Pessoas com 80+ mantêm rotina criativa de descobertas e recomeços

31/08/2023

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População crescente no Brasil, octogenários, nonagenários e até centenários contam como seguem produzindo intelectualmente e criando vida

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Pelas mãos de Ricardina Pereira da Silva, cada uma das louças moldadas do barro carrega as vivências da mais antiga ceramista brasileira em atividade. Aos 103 anos, Dona Cadu – como é popularmente conhecida – ora está na palhoça de trabalhar em Coqueiros, povoado da cidade baiana de Maragogipe, ora está num avião, rumo a cidades desejosas de ouvi-la e aprender sua arte e ofício. “Eu tenho que trabalhar. Isso aqui significa muita coisa. É disso que eu vivo”, disse ao público que compareceu, ao Sesc 24 de Maio, na capital paulista, para o Encontro de louceiras: modelando gerações, no qual foi homenageada. Para Dona Cadu, não existe tempo para envelhecer quando se tem barro para criar histórias.

Cada vez em maior número, homens e mulheres acima dos 80 anos seguem ativos, produzindo intelectualmente e criando vida. A exemplo do poeta e compositor Hermínio Bello de Carvalho que acaba de lançar seu último trabalho, Cataventos (Selo Sesc), aos 87 anos de idade. Com casos como o dele, estamos acompanhando outros desenhos das velhices na contemporaneidade. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população de idosos no país é de 31,2 milhões de habitantes. E estimativas do Ministério da Saúde apontam que, em 2030, o número de pessoas acima dos 60 anos deve ultrapassar o total de brasileiros de até 14 anos em aproximadamente 2,28 milhões.

Para Alexandre Kalache, médico especialista em envelhecimento, a geração de 1968 não vai chegar à terceira (ou quarta) idade como seus pais ou avós. “Pergunte se vou arrastar chinelo para ler o jornal na varanda. Não vou. Já sou mais velho que meus avós quando eles morreram, e eles morreram bem velhinhos”, compartilhou Kalache em entrevista à Revista E, em 2018. Kalache destaca que existe uma importante fase de transição da idade adulta para a velhice passível de comparação com a própria adolescência. “Com uma diferença: a adolescência dura cinco ou dez anos, e essa outra passagem pode ir dos 55 aos 80. Ou seja, muito mais tempo para se reinventar, descobrir novos interesses, namorar e fazer uma porção de coisas que não se podia fazer e que agora é possível por obter mais tempo e, talvez, mais recursos”, constata o especialista, que dirigiu por 14 anos o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Se você está sempre na atividade, e tem uma vida dinâmica, não dá tempo para ficar velho

Zezé Motta, atriz e cantora

Nas redes sociais, por exemplo, são muitos os casos de octogenários e nonagenários que compartilham conteúdos sobre amizade, trabalho, sexo, relacionamentos, autonomia e outros assuntos. Exemplo do perfil do ator Ary Fontoura, de 90 anos, no Instagram, criado em 2017, e que hoje já soma mais de cinco milhões de seguidores. Ou do canal Avós da Razão, no YouTube, que estreou em 2018, com as amigas Helena Wiechmann, 95 anos, Sonia Massara, 85, e Gilda Bandeira de Mello, 81, trocando ideias sobre as dores e as delícias da velhice, como se estivessem num bar, espaço onde a amizade do trio se forjou ao longo de muitos anos… e copos de cerveja.

Neste ano, inclusive, as amigas lançaram o livro Avós da razão – Quebrando a cristaleira! (Editora Planeta), em coautoria com o escritor Ygor Kassab. “As Avós [da Razão] representam uma parcela de idosos ativos que cresce cada vez mais. Elas trabalham, saem com as amigas, paqueram, transam, têm desejos e sofrimentos como qualquer pessoa. E o vital: elas sonham. Como elas dizem no canal, ‘se você acha que ao completar 60 anos, sua vida acabou, você vai perder pelo menos uns 20 anos de vida inteligente pela frente’. Isso é potente”, acredita Kassab.

Fora das redes sociais, basta olharmos para o lado para percebermos outras pessoas com mais de 80 anos que decidiram não “pendurar as chuteiras”, e seguem trabalhando, frequentando teatros, cinemas, fazendo novos cursos e exercitando a criatividade. Mas qual seria o segredo de pessoas com idades entre oitenta e cem anos que impressionam pela agilidade mental e disposição física? Diretora do Centro de Pesquisas em Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP), Mayana Zatz investiga os componentes genéticos que estariam protegendo essas pessoas de doenças graves, proporcionando-lhes saúde nessa fase da vida.

Segundo a geneticista, para a maioria das pessoas, o envelhecimento saudável depende 80% do ambiente – “receita conhecida por todos: comida saudável, exercício físico, não ter sobrepeso e, se possível, pouco estresse” – e 20% da genética. Entretanto, ressalta Zatz, a partir dos 90 anos, e principalmente em centenários, a genética tem um papel cada vez mais importante. “Por isso estamos estudando centenários saudáveis. Queremos descobrir quais são os seus genes protetores, como eles agem para poder, a partir desse conhecimento, ajudar todos que não tiveram a sorte de herdar esses genes”, explica.

Mais antiga ceramista brasileira em atividade, a baiana Dona Cadu chega aos 103 anos de idade criando panelas, pratos e outras peças moldadas com barro, além de ser rezadeira e sambadeira. Foto: Rodrigo West.
Mais antiga ceramista brasileira em atividade, a baiana Dona Cadu chega aos 103 anos de idade criando panelas, pratos e outras peças moldadas com barro, além de ser rezadeira e sambadeira. Foto: Rodrigo West.

ALEGRIA DE VIVER. No livro O legado dos genes: o que a ciência pode nos ensinar sobre o envelhecimento (Companhia das Letras, 2021), Mayana Zatz e a jornalista Martha San Juan França compartilham histórias de octogenários, nonagenários e alguns centenários que participaram do projeto 80+, realizado pelo Centro de Pesquisas em Genoma Humano e Células-Tronco da USP. Pessoas que, segundo a pesquisadora, confirmam que “relações sociais são importantes, dentre outros fatores como nutrição e exercício físico, para ajudar no envelhecimento saudável”. A especialista observou ainda outro ingrediente fundamental nesta etapa da vida. “Existe uma expressão em francês, joie de vivre, ou “alegria de viver”. Isso é uma observação constante nas nossas entrevistas com centenários”, conclui.

Separadas por pouco mais de 80 quilômetros, a costureira Maria Aparecida Fernandes de Souza, 82 anos, e a professora aposentada Lília Sampaio de Souza Pinto, que completará um século de vida em novembro, não se conhecem, mas compartilham da mesma disposição, saúde e joie de vivre. Nascida e criada no bairro do Ipiranga, na zona sul de São Paulo, Dona Cida, como é chamada, não dispensa o preparo das suas refeições, nem pestaneja se o quintal estiver precisando de uma faxina. Tampouco dá descanso à máquina de costura, “porque se eu parar de costurar, eu pifo”, ela brinca. Bem-humorada, a costureira acredita que o segredo para uma velhice saudável é estar em paz com filhos e netos, manter boas amizades e “não fazer extravagâncias”, aconselha.

A costureira Cida Fernandes de Souza, que acaba de completar 82 anos de idade, prepara suas próprias refeições, cuida dos afazeres da casa e cultiva relações interpessoais. Foto: Adriana Vichi.

Frequentadora do Sesc Santos, na cidade onde mora desde 2000, Lília nasceu, cresceu, se formou, casou-se e teve filhos em Araraquara (SP). Orgulhosa dos 11 netos e 10 bisnetos, ela só torce o nariz quando tentam lhe convencer a diminuir o ritmo. Curiosa, aprendeu a arte da compra e venda de imóveis, quando tinha um apartamento financiado a duras penas com o salário de professora. Mas foi desse aprendizado que construiu o patrimônio da família, e até hoje brinca que “a formiguinha da compra e venda do negócio continua”.

Em permanente processo de reinvenção, Lília também atua como conselheira titular do Conselho Municipal do Idoso de Santos e é colaboradora da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa na OAB – Santos, para a qual está escrevendo o manual Conviver com o Idoso, a ser publicado ainda este ano. “Para mim, o homem não nasceu para morrer. Ele nasceu com um equipamento para se regenerar sempre. E o envelhecimento é uma educação que começa cedo. A criança nasce e já começa a envelhecer. Ou seja, a infância é a base da longevidade”, acredita Lília.

Para a cantora e atriz Zezé Motta, que em junho passado celebrou 79 anos, o segredo para se viver com qualidade a passagem dos anos é não se permitir envelhecer por dentro. “Se você está sempre na atividade, e tem uma vida dinâmica, não dá tempo para ficar velho. Eu aprendi isso com minha mãe. Ela morreu aos 95 anos, mas muito bem, graças a Deus. Me lembro das pessoas perguntando para ela: ‘Dona Maria, a senhora não vai ficar velha, não?’. E ela respondia: ‘Não tenho tempo, minha filha’. Eu estou seguindo essa linha, que é produzir muito, sonhar muito, me apaixonar sempre pela vida, pelas pessoas e pela arte. Estou sempre em movimento”, arremata.

Zezé Motta conduz o curso "Como estamos envelhecendo", disponível na plataforma de ensino a distância do Sesc São Paulo. Foto: Matheus José Maria.
Zezé Motta conduz o curso “Como estamos envelhecendo“, disponível na plataforma de ensino a distância do Sesc São Paulo. Foto: Matheus José Maria.

IDADE, LONGE VÁ!

Iniciativa pioneira no Brasil, Trabalho Social com Idosos, do Sesc São Paulo, celebra 60 anos de ações permanentes

No dia 26 de setembro de 1963, um grupo de 12 aposentados se reuniu pela primeira vez no Centro Social Mário França de Azevedo – hoje Sesc Carmo – a convite de uma equipe do Sesc que buscava promover a sociabilização e estimular o protagonismo das pessoas com mais de 60 anos. Naquele primeiro momento, o Trabalho Social com Idosos (TSI) pretendia incentivar a convivência, promover atividades de lazer e orientar para a auto-organização, com a participação direta dos idosos, que podiam sugerir programações de seu interesse, cabendo ao Sesc o suporte estrutural e técnico.

Mais tarde, com o crescente interesse e participação desse público nas ações da instituição, foram sendo criados diversos núcleos nas unidades do interior de São Paulo, e o programa foi se ampliando e sistematizando reflexões e práticas em ações de longo prazo, numa iniciativa pioneira no país. De lá para cá, o TSI atualiza-se constantemente para dar conta das questões e necessidades das pessoas com mais de 60 anos – população que, de acordo com o IBGE, deve ultrapassar em 2035 – pela primeira vez na história –, o número de crianças (17,16% contra 16,76%, respectivamente).

Para Flávia Carvalho, gerente da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, “é condição essencial que as ações propostas à pessoa idosa possam, ao mesmo tempo, dar conta da realidade presente e antecipar necessidades futuras”. Atualmente, segundo a gerente, o TSI tem, entre seus objetivos, incentivar a sociabilização, construir conhecimentos, desconstruir estereótipos, promover saúde e fomentar reflexões sobre envelhecimento e longevidade, além de estimular o protagonismo e as relações intergeracionais. “Focar na atualização das ações permanentes do Trabalho Social com Idosos tem sido um exercício constante do Sesc, há seis décadas”, complementa Flávia.

Confira algumas das ações do Trabalho Social com Idosos do Sesc São Paulo:

Festival da Integração
Reunião de pessoas idosas, frequentadoras das unidades do Sesc São Paulo, com o objetivo de consolidar as ações desenvolvidas pelo TSI ao longo do ano. O festival contempla ações esportivas, de lazer e artísticas.
De 13 a 17/9 e de 20 a 24/9, no Sesc Bertioga.

Envelhecer
Dirigida por Claudia Erthal e Paulo Markun, esta série lançada em 2020 pelo SescTV é composta por 13 episódios e levanta reflexões sobre envelhecer no século 21, a partir de depoimentos sobre o processo de envelhecimento, os problemas econômicos e os desafios desta fase da vida. Assista aqui!

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