Por que há poucas mulheres na música?

19/06/2020

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Contextualizar a carência da representatividade feminina na indústria da música é resgatar, historicamente, as estruturas que excluem a mulher dos espaços artísticos, intelectuais, políticos, econômicos, sociais e tantos outros.

Neste breve estudo transitei entre a história da música, do mercado musical brasileiro e da indústria fonográfica a nível global. Destacando, principalmente, os pontos chaves para a baixa representatividade feminina a partir de pesquisa bibliográfica e análise de dados.

Nos primórdios musicais

Os primeiros registros de mulheres que destacaram-se no campo da música surgem da Idade Média. O nome mais conhecido e estudado deste período é o da monja beneditina alemã Hildegarda. Conhecida como a Sibila do Reno, Hildegarda foi uma visionária filósofa e escritora, sendo uma das mais importantes compositoras de todos os tempos. Suas composições possuem mais de 900 anos.

Filha de uma família de nobres, foi entregue a um mosteiro aos 8 anos. Lá, foi exposta a um universo de conhecimento e prática que raras mulheres tinham acesso até então. Dedicou parte da vida, principalmente, aos seus textos e pesquisas científicas, mas isso não a impediu de transitar nas artes.

Hildegard von Bingen em gravura de W. Marshall | Imagem: Wellcome Collection Gallery

Como compositora, Hildegarda trouxe inovações importantes ao canto gregoriano do século XII, que já possuía uma estrutura estabelecida. Diferente do habitual estilo silábico [1] do canto gregoriano, Hildegarda trouxe a melisma [2], pois acreditava que dessa forma poderia inserir mais beleza à liturgia. [3]

“(…)a igreja mantinha regras rígidas sobre o uso do canto e da voz, dentro e fora dos cultos. Regras direcionadas, principalmente, à voz feminina.”

A compositora faleceu em 1179 e não viu o surgimento da indústria fonográfica, embora dela faça parte. Isso é resultado do resgate de sua obra por movimentos feministas contemporâneos no início da década de 80 resultando em estudos mais aprofundados em sua produção musical. Outra obra responsável pela expansão de seu nome foi o álbum Vision: The Music Of Hildegard von Bingen, de Richard Souther, lançado em 1994, que foi um sucesso na época chegando a figurar no Top Billboard, na categoria classical [4].

No período renascentista, o homem e suas capacidades assumem o papel de protagonistas nas artes, enquanto a igreja começa a se afastar dos caminhos do poder e controle do saber. Dessa forma, podemos ver a progressão da música acontecer também através do plano vocal [5] e isso segue até o século XVI. Antes disso, a igreja mantinha regras rígidas sobre o uso do canto e da voz, dentro e fora dos cultos. Regras direcionadas, principalmente, à voz feminina.

A mulher considerada pioneira neste período foi a italiana Maddalena Casulana (1544-1590). Alaudista e cantora, foi a primeira compositora a ver a sua obra musical impressa e publicada nos anais da música ocidental [6]. Maddalena trazia um discurso onde questionava o lugar que tentava ocupar enquanto artista. Desejava mostrar ao mundo, através de suas habilidades, que a arte musical poderia ser atribuída a uma mulher.

A transição para o Barroco foi um momento de grande criatividade e deu margem para o surgimento de instrumentos musicais mais sofisticados, principalmente, dentro da família das cordas, época marcada também pelo início da Ópera e do Ballet. Poucas mulheres conseguiram real destaque aqui como musicistas. Entre elas, temos Francesca Caccini (1587-1640), primeira compositora a escrever uma ópera (talvez, a figura musical feminina mais importante entre os séculos XII e XIX), e Leonora Duarte (1610–1678), solista e também compositora [7].

Retrato de uma mulher que acredita-se ser Francesca Caccini de autoria do pintor italiano Palma Vecchio | Imagem: Girl Museum

“Era permitido subir ao palco (em alguns casos somente com autorização do tutor) e executar uma obra composta por homens, mas não criar ou apresentar sua própria obra.”


A musa inspiradora

O Renascimento traz luz a renovação cultural. As artes retornam, aos poucos, ao campo da ideação harmônica, beleza do corpo e equilíbrio. A partir deste momento a mulher passa a protagonizar o ideal de musa inspiradora para que homens artistas atingissem o máximo de sua criação artística, partindo da contemplação e posse de um arquétipo de serenidade criado por eles mesmos.

Não à toa que, no campo da música, a mulher ganha destaque, principalmente, como intérprete. Era permitido subir ao palco (em alguns casos somente com autorização do tutor) e executar uma obra composta por homens, mas não criar ou apresentar sua própria obra.

A crença defendida era de que a mulher não possuía as qualidades emocionais e intelectuais obrigatórias para apreender a luz do conhecimento, sendo até considerada nociva essa mesma aprendizagem, porque podia desviá-la da sua função primacial de esposa, mãe e dona de casa [8]. Portanto, o vislumbre de uma carreira artística jamais era encorajado a uma mulher.

Ainda assim, ao longo de todos esses séculos de história da música, seja ela clássica ou popular, muitas mulheres em diferentes partes do globo, conseguiram romper limitações. Modelos necessários para que os caminhos fossem abertos para outras.

Quando a participação feminina no ambiente musical é reduzida, não há representatividade. Esse contexto fortalece um ciclo que vem desde a Idade Média, onde a crença que as mulheres não devem ocupar esses espaços é o ponto principal dessa lógica que gera medo e culpa [9].

Negócio fonográfico brasileiro e o pioneirismo de Chiquinha Gonzaga

É importante frisar que a inserção de novas tecnologias na indústria fonográfica sempre passam por períodos de transição. Quando Thomas Edison adquiriu a patente do fonógrafo em 1878, ele ainda não sabia como lucrar com sua invenção considerada uma tecnologia revolucionária. Foi apenas no fim da década de 1890, a música passou a ser o principal conteúdo das gravações sonoras [10].

No Brasil, segundo o crítico musical José Ramos Tinhorão (1981), é possível encontrar artigos de jornais do final do século XIX, já com anúncios de exposição de fonógrafos na cidade do Rio de Janeiro, até então capital do Império. Entretanto, consideramos o início do negócio fonográfico no Brasil a década de 1900 [11]. Neste contexto, temos os discos sobrepondo a venda de partituras.

Antes do início do negócio fonográfico brasileiro já existiam mulheres produzindo e a mais notável, sem dúvida, por conta de todo seu histórico de pioneirismo foi Chiquinha Gonzaga (1847–1935), primeira maestrina brasileira. Prova disso é a obra Ó Abre Alas [12], composição de 1899 que marcou a história da música brasileira e do carnaval.

A lendária Chiquinha Gonzaga em 1932 | Foto: Dedoc/VejaSP

Ela foi além e trouxe para a sua carreira um norte empreendedor. Em uma época onde todo conhecimento adquirido pela mulher, artístico ou não, devia ser aplicado no ambiente familiar, Chiquinha quebrou paradigmas [13]. Do ponto de vista do mercado, ela foi uma das maiores vendedoras de partituras de sua época e essa experiência foi um ponto determinante para ela tomar frente nos debates sobre direitos autorais e seus repasses. Percebendo o caminho monopolista que algumas gravadoras já seguiam, ela decidiu também abrir sua própria fábrica de discos. A Discos Popular foi fundada em 1920 juntamente com o ex-diretor da Casa Edison, João Baptista [14] e durou cerca de dois anos.

A vida de Chiquinha deixa claro que a mulher artista é obrigada a realizar escolhas. Não é possível somar suas ambições profissionais a uma vida caseira, caso deseje. Sua trajetória não aconteceu tranquilamente. Para conseguir ser musicista precisou abrir mão dos filhos e foi duramente criticada por parte da sociedade carioca, fosse por sua carreira, ou seus ideais feministas e abolicionistas.

O legado de Chiquinha Gonzaga é da artista que cria, executa e rege sua própria obra. De quem coordena os processos de sua carreira e busca autonomia para tomar decisões. Isso tudo é poderoso e abriu caminhos para outras abrirem mais caminhos.

A estrutura da indústria

Desde a criação do fonograma até o advento do streaming, a indústria passou por transformações significativas que refletem diretamente nos modos de produção e consumo da música. Esse contexto possibilita que artistas e profissionais de diferentes portes possam criar carreiras sustentáveis. Mas ainda assim, no que diz respeito a maior faturamento e tamanho de catálogo, são apenas três as gravadoras que dominam a indústria musical no mundo: Universal Music, Sony Music e Warner Music [15]. Todas são representadas pela Associação Americana de Gravadoras [16] e controlam parte massiva da produção musical global, diretamente ou através dos seus selos e subsidiárias.


“(…) inseridas em dezenas de países e, há mais de 50 anos, tem as mesmas mentalidades masculinas gerenciando suas pirâmides.”


A RIIA (sigla de Recording Industry Association of America ou Associação Americana da Indústria de Gravação) foi inaugurada em 1952 e é através dela que muitas instituições, artistas e gravadoras obtém, por exemplo, as certificações sobre venda de mídia física e agora execução digital. Além disso, a associação protege legalmente as obras e coloca o selo Parental Advisory Label nos discos, para sinalizar conteúdo explícito. Durante toda sua operação, a RIIA teve apenas uma mulher presidente, Hilary Rosen (1998–2001).

Atualmente colunista do jornal norte-americano Washigton Post, Hilary Rosen foi até então a única mulher a frente da RIAA | Foto: SKDKnickerbocker

Além dos grandes conglomerados de gravadoras, a RIIA possui organizações musicais parceiras. Dentre elas, estão as conhecidas Recording Academy e a The Latin Recording Academy, ambas responsáveis pelo Grammy.

A Recording Academy foi fundada em 1957 e em toda sua história teve apenas uma mulher como CEO, Deborah Dungan, que permaneceu no cargo durante 6 meses apenas. Há exatamente 10 dias para a noite da edição de 2020 da entrega do Grammy, ela foi afastada de sua posição na Recording Academy, sob alegação de má conduta [17]. Dias depois Deborah trouxe a público acusações sérias contra a academia, dentre elas: gastos desnecessários, irregularidade nas votações para a premiação e assédio sexual.

Essas acusações colocam em cheque os reais objetivos e interesses dessas instituições que influem na maneira como a indústria fonográfica funciona ao redor do mundo. Em maior ou menor grau, elas estão inseridas em dezenas de países e, há mais de 50 anos, tem as mesmas mentalidades masculinas gerenciando suas pirâmides. Toda essa sistemática e a maneira como elas operam reflete fortemente em mercados locais como o brasileiro.

A palavra de Deborah tem sido colocada à prova a cada declaração da academia a imprensa. Do outro lado, seus apoiadores dizem que algo assim estava previsto, já que ela estava planejando mudanças significativas dentro das esferas das votações, dando atenção a desigualdade racial e de gênero dentro das premiações.

Ainda sumidas da indústria

Hoje, os charts [18] podem confundir quem olha a indústria fonográfica apenas de um lado. Quando o recorte é feito e apontamos a lupa para o lugar certo, os mesmos dados e charts nos mostram que as mulheres ainda estão sumidas da indústria da música e o que há por trás desses números, ou abaixo deles, é o que poucos se atentam ou discutem. Vem desde a Idade Média e se reflete, por exemplo, nas disparidades de cachês entre artistas homens e mulheres.

Segundo o ranking Top 100 WorldWide Tours do site PollStar [19], a cantora e compositora Pink foi a artista que mais arrecadou com shows durante 2019. Para chegar ao valor bruto de $215 milhões, Pink precisou realizar 68 shows em 59 cidades. Enquanto isso, Ariana Grande, que ocupa o oitavo lugar, realizou 78 shows em 65 cidades, arrecadando $118 milhões. Ariana e Pink são as únicas mulheres no top 10 desse ranking.

Ed Sheeran, que está em terceiro lugar, realizou 27 shows a menos que Ariana, mas arrecadou $211 milhões. Uma matemática simples ilustra que se Ariana tivesse ganho a mesma média de cachê de Ed Sheeran e mantido os seus 78 shows, ela teria arrecadado cerca de duas vezes mais que o britânico.

Já a pesquisa Inclusion in the Recording Studio? Gender and Race/Ethnicity of Artists, Songwriters & Producers across 800 Popular Songs from 2012–2019, realizada pela Faculdade de Comunicação e Jornalismo da USC (University of Southern California) [20], mostra que as mulheres representam menos de um terço de todos os artistas em 800 músicas.

Em publicação recente, Michael Mauskapf (Columbia Business School), Noah Askin (INSEAD), Sharon Koppman (UC Irvine) e Brian Uzzi (Northwestern), afirmaram, a partir da análise de 250.000 músicas produzidas e lançadas entre 1955 e 2000 [21], que mulheres estão mais envolvidas em áreas criativas como arte, música e literatura que os homens e que podem ser, musicalmente, mais inventivas.

Segundo o grupo de pesquisadores, resultados como esses deixam claro que ao invés das habilidades, os fatores sociais são os responsáveis por essas disparidades de gênero como vimos nos gráficos anteriores. Cachês desiguais, falta de espaço em grande premiações e palcos importantes são alguns dos reflexos destes números.


“O presente e o futuro de uma indústria com mais igualdade é trabalhar o nosso talento de reunir.”


Por que há poucas mulheres na música?

Durante muito tempo a mulher foi distanciada da criação e execução artística. Privada de usar a sua arte como profissão, linguagem de expressão e comunicação com o mundo.

Quantas mulheres foram invisibilizadas? Quantas artistas nunca conhecemos?

A indústria musical não é descolada da sociedade. Portanto, se estamos inseridos em um contexto patriarcal, que reproduz o machismo, o racismo, a homofobia, e outros preconceitos, a indústria se constrói a partir dessa sociedade e a reflete em seu modo de operar.

O presente e o futuro de uma indústria com mais igualdade é trabalhar o nosso talento de reunir. Criar redes, colaborações. As mulheres são os seres mais capazes de desfrutar de parcerias do que qualquer outro [22] e essa característica potencializa mensagens que precisam ser ditas, fortalece estratégias e amplifica representatividade. Este é um norte poderoso.

Mirar a quebra da indústria fonográfica pode ser utópico, mas é possível trabalhar em conjunto para criar a força necessária para que a próxima pergunta seja em tom de solicitação: por que não há luz nas mulheres da música?

Notas

[1] Estilo silábico ou canto silábico é quando para cada nota existe uma sílaba cantada.

[2] Melisma, quando para cada sílaba existem diversas notas cantadas.

[3] WHITE, John D. The Musical World of Hildegard of Bingen. College Music Symposium, vol. 38, 1998, pp. 6–16. JSTOR. Acesso em: 18 mai. 2020.

[4] MORRISSEY, Christopher. A Begginer’s Guide to the Music of Hildegard of Bingen. The Catholic World Report. 25 jun, 2012. Acesso em: 30 mai. 2020.

[5] NABAIS, João-Maria. A história esquecida da mulher na música. O Primeiro de Janeiro. 2008. Acesso em: 20 out. 2019.

[6] NABAIS, João-Maria. A história esquecida da mulher na música. O Primeiro de Janeiro. 2008. Acesso em: 20 out. 2019.

[7] NABAIS, João-Maria. A história esquecida da mulher na música. O Primeiro de Janeiro. 2008. Acesso em: 20 out. 2019.

[8] NABAIS, João-Maria. A história esquecida da mulher na música. O Primeiro de Janeiro. 2008. Acesso em: 20 out. 2019.

[9] FERNANDES, Larissa. Falta de representatividade feminina no cenário musical. 2017. Acesso em: 20 out. 2019.

[10] VICENTE, Eduardo; DE MARCHI, Leonardo. Por uma história da indústria fonográfica no Brasil 1900–2010: uma contribuição desde a Comunicação Social. Música Popular em Revista, Campinas, ano 3, v. 1, p. 7–36, jul.-dez. 2014. Acesso em: 25 set. 2019.

[11] VICENTE, Eduardo; DE MARCHI, Leonardo. Por uma história da indústria fonográfica no Brasil 1900–2010: uma contribuição desde a Comunicação Social. Música Popular em Revista, Campinas, ano 3, v. 1, p. 7–36, jul.-dez. 2014. Acesso em: 25 set. 2019.

[12] Ó Abre Alas, composta por Chiquinha em 1899

[13] TELLES, Júlia. O legado de Chiquinha Gonzaga para o empreendedorismo feminino brasileiro. Centro Paula Souza. 2009. Acesso em: 25 set. 2019.

[14] BUYS, Sandor. Solos de piano gravados por Chiquinha Gonzaga. Revista Música Brasileira. 2015. Acesso em: 20 out. 2019.

[15] “As maiores gravadoras lucram US$ 19 milhões por dia com plataformas de streaming”, Rolling Stone, 25/02/2019:

[16] About. RIIA. Acesso em: 28 jan. 2020.

[17] “Deborah Dugan: suspended Grammys chief fired after misconduct investigation”, The Guardian, 2/3/2020.

[18] O mesmo que parada de sucesso. Classificação das músicas mais tocadas de um dado período ou gênero. As mais famosas são da Billboard, uma das mais antigas e da Spotify.

[19] Pollstar Top 100 WordlWide Tours. Pollstar. 2019. Acesso em: 26 jan. 2020.

[20] SMITH, Stacy; PIEPER, Katherine; CLARK, Hanna; CASE, Ariana; CHOUEITI, Marc. Inclusion in the Recording Studio? Gender and Race/Ethnicity of Artists, Songwriters & Producers across 800 Popular Songs from 2012–2019. USC Annenberg. School for Communications and Journalism. 2019. Acesso em: 19 jan. 2020.

[21] “Finally, Research Proves Female Artists Are More Creative Than Men”, Rolling Stone, Abril/2020.

[22] “Finally, Research Proves Female Artists Are More Creative Than Men”, Rolling Stone, Abril/2020.

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