria começar a escrever sobre outras coisas”, completa. Foi então que ele viu o anúncio da seleção de artes dramáticas da universidade cearense. “Pensei em me inscrever para aprender a escrever para teatro, queria entender a linguagem, passei e fiz o curso. Durante o curso, que durou 2 anos, todos os dias tínhamos que ir pro palco. Todo santo dia a gente trabalhava no palco e eu fiquei alucinado naquilo”, garante. “Isso pra mim foi uma maravilha. Pra mim era tudo uma grande novidade em representar, a história do subtexto, do olhar, da concentração”.


Eu sou assim calmo, gosto de conversar sem pressa e a inquietação eu não sei explicar, às vezes eu penso que é a preguiça de fazer outra coisa.”


Rodger conta que foi no teatro que descobriu que tinha voz. “Porque até então eu cantava com a voz bem grave, me escondendo mesmo. Descobri que tinha potência de voz para colocar na última cadeira no teatro”, conta. Desde então não quis mais sair do palco. “O teatro salvou a minha vida. A minha timidez era doentia, não conseguia falar com as pessoas e o teatro me deu ferramentas para superar esse problema”, conta. Rodger diz que até hoje mantém certa timidez, mas que o teatro ajudou muito nesse processo.

O jornalista cearense Dalwton Moura explica que a timidez chegou a atrapalhar Rodger na carreira musical, inclusive. “Rodger sofreu com essa timidez, que o impediu inclusive de ter músicas gravadas pela Elis Regina, pelo Roberto Carlos. Esses intérpretes queriam gravar músicas dele e a timidez acabou atrapalhando isso. Mas, ele foi buscar isso e se tornou um ator premiado em inúmeros festivais, com dezenas de curtas-metragens, até ir parar na capa do Cahiers du Cinema, famosa revista francesa de cinema como o Carranca de Bacurau”.

Outra recordação forte na memória de Rodger foi quando um professor de teatro lhe falou: “Você não precisa sentir, quem tem que sentir é o público”. Isso lhe marcou. “Porém, eu, como ator, uso muito o meu sentimento pro personagem”, disse. Entre os autores de teatro que mais gosta, ele destaca os brasileiros: Osman Lins, Ariano Suassuna, Mário de Andrade.

O convite para a estreia no cinema veio ainda durante o curso universitário. “Quando eu estava ensaiando a peça de encerramento do curso, chegou uma turma de cineastas que estavam voltando de um período de estudos em Cuba e entre eles estavam o Karim Aïnouz que me convidou pra fazer o trabalho de conclusão de curso dele”, explicou.

Esse TCC de Karim Aïnouz foi o curta O Preso, ficção sobre um lavrador no Nordeste, gravado em 1992, que foi a estreia de Rodger no audiovisual, ainda sem nenhuma fala. Daí em diante, os convites não pararam de chegar. “Aí passado pouco tempo, a menina que fez a fotografia do filme do Karim ia começar a fazer o filme dela, um média-metragem, me chamou também e aí não parou mais”.

O chapéu tão característico que o acompanha sempre surgiu do teatro, veio antes de uma peça que ele tava fazendo e ficou como marca registrada até hoje. Em Bacurau, ele usa o próprio chapéu a serviço de Carranca.

Rodger já fez inúmeros filmes, muitos curtas e longas, segundo suas contas, algo em torno de 35 a 40 projetos. “É algo que eu amo fazer. Quer me ver feliz? Me chame para um set de filmagem”, confessa.

O violeiro Carranca de Bacurau

Para fazer Carranca, Rodger inicialmente passou por um teste. “Eu sempre faço testes. Eles me convidaram para um teste, eu topei. Aí passou o tempo e eu nem lembrava mais quando alguém da produção falou comigo e passou o endereço do estúdio pra eu fazer outro teste”, conta. “Me telefonaram e me pediram pra levar o violão e eu só pensando assim: é pra ser ator ou instrumentista? Mas levei e quando cheguei lá tinha um texto pra eu cantar, e eu notei que era um negócio assim puxado pro nordestino, fiz e eles gostaram”, detalha Rodger.

Kleber Mendonça Filho faz questão de destacar que o personagem virou outra coisa a partir da atuação de Rodger. “Quando a gente estava procurando alguém para interpretar Carranca, inicialmente você acha que vai encontrar um ator, né? Porque é o que deve acontecer e ficamos felizes quando encontramos um bom ator”, disse o cineasta. “Mas, quando Rodger se transformou em Carranca a gente entendeu que não era só um ator, era um artista completo que trazia uma visão de mundo, um certo tipo de humor e uma interpretação muito além do que eu e Juliano tínhamos imaginado. Então a sequência toda com Carranca é uma das mais lembradas do filme até hoje”, completou Kleber.

Parceiro de Kleber na direção de Bacurau, Juliano Dornelles acompanha Kleber nesse pensamento e conta mais detalhes sobre o processo de escolha de Rodger Rogério para o papel de Carranca. “A gente precisava de alguém que fosse músico e tivesse um perfil próximo do que gostaríamos, e aí Rodger deu uma cara própria e uma personalidade incrível ao Carranca”.

“Trabalhar com ele foi ótimo, tem um astral ótimo. Ele tá sempre de muito bom humor, tem muito tesão pelo que faz e foi muito rica a experiência”, conta Juliano. O diretor recorda que junto com Kleber Mendonça escreveu a letra de música – intitulada “As Boas-Vindas de Carranca”, aquela já citada cena com os forasteiros sudestinos – e ele musicou.

“Não poderia ser outra pessoa, porque ele sai um pouco do clichê do artista popular, vamos dizer assim. Eu acho que ele tem uma pegada de rockeiro dos anos 70 só que nordestino, não sei, tem uma mistura boa de psicodelia, nordeste e tal”, destaca Dornelles. Segundo o diretor, Rodger incorporou a personalidade dele ao personagem, e esse foi o grande diferencial. “Nós gostamos muito daquela cena, ela arranca muitas risadas do público, principalmente os nordestinos que entendem um pouco melhor. Para o público do Sul/Sudeste tem uma alfinetada ali, mas quem tem bom humor se diverte igual”.

Para o músico, o filme foi uma espécie de carta de apresentação para um novo público. “O filme me deu mais visibilidade, sem dúvida nenhuma. A última vez que eu passei em um aeroporto em Brasília um rapaz me parou, olhou pra minha cara e disse: Bacurau!”, lembra aos risos. Além de Bacurau, Rodger participou de outros filmes, como Corisco & Dadá (1996), Águas de Romanza (2002), Capistrano no Quilo (2006), Homens com Cheiro de Flor (2011), Área Q (2011), e o multipremiado Pacarrete (2019).

Inquietação e serenidade aos 80 anos

Rodger é um sujeito sereno, calmo e atencioso. Em dois minutos de conversa você já percebe isso, ele não demonstra ter pressa para nada. Gosta de pensar bem sobre o que irá falar em cada resposta, sempre com a preocupação de ser bem entendido.

Ao mesmo tempo, é uma das personalidades mais inquietas da nossa música. Seguiu carreira acadêmica, na atuação e na música, sem nunca abrir mão de uma área em detrimento da outra. “Eu acho que é a curiosidade que me move. Não é que eu tenha resolvido ser assim. Eu sou assim calmo, gosto de conversar sem pressa e a inquietação eu não sei explicar, às vezes eu penso que é a preguiça de fazer outra coisa”, refletiu modestamente.


Rapaz, eu não me sinto com 80 anos. Essas homenagens tão me convencendo que eu tenho 80 anos, porque eu realmente não me sinto com essa idade


Aos 80 anos e cada vez mais ativo, o cantor mantém planos e projetos para o futuro. “Meus planos são de escrever algumas músicas para pequenos grupos, tipo assim, quartetos, sextetos, eu tenho essa vontade. Também quero fazer um espetáculo com música, dança e poesia”, revela.

A idade foi celebrada com uma série de comemorações no Ceará, no dia 28 de janeiro de 2024, dia de seu aniversário. O festejo foi com boa parte da família no palco: o irmão Rogério Franco, os filhos Pedro Rogério, Daniela Rogério, Flávia Rogério, Rami Rogério, Mayra Rogério e Tainá Rogério, e as netas Julia Fiore e Lucy Rogério. “Rapaz, eu não me sinto com 80 anos. Essas homenagens tão me convencendo que eu tenho 80 anos, porque eu realmente não me sinto com essa idade”, confessa.

“Eu fico achando que eu não mereço não, o meu sentimento é de que estão exagerando realmente. Fui homenageado na Assembleia, na Câmara Municipal do Ceará, pelo pessoal da área jurídica, foram muitas celebrações”, disse com sinceridade e modéstia características.

Quando conversamos, o octogenário se preparava para lançar um novo filme: Oeste outra vez (2024), dirigido por Érico Rossi. “É um caubói rapadura como chama, né? Eu faço um pistoleiro que nunca matou ninguém. Eu adorei fazer esse filme”, revelou mais um projeto onde parece emprestar um pouco de si para os personagens. Na 52ª edição do Festival de Cinema de Gramado, um dos principais eventos de cinema do Brasil, Rodger conquistou o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante pelo filme. Foi a primeira vez que o artista viveu um dos protagonistas de um longa-metragem e já ganhou o Troféu Kikito pela obra.

Perguntado sobre o que mais o encanta na música, ele não titubeia. “Eu gosto de cantar. Pra ser bem sincero, todas as etapas eu adoro, compor, escolhendo as harmonias, os acordes, eu adoro tudo. Mas, o que me deixa mais feliz atualmente é cantar”. Ao final de uma das conversas que tive com Rodger, pergunto o que a música representou em sua vida, ele responde com a paciência e assertividade de sempre. “Eu não digo que é tudo, mas é quase tudo. Porque a música tá em tudo, eu estudava física ouvindo música. Ela tá presente em todo o tempo na minha vida”, concluiu com a mesma serenidade, calma e gentileza com que leva a vida.

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