Há quem sempre foi ouvinte fiel de podcasts desde o início dos anos 2000, mas recentemente eles voltaram a figurar em destaque. O que aconteceu?
Leonardo Lichote é jornalista. Como repórter e crítico musical do jornal O Globo desde 2001, entrevistou e assinou reportagens com grandes nomes da música popular brasileira, como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Djavan, João Bosco e Dona Ivone Lara. Assina o texto final do livro “Minha fama de mau” (Objetiva), com memórias de Erasmo Carlos. É autor dos textos críticos que acompanham a caixa de Chico Buarque “De todas as maneiras” (Universal), que contém os 22 primeiros discos do artista. Trabalha numa biografia de Elke Maravilha e integra o júri do Prêmio da Música Brasileira e do Prêmio Multishow.
ilustrações por Alexandre Calderero — “de boa”.
“Antes de existir computador existia tevê
Antes de existir tevê existia luz elétrica
Antes de existir luz elétrica existia bicicleta
Antes de existir bicicleta existia enciclopédia
Antes de existir enciclopédia existia alfabeto
Antes de existir alfabeto existia a voz”
Em “O silêncio”, Arnaldo Antunes nos lembra, com seu olhar poeticamente pop, que a voz está na base da civilização — na verdade, antes dela havia o silêncio que dá título à canção, e apenas ele. Pois é a voz, ancestral, que em 2020, em plena era digital, se anuncia como o futuro — consolidando-se cada vez mais firmemente no presente. Artistas, jornalistas, influencers incategorizáveis, gravadoras, humoristas, professores — têm investido tempo em produzir podcasts para um público crescente. Mais do que isso, um público ávido por consumir esse tipo de conteúdo — a edição mais recente do levantamento PodPesquisa, realizado em 2018 pela Associação Brasileira de Podcasters (ABPod), aponta que 62% dos ouvintes de podcast no país dedicam de 2 a 4 horas de seu dia a ouvir material nesse formato.
Os números que atestam a força do podcast são muitos. As plataformas de streaming, maneira pela qual muitos dos ouvintes acessam os podcasts, confirmam. No Spotify, a audiência brasileira do formato vem aumentando em média 21% por mês desde janeiro de 2018. Na Deezer, o crescimento do podcast no Brasil foi de 177% nos últimos 12 meses — uma pesquisa encomendada pela empresa mostrou que, de maneira geral, entre usuários de plataformas de streaming, o aumento no período foi de 67%. A pesquisa Podcasts Stats Soundbites põe o Brasil como segundo mercado consumidor de podcasts no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
“Mas o que é um podcast, afinal?”, podem perguntar alguns dos brasileiros que ainda não entraram nessas estatísticas — apesar de terem enorme chance de fazer parte delas nos próximos meses.
“O podcast às vezes têm uma edição mais narrativa, parecendo uma história, com sonoplastia. A velocidade é diferente, a duração também.”
“A forma mais fácil de explicar é dizer que o podcast é um programa de rádio feito para a internet” — resume Samir Duarte, que comanda ao lado de Phelipe Cruz e Marina Santa Helena o Um milkshake chamado Wanda, um dos podcasts mais populares do país, com comentários bem-humorados sobre o universo do showbiz e da cultura pop em geral.
A proximidade com o rádio é evidente — afinal, ambos contam apenas com o recurso do áudio. Mas as mídias têm diferenças marcadas, como o próprio Samir pondera:
– O rádio tem uma entonação mais séria, a linguagem do podcast é mais descontraída. O podcast às vezes têm uma edição mais narrativa, parecendo uma história, com sonoplastia. A velocidade é diferente, a duração também. Meu podcast chega a ter 2h30 cada programa. No rádio, um programa não pode ter isso tudo.
As observações de Samir são precisas para dar conta dos contrastes mais claros entre rádio e podcast, mas a sintonia fina mostra que a comparação é mais complexa. A descontração não é exclusividade do podcast, por exemplo. Ao longo dos anos, ela marcou o estilo de locutores seja de rádios de notícias como BandNews (Ricardo Boechat), seja de rádios populares como a FM O Dia (Tino Junior) e a Jovem Pan (Emílio Surita). E programas de longa duração, que ocupam toda a manhã ou toda a madrugada, são uma tradição no dial brasileiro.
Paula Scarpin, diretora de Criação da Rádio Novelo (produtora de podcasts como o “Foro de Teresina”, de análise política, feito pela revista “Piauí”), avança na questão:
– Assim como o rádio, podcast não é um gênero, é um meio. Então tem de tudo no rádio e tem de tudo em podcast. Existem programas super inventivos, com uso de ruído, música, arco narrativo e edição caprichada no rádio, assim como tem podcasts que lembram rádio ao vivo, com quase nenhuma edição. O que muita gente chama de “formato podcast” é o podcast narrativo, roteirizado, muito influenciado pelo modelo americano, cujo maior expoente, pai de todos, o “This american life” (que se dedica a temas contemporâneos unindo jornalismo, ensaios e ficção), nasceu no rádio.
O caráter democrático e inclusivo do podcast, o fato de ele poder ser produzido com poucos recursos, determina possibilidades de programas que dificilmente se adequariam a uma rádio.
– Há programas incríveis como o “Pretas na rede”, que teria muita dificuldade de encontrar espaço em uma emissora broadcast — acredita a diretora de Criação da Rádio Novelo. — Não precisar passar pelo funil de uma emissora, com todas as complicações de concessões que a gente conhece, abre o meio pra uma presença muito mais plural. Outro trunfo do podcast, que também tem a ver com não depender de uma grade, é a possibilidade de abrir para experimentação na forma, duração, periodicidade. Mas claro que programas plurais e inventivos existem e deveriam existir mais no rádio.
Thiago Barbosa, gerente de Jornalismo da CBN, pensa o podcast a partir da perspectiva da rádio. Ao mesmo tempo em que é categórico ao afirmar que “podcast é rádio, ou melhor, uma nova forma de se fazer e ouvir rádio”, ele entende que a maneira de transmissão e consumo afeta de modo determinante a linguagem e o formato dos programas pensados para cada uma das mídias — o fato, por exemplo, de a audição do rádio ser em grande medida aleatória e a do podcast ser feita por quem escolheu ouvir aquele programa (no jargão, uma audição “on demand”, ou sob demanda).
– O podcast permite que você foque e se aprofunde num assunto, já que quem está ouvindo é alguém que escolheu fazer isso, não é um ouvinte que chegou ali por acaso — defende Thiago. — O rádio trabalha com uma audiência muito diversificada, de interesses variados. Se você fica 70 minutos falando de um assunto que interessa apenas a um nicho, você afugenta outro público.
O podcast, explica Thiago, acaba se tornando uma forma para que a rádio tradicional distribua seu conteúdo. Mas não simplesmente recortando sua programação e oferecendo-a em formato digital — algo que algumas rádios como a CBN fazem desde a década passada (o conceito podcast nasceu em 2004, mas se popularizou no Brasil apenas nos últimos anos, sobretudo com o advento das plataformas de streaming).
– A ideia é que o ouvinte de podcast chegue de diferentes maneiras ao conteúdo da rádio — detalha Thiago. — O comentário da Miriam Leitão vai pro feed dela, pro feed do podcast “Jornal da CBN”, pro podcast “Economia”, pro podcast dos comentaristas…
“Podcast é o rádio, sem o diretor de emissora”
Por quase 20 anos, a jornalista Patrícia Palumbo veiculou seu “Vozes do Brasil”, dedicado à música brasileira, na Eldorado FM. Há dois anos, migrou para a Rádio Vozes (na web) e hoje disponibiliza o programa também em formato de podcast. A partir de sua larga experiência com a comunicação por áudio, ela define, com humor:
– Podcast é o rádio sem o diretor de emissora. Isso permite que, por exemplo, ele seja imenso. Mas há um princípio que é o mesmo: saber do que se está falando. Porque abrir microfone é fácil, falar com responsabilidade é outra coisa. Saber dar voz pra quem valha a pena dar voz. Isso vale tanto para um bom podcast como para um bom programa de rádio.
Patrícia vê as suas mídias são complementares — e dá um exemplo de uma forma original na qual essa relação pode se dar.
– O podcast “Copiô, parente” é feito pelas comunidades indígenas da Amazônia. Lá, as rádios comunitárias, as rádios AM são o principal meio de comunicação. É por ali que avisam que o Incra está querendo entrar em contato, que as botas que eles precisavam chegaram… O podcast é uma nova forma de integrar essa comunidade. Fazer rádio e fazer podcast caminham na mesma direção.
Se o podcast oferece possibilidades de formato originais e abordagens aprofundadas, o rádio tem sua linguagem definida em grande medida pelo calor do “ao vivo” — algo que o novo meio digital não consegue acompanhar.
– É muito bonito o rádio de serviço, é o primeiro meio a que a gente recorre pra ter a notícia mais quente, seja resultado de futebol, seja breaking news sobre uma catástrofe — avalia Paula Scarpin — A interlocução imediata com o ouvinte (o podcast, por ser gravado, é mais lento nesse sentido) também é coisa linda de se ouvir, desde as dicas de trânsito até correio sentimental.
No Brasil, as rádios de notícias são as que melhor lidam com o diálogo do rádio com o podcast — afinado com os jornais impressos, como a Folha de S. Paulo, que faz em parceria com o Spotify o “Café da manhã”, e o Estado de São Paulo, que tem o “Estadão notícias”. A Bandnews tem produtos como o “Elas com elas” (feito por mulheres para mulheres) e “Poder de compra” (sobre consumo). A CBN produz, entre outros, o “Panorama CBN” (resumo do noticiário do dia) e o “Vozes: Histórias e reflexões” (abordagem de temas contemporâneos a partir de experiências relatadas por personagens).
– Temos várias etapas: pauta, pesquisa sobre o tema, achar as histórias e especialistas, entrevistas, decupagem, roteiro, edição, volta pro roteiro, gravação e sonorização — conta Gabriela Viana, apresentadora, produtora e roteirista do “Vozes: Histórias e reflexões”. — Hoje tudo sai em duas semanas. Mas já chegamos a levar um mês por episódio. Tenho uma equipe nota mil comigo e a gente funciona como uma engrenagem muito boa. Mas é importante lembrar que essa estrutura não é fundamental. Não precisa esperar ter tudo isso pra fazer. O mercado demanda novos formatos, novas vozes e novos nichos. É tirar a ideia do papel e dar play.
A experiência de Gabriela é bastante diferente da vivida pela massa de produtores de podcasts do Brasil — é o que aponta a PodPesquisa. Segundo o levantamento (que teve mais de 22 mil entrevistados), 28% das pessoas que fazem podcast no país trabalham sozinhas — 25,3% dos podcasts são feitos por duas pessoas. Além disso, 83,3% dos produtores não remuneram a equipe, e o gasto médio mensal dos podcasts é de R$ 148,84. Ou seja, apesar da popularidade do formato, sua produção no Brasil beira o amadorismo — em tudo que a palavra tem de positivo e de negativo. A captação é um dos problemas mais evidentes — uma falha importante numa mídia que é exclusivamente de áudio.
Produtoras como Rádio Novelo (“Foro de Teresina”), B9 (“Mamilos”), Half Deaf (“Projeto humanos”) e Rádiofobia (“Rádiofobia classics”) se dedicam a estudar e aprimorar o podcast, num movimento de profissionalização do formato no Brasil. Há uma expectativa de que o mercado cresça bastante nos próximos anos, com mais participação de anunciantes. O nó dessa questão é o desconhecimento do meio podcast por parte das empresas que seriam os potenciais patrocinadores. Elas têm uma ideia do retorno que terão ao investir em uma propaganda de rádio — cujo modelo de negócio, com algumas mudanças no caminho, está estabelecido há um século. Mas não sabem o que esperar do podcast.
– As marcas estão começando a enxergar, mas ainda é muito difícil convencê-las a anunciar, por ser uma mídia que as pessoas responsáveis pelo marketing dessas empresas em geral não consomem — explica Samir Duarte. — Elas não conseguem mensurar, ver aquele impacto. Um vídeo do YouTube ela vê o filho assistindo, ela mesmo entra no Youtube, verifica quantos views o vídeo tem. Mas as marcas estão entendendo o podcast e acredito que os três próximos anos serão decisivos e trarão uma mudança radical nesse sentido.
A dificuldade de medir de maneira confiável a audiência dos podcasts é outra barreira que se põe entre o meio e os anunciantes, acredita Thiago Barbosa:
– Falta um Ibope pra criar métricas de bom padrão, que possam dar um carimbo de verdade, pro mercado começar a ter um padrão. Hoje se tenta precificar os anúncios em podcasts comparando-os com banners em sites, o que é totalmente equivocado. O nível de engajamento num podcast é gigantesco, você está anunciando para alguém que está interessado naquele assunto e no seu produto, se ele for adequado. — diz o gerente de Jornalismo da CBN, que nota outro aspecto. — Como a pessoa escolhe ouvir, é praticamente inexistente o hater, ou seja, não há possibilidade de aquele anúncio ter, sobre uma parcela do público, um impacto negativo.
Dados da PodPesquisa reforçam a fala de Thiago Barbosa: 91,7% dos ouvintes escutam os podcasts inteiros — sendo que muitos programas ultrapassam 1h, ou até 2h.
– Em tempos de economia da atenção, contar com ouvintes focados em programas de até 2h é o sonho de toda a marca — avalia Kell Bonassoli, presidente da ABPod.
“Não é possível assistir um vídeo no YouTube enquanto se dirige um carro ou lava louças, por exemplo.”
É o caso do “Xadrez verbal”, de análise de fatos da política internacional. Seus episódios — dedicados a temas como a renúncia de Evo Morales ou a retirada das tropas americanas do norte da Síria — podem passar de 3h, o que não impede de ser um dos mais ouvidos do Brasil.
Filipe Figueiredo, que comanda o “Xadrez verbal”, atribui o sucesso do formato podcasts à fartura de temas disponíveis e à sua conveniência:
– Ele pode ser consumido em qualquer hora, em diferentes situações, e pode ser combinado com outras atividades. Não é possível assistir um vídeo no YouTube enquanto se dirige um carro ou lava louças, por exemplo.
Além dos patrocínios, o futuro aponta outra possibilidade de financiamento para os podcasts:
– A Deezer e o mercado como um todo estão estudando implantar a monetização dos podcasts no segundo semestre de 2020 — adianta Gabriel Lupi, diretor de Conteúdo e Relacionamento com Artistas da Deezer no Brasil. — Ou seja, os produtores de podcasts vão ser remunerados pela audiência que tiverem, assim como artistas e gravadoras recebem direitos conforme suas músicas são executadas na plataforma.
Também está sendo realizado em 2020 o mapeamento dos podcasts brasileiros, feito pela ABPod. Ele será compilado a partir de dados recolhidos na PodPesquisa 2019, atualmente em realização.
– Desde a pesquisa de 2018, muitas coisas mudaram no cenário do podcast — explica Kell Bonassoli. — Para mensurar estas mudanças, lançamos no Dia do Podcast, 21 de outubro, a PodPesquisa 2019. Ela é focada no perfil do ouvinte. Melhoramos as questões de gênero e acrescentamos a questão sobre etnia, além de trazer, pela primeira vez, a possibilidade de fazer o upload do OPML (arquivo que traz uma lista dos podcasts que o ouvinte segue). Esta nova opção melhora a coleta de podcasts ouvidos e a listagem dará subsídio para o mapeamento de produtores e podcasts brasileiros.
O olhar sobre gênero e etnia não é um preciosismo. Como tem um caráter de independência, o podcast atraiu em grande medida vozes que — por todas as questões da sociedade brasileira — estavam alijadas do rádio. Um dos fenômenos mais notáveis são os podcasts femininos/ feministas. Programas como “Maria vai com as outras”, sobre mulheres e mercado de trabalho, e “Novo normal”, apresentado por Antônia Pellegrino e Manoela Miklos (ambos da Rádio Novelo), “Ponto G” e o já citado “Pretas na rede” são apenas alguns dos exemplos.
– Desde o início do podcast no Brasil as mulheres sempre estiveram presentes, apesar da maioria masculina — conta Ira Morato, do “Ponto G”. — Nos últimos anos, movimentos e projetos como a hashtag #MulheresPodcasters e O Podcast é Delas incentivaram o crescimento do número de mulheres como produtoras e ouvintes de podcasts.
“Rádio é agora, podcast é qualquer hora.”
A cantora e compositora Julia Branco é ouvinte fiel de podcasts de mulheres — e outros:
– Existem vários feitos por mulheres que trazem discussões interessantes e tocam nas questões do feminismo: o “Bom dia, obvious”, da Obvious, o “Mamilos”, e estou curiosa com o “Novo normal”. Às vezes procuro por uns de astrologia. Recentemente descobri o “Bem bruxonas”, é divertido. Os podcasts são um alívio numa era em que a gente consome imagem sem parar. Sinto uma espécie de relaxamento mesmo.
Julia conta que também é ouvinte de rádio — apesar de hoje estar mais interessada nos podcasts. Segundo a PodPesquisa 2018, 36,4% dos ouvintes de podcast também consomem rádio. A cantora também está dentro da faixa etária de 80,7% dos ouvintes de podcast — entre 20 e 40 anos.
A produtora Ruth Castro se mantém fiel ao rádio e não ouve podcasts:
– É uma herança de meu pai que logo ao acordar, ligava o rádio. Sou fascinada. Tenho um rádio na cozinha, gosto da facilidade em mudar de estação e a proximidade para as atividades da casa — conta a produtora de 66 anos.
Ruth traça involuntariamente um paralelo com o hábito do podcast — 54,2% dos ouvintes digitais ouvem os programas enquanto realizam atividades domésticas.
– Fui diminuindo paulatinamente meu consumo de rádio conforme fui ouvindo mais podcasts. Ouço enquanto cozinho, passo roupa, faço a parte mais mecânica do trabalho, tomo banho, corro… — conta o professor Rafael Alverne.
O consultor empresarial Wesley Gonçalves ouve podcasts sobre negócios, liderança e carreira — nicho procurado por cerca de 20% dos ouvintes. Sua audição se divide entre podcasts e rádios de notícias, e ele estabelece uma relação de complementaridade entre os dois meios:
– O rádio me gera questões que me levam a outras fontes, onde busco outros pontos de vista sobre aquele fato. Essas fontes incluem, claro, os podcasts.
Também ouvinte de rádio e podcasts, Drigo Menezes busca a agilidade num meio e a profundidade no outro. Mas ele destaca também a liberdade dos podcasts (“sem a interferência dos interesses de grandes conglomerados de mídia em suas linhas editoriais”):
– Acompanho mais de 30 podcasts e acho que hoje eles cumprem a função que as rádios comunitárias deveriam cumprir e trazem a diversidade que deveríamos ter em todos os meios de comunicação. Podemos conseguir essa diversidade no plano geral se conseguirmos regulamentar os meios de comunicação e acabar com a concentração de mídia e a propriedade cruzada dos meios de comunicação.
Criador e apresentador — ao lado de Kika Serra — do Caipirinha Appreciation Society, podcast em inglês dedicado à música brasileira, MdC Suingue trafega nos dois meios. Seu programa foi criado e é transmitido por uma rádio londrina desde 2005 e em 2006 virou podcast. Com a autoridade de quem está há tempo nas ondas e nos bits, ele dá a síntese do espírito dos dois meios:
– Rádio é agora, podcast é a qualquer hora. Rádio é local, podcast é universal. Fazer rádio é caro, fazer podcast é barato.
Décadas antes da revolução digital, o que permitiu que a música ganhasse a importância que ganhou na cultura moderna foi uma inovação tecnológica: o rádio. Num meio de comunicação exclusivamente de áudio, era natural que, em meio às narrativas das radionovelas ou aos noticiários, a música se tornasse um de seus principais combustíveis, se não o principal. Seguindo a mesma lógica, o aumento do formato podcast no Brasil implicaria no surgimento de inúmeros programas no formato dedicados à música. Mas não é o que acontece. Na verdade, entre os programas de maior audiência em tocadores como Spotify e Deezer (espaços criados para se tocar música, bom lembrar), não há nenhum podcast dedicado ao tema entre, pelo menos, os cinquenta mais ouvidos.
-Parece ser o indício de que muita gente que gosta de música quer ouvir música. Não quer ouvir gente falando sobre música — acredita Braulio Lorentz, do G1 Ouviu, um dos podcasts brasileiros dedicados ao tema com maior visibilidade. — Na lista de podcasts mais ouvidos, quando um da categoria Música se destaca, quase sempre ele é, na verdade, uma playlist. Não tem reportagem, não tem locução. São apenas músicas cadastradas na categoria errada (como podcast).
“O podcast não pode ter apenas o que a gente ouve em casa. Sinto que esse é um desafio pra todo mundo que faz podcast de música.”
Como trazer a audiência desse público que gosta de ouvir música (playlists) e não gente falando sobre música (podcasts)? Braulio defende que se faça um movimento na direção do gosto popular:
-O maior desafio é fazer um podcast que faça sentido para ouvintes que acompanham música popular: funk, sertanejo, pop e outros gêneros que dominem as paradas de rádio e streaming. E, ao mesmo tempo, que faça sentido para quem só se informa sobre música popular ouvindo o podcast — explica. — O desafio do G1 ouviu é ser um guia de novidades, sem se pautar apenas pelo nosso gosto, pela nossa coleção de discos, pela nossa playlist de mais ouvidas do Spotify. O podcast não pode ter apenas o que a gente ouve em casa. Sinto que esse é um desafio pra todo mundo que faz podcast de música. É legal se pautar mais pela reportagem, pelo que o povo ouve, para tentar explicar bem essas tendências.
Braulio chama a atenção, portanto, para o outro lado da moeda da cultura de nichos — afinal, ela é vista por muitos como um dado positivo por permitir que gêneros relegados pelo rádio possam ter espaço na podosfera. Cleber Facchi, do “Vamos Falar Sobre Música?”, concorda com seu colega do “G1 Ouviu”.
-Comparados com os gringos, ainda temos uma oferta bem pequena, que ao meu ver tende a ficar presa dentro de um gênero musical, por exemplo k-pop, metal ou sertanejo. Isso acaba reduzindo o números de pessoas que conseguimos atingir. Um fã de k-pop dificilmente ouvirá um podcast especializado em metal e vice-versa. Ainda assim, há um potencial incrível a ser explorado e cabe a nós produtores encontrar essas intersecções. O “Vamos Falar Sobre Música?” nasceu com esse proposta de ser mais abrangente e tentar falar de tudo um pouco. Tem sido uma experiência interessante.
“Muita gente quer fazer podcast de música para propagar música, mas infelizmente a questão dos direitos em podcasts ainda é nebulosa no Brasil.”
Tony Ayex, editor do podcast Tenho Mais Discos Que Amigos (derivado do site de mesmo nome), nota outro ponto: a produção de podcasts de música é bem menor do que a de podcasts de humor, ou relacionados a conteúdo noticioso.
-Basta ver quantos sites, blogs, perfis e canais de YouTube temos voltados para a música e quantos temos de humoristas ou sobre assuntos que são matéria dos noticiários — diz Ayex.
Talvez o grande nó esteja na indefinição das regras de uso das músicas em podcasts. A falta de regulação para esse tipo de mídia cria uma zona cinza de direitos autorais, na qual não se sabe muito bem o que é permitido ou não. Há podcasts, como o “Radiofobia classics” (a cada edição, uma biografia de um artista ilustrada por suas canções) e o “Caipirinha Appreciation Society” (originalmente um programa transmitido por uma rádio londrina), que usam dezenas de músicas na íntegra. Outros se permitem usar apenas trechos ou se limitam a conversar sobre música.
-Muita gente quer fazer podcast de música para propagar música, mas infelizmente a questão dos direitos em podcasts ainda é nebulosa no Brasil e não se sabe o quanto pode se utilizar, se canções poderiam ser executadas na íntegra e se isso faria, por exemplo, um programa inteirinho ser derrubado da noite para o dia — explica Ayex. — Isso acaba desmotivando o produtor de conteúdo, que não sabe até onde pode ir, e também o ouvinte, que gostaria de descobrir novas sonoridades, artistas e cenas mas acaba se deparando com mais “falação” do que desejaria.
Os podcasts desenvolvidos por plataformas como Spotify e Deezer têm essa questão resolvida — afinal, elas têm o direito de execução sobre as canções. É o caso do “Essenciais”, de Roberta Martinelli, exclusivo da Deezer. O formato une entrevistas com um artista a cada edição, na qual ele traça um panorama de sua carreira, disco a disco, enquanto se ouve as músicas de cada fase.
A percepção do mercado sobre o potencial dos podcasts, em geral, e os de música, em particular, também dificulta o desenvolvimento do formato. Não apenas pela ausência de apoiadores ou patrocinadores, como ressalta Neto Fragoso, do “Clássicos do Rock”:
– Já tentamos diversas vezes nos cadastrar para cobrir os eventos nacionais relacionados ao nosso conteúdo, como Rock in Rio, Lollapalooza, Comic Con SP e outros. Mas simplesmente os e-mails de contato são ignorados, nem resposta nos dão. Mas acredito que a melhora desse cenário e do cenário dos podcasts de música em geral é apenas questão de tempo.
Sua colega de “Clássicos do rock”, Claudia Ines de Souza (Lokita Loks no podcast), reforça:
-Como afirmou Mia Nygren, diretora do Spotify para a América Latina, “estamos vivendo a segunda era de ouro do áudio falado”.
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