Leia a edição de ABRIL/24 da Revista E na íntegra
Ainda que o funk tenha nascido nos Estados Unidos e chegado ao Brasil na década de 1970, as diversas influências que atravessaram esse gênero musical a partir da década seguinte o alçaram a um lugar único na história da música brasileira. Julgado por melodias e letras capazes de provocar polêmicas, o funk brasileiro se tornou objeto de estudo na academia a partir dos anos 1980, com a dissertação de mestrado do antropólogo Hermano Vianna, que deu origem ao livro O mundo funk carioca (Jorge Zahar, 1988). Desde então, pesquisadores investigam o papel e a importância do funk, não só como estilo musical, mas como ferramenta de contestação do racismo e de desigualdades sociais.
Para o musicólogo e professor Thiago B. A. de Souza – conhecido nas redes sociais como Thiagson –, a universidade ainda não dialoga com aqueles que fazem parte da cena funkeira, o que pode gerar mais perspectivas enviesadas. “Muitos pesquisadores conseguem abordar o tema ignorando essa diferença de classe social favela/universidade. Ou muitas vezes, pesquisadores são coagidos pela dinâmica institucional da universidade a ignorar os conflitos sociais surgidos pela simples presença do tema funk em uma pesquisa acadêmica”, observa Souza, que faz um doutorado sobre o assunto no departamento de música da Universidade de São Paulo (USP), além de ter escrito o livro Tudo que você sempre quis saber sobre funk… mas tinha medo de perguntar (Tipografia Musical, 2023).
Finalista do Prêmio Jabuti 2023 pelo livro O funk na batida: baile, rua e parlamento (Edições Sesc São Paulo, 2022), Danilo Cymrot ainda observa que o preconceito sofrido pelo funk é direcionado a outros gêneros musicais associados a jovens, negros, moradores de favelas e periferias. “Assim como o sertanejo, o forró eletrônico e o pagode romântico, o funk, muitas vezes, é taxado de ‘música pobre’. Os critérios que fazem um gênero musical ser considerado ‘pobre’, no entanto, variam de acordo com os diferentes valores dos diferentes grupos sociais.”
Afinal, por que o funk brasileiro incomoda tanto? E o que isso diz a respeito da sociedade contemporânea? Neste Em Pauta, Cymrot e Souza traçam caminhos para para uma compreensão dessa expressão cultural embalada por música e controvérsias.
POR DANILO CYMROT
Se o samba, há décadas, é vendido como símbolo da identidade nacional brasileira, nem sempre foi assim. No começo do século 20, sambistas, oriundos das camadas populares e negras da população, eram marginalizados ao ponto de serem presos, acusados de vadiagem, uma contravenção penal. Gêneros musicais que antecederam o samba, também fortemente associados aos negros, como o lundu, o maxixe e o jongo, eram acusados de terem coreografias e letras indecentes. Foi apenas na Era Vargas [entre 1930 e 1945] que o Estado passou a valorizar manifestações culturais populares como o samba, mas, ao mesmo tempo, tentando domesticá-las para adaptá-las às ideologias oficiais do governo: o nacionalismo, o trabalhismo e a democracia racial.
Da mesma forma, alguns artistas da chamada MPB, muito respeitados atualmente, chegaram a ser taxados de “descartáveis”, produtos de um “modismo” imposto pelo mercado e considerados muito inferiores a artistas de gerações que os antecederam. É recorrente, afinal – como Woody Allen mostrou no filme Meia-noite em Paris [Estados Unidos, 2011] –, o discurso que idealiza o passado e que denuncia de forma nostálgica uma suposta decadência cultural dos tempos atuais.
É nesse quadro que o repúdio que o funk causa em tanta gente deve ser compreendido. Muitas das acusações sofridas pelo funk estão presentes em outros gêneros musicais associados a um público bem específico: jovens, negros, pobres, moradores de favelas e periferias. Assim como o pagode baiano e o tecnobrega, o funk é acusado de fazer apologia ao crime, às drogas e ao sexo. Assim como o sertanejo, o forró eletrônico e o pagode romântico, o funk, muitas vezes, é taxado de “música pobre”. Os critérios que fazem um gênero musical ser considerado “pobre”, no entanto, variam de acordo com os diferentes valores dos diferentes grupos sociais.
Uma música que valoriza mais o ritmo, a batida e a dança do que a letra e a harmonia pode ser a mais “rica” para se animar um baile, por exemplo. Ocorre que a diversão descomprometida pode desagradar grupos que veem no lazer de pobres um foco de caos social, pois questiona, ainda que não explicitamente, o papel a que os jovens pobres foram destinados, o trabalho precário. Da mesma forma, um espaço em que negros podem circular à vontade ganha um aspecto político em uma sociedade racista em que a circulação livre de negros pela cidade é interditada, haja vista as reações aos rolezinhos nos shopping centers de São Paulo. Já o funk ostentação, com letras que fazem apologia a marcas de luxo, apesar de ser acusado de alienado, questiona distinções sociais por meio do consumo e não deixa de expressar uma demanda de jovens pobres e periféricos por reconhecimento e visibilidade.
Dois dos subgêneros mais controversos do funk, um gênero não homogêneo, são o funk “putaria” e o funk de facção, ambos também conhecidos como funk “proibidão”. O primeiro, com letras explícitas sobre sexo, ainda quando cantado por mulheres, é acusado de ser machista, objetificando sexualmente as mulheres. Isso não impede que uma corrente do feminismo, que tampouco é homogêneo, veja cantoras de funk “putaria” como neofeministas, na medida em que cantam nas letras o desejo sexual de mulheres ou respondem na mesma moeda a letras de funk machistas. Ocorre, por outro lado, que muitos desses funks “neofeministas” são compostos por homens. Além disso, cantoras de funk se queixam que só encontram espaço no mercado ao cantarem sobre sexo. Não se pode esquecer, porém, que o machismo está presente em diversos gêneros musicais por se tratar de um problema social que se reflete na cultura.
A controvérsia aumenta, ainda mais, quando se trata de funks “putaria” que fazem referência a “novinhas” ou que são cantados por MCs mirins, o que rende acusações de que o funk faz apologia à pedofilia, à erotização precoce ou à prostituição infantil. É importante salientar, no entanto, que uma prática comum no funk “putaria” e no de facção é “contar vantagem” por uma questão de status. Ou seja, não existe uma correspondência, necessariamente, entre o que é cantado e o que é vivido pelos MCs; e a forma como crianças têm o primeiro contato com relações sexuais é diferente, dependendo das condições materiais de vida.
A gravidez na adolescência, assim como o abuso do consumo de drogas (lícitas ou ilícitas) e a violência são problemas complexos, com múltiplas causas. Atribuí-los a um gênero musical ou ao espaço onde ele está mais presente – o baile – responde a uma demanda por soluções rápidas e fáceis, mas apenas simbólicas e ineficazes, tendo em vista que a proibição dos bailes, como já foi feito, não impede que esses problemas se manifestem em outros espaços.
O funk de facção é comumente acusado de fazer apologia ao tráfico de drogas. Seus defensores, no entanto, argumentam que ele apenas retrata a realidade das favelas ou que deve ser entendido como qualquer obra de arte baseada na realidade, mas que não se confunde com ela. Que proibi-lo equivale a “matar o carteiro”, e que os MCs cantam esse gênero de funk muitas vezes por não encontrarem espaço para cantarem, a não ser em bailes financiados por traficantes. Seja porque o mercado descarta rapidamente MCs, seja porque o Estado não cumpre com seu dever de garantir o direito ao lazer, seja porque o funk de facção faz sucesso entre jovens, que o encaram como um revide simbólico à violência policial ou uma forma de afirmação de orgulho coletivo territorial. O funk de facção ainda é um locus privilegiado para entender os valores difundidos pelas facções e a história não oficial de disputas e alianças entre elas.
Um dos principais objetivos do meu livro O funk na batida: baile, rua e parlamento foi mapear as diversas formas como o Estado responde ao fenômeno do funk. As disputas se dão entre poderes políticos diversos, dentro do mesmo poder e até mesmo dentro do mesmo governo ou partido. Ora os projetos de lei, leis e políticas públicas reconhecem o funk como manifestação cultural, procurando disponibilizar espaços públicos para que vigore; ora o restringem de forma discriminatória, por meio de legislação administrativa que impõe uma série de requisitos burocráticos para a realização dos bailes; ou o criminalizam por meio do enquadramento de MCs em delitos como os de apologia ao crime ou associação ao tráfico de drogas.
Por essas razões, tratar do funk é mais do que tratar apenas de um gênero musical. É tratar de temas como liberdade de expressão, o direito à cidade, racismo, juventudes e violência. Nesse sentido, o funk e a forma como o Estado lida com ele expõem as contradições e fraturas da sociedade brasileira.
POR THIAGO B.A SOUZA (THIAGSON)
Palavras vão ganhando novos significados conforme a sociedade muda e, frequentemente, vão se distanciando dos significados originais. “Funk”, no nosso Brasil, já não é mais associado diretamente a James Brown (1933-2006) ou Sly Stone. Muito antes do funk, o mesmo aconteceu com a palavra “bolero”, a partir do final do século 19. “Bolero” deixou de se referir a um antigo estilo musical espanhol de ritmo ternário (em três tempos, parecido com a valsa) e se tornou sinônimo de uma música sentimental latino-americana em ritmo binário – músicas completamente diferentes.
É por causa dessa atualização dos sentidos das palavras que muitas vezes esquecemos que “refletir” ou “reflexão” significa olhar para a própria imagem espelhada. Talvez por isso seja comum ouvir dizer que intelectuais (pessoas que refletem sobre o mundo) são narcisistas, adoram se olhar no espelho. Olhar para si mesmo, não com autoadmiração cega, mas com autocrítica, é parte do processo de entendimento do mundo. Quem somos nós nesse jogo?
Entendi cedo que a universidade de música é lugar de muito narcisismo e, contraditoriamente, pouca reflexão. “Falta autocrítica nesse lugar!”, é o que penso muitas vezes quando estou na universidade e vejo as pessoas e a instituição. O funk é o espelho que a universidade precisa. O funk é um objeto de estudo que reflete a própria universidade e as pessoas que lá estão.
Hoje faço um doutorado sobre funk no departamento de música da Universidade de São Paulo. Mas, antes de tratar do tema, gosto de refletir sobre o conflito e a distância social que existe entre as pessoas do funk e as pessoas da universidade que pesquisam o funk. Muitos pesquisadores conseguem abordar o tema ignorando essa diferença de classe social favela/universidade. Ou muitas vezes, pesquisadores são coagidos pela dinâmica institucional da universidade a ignorar os conflitos sociais surgidos pela simples presença do tema funk em uma pesquisa acadêmica.
Contudo, abordar os conflitos e diferenças sociais entre quem faz funk e quem escreve sobre ele é o que tem se colocado como um obstáculo libertador da minha pesquisa e do meu trabalho. Sendo bem sincero, para mim é difícil tratar de funk. Tem tanto a ser falado antes de qualquer análise musicológica. Por isso, digo que minha pesquisa é estranha. Não estou na universidade olhando para o funk. Eu estou no funk olhando a universidade e olhando com estranheza.
Por isso, meu trabalho é estranho… é estranhador. A posição social de pesquisador me é estranha, a de funkeiro não. O que é questionável em uma universidade que o funk nos mostra? Não houve estudos musicológicos sobre o funk nos departamentos de música das universidades do nosso país até o final da primeira década do ano 2000. Isso é bizarro, pois o funk é, antes de tudo, música. E uma música de grande impacto social, por isso merece atenção. A pesquisa em música que ocorre nas universidades, e o ensino musical em conservatórios, não têm interesse algum (há até desprezo) pela música do mundo real, a música que é realmente ouvida hoje.
Música de verdade nesses lugares é música de concerto de tradição europeia, o que se chama popularmente de música clássica. Ou seja, a música do homem branco de uma tradição judaico-cristã heteronormativa que representou, historicamente, as igrejas, a aristocracia e a burguesia europeia – isso deixa as mentes vira-latas do nosso Brasil com muito tesão.
“A teoria musical é racista”, como afirmou o musicólogo norte-americano Philip Ewell no seu artigo Music theory and the white racial frame [em tradução livre, ” Música, teoria e o enquadramento racial branco “], que causou polêmica em 2020. Só há espaço para ídolos brancos e uma concepção branca de música em universidades e instituições de ensino musical formal. Para que a música preta apareça, é preciso que os artistas pretos já estejam mortos: jazz, blues, samba raiz, capoeira, jongo… A branquitude adora artistas pretos mortos, talvez porque não houve convívio com eles.
Ensino de música em universidade é projeto ultraconservador. Aliás, falo aqui dos departamentos de música das universidades, mas a própria universidade é um lugar conservador que resiste à mudança, apesar de vender a imagem de inovadora, como mostra o livro Outra universidade (Paco, 2011), de Pedro Demo. Sendo conservadora, a universidade não deixa de ser heterogênea. Há campos do conhecimento muito sintonizados e interessados no presente, e isso costuma ocorrer nas ciências sociais. Acreditem: o primeiro mestrado sobre o nosso movimento funk foi escrito pelo antropólogo Hermano Vianna, em 1987, dois anos antes de o DJ Marlboro lançar o primeiro LP da história do funk brasileiro.
O funk é estudado por cientistas sociais, linguistas e jornalistas há muito tempo. Músicos e musicólogos, crias de uma estrutura de ensino colonialista/racista, não veem estilos como o funk como algo que seja digno de ser analisado. E há muito pouco interesse social nos sons do funk. Falar sobre tabus sexuais, crime e drogas desperta mais facilmente o interesse público, mas os sons, que são a causa das impressões geradas, ficam em segundo plano.
Foi de uma percepção pessoal de que a universidade precisa ser mais autocriticada; foi de uma percepção de que os julgamentos que o funk recebe falam, na verdade, sobre a classe social de quem o julga; e foi de uma percepção de que é necessário falar da MÚSICA funk que comecei a compartilhar minhas pesquisas nas redes sociais, no @canaldothiagson. Com o crescimento nas redes sociais, veio o convite para uma publicação pela Tipografia Musical, que é uma editora de música clássica. Assim nasceu o livro Tudo que você sempre quis saber sobre funk… mas tinha medo de perguntar (2023), título sugerido pelo editor em referência ao filme do Woody Allen Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar (Estados Unidos, 1972).
Sendo o autor do primeiro livro brasileiro de funk escrito por um músico, percebi ao longo do processo que o desafio que me interessava era o de fazer um livro sobre funk chegar na favela. Entendi que o jeito ortodoxo como se faz um livro não comunica às pessoas do funk e às pessoas das favelas. O funk, o jeito favela, vai estar no conteúdo e na forma – o livro é bem papo reto, com muitas imagens, prints, QR codes para acesso aos links, áudio capítulo para que o conhecimento musical do funk seja ouvido, experienciado. Ele contou com o trabalho de mulheres na produção e revisão. A jornalista Glória Maria [articuladora cultural em Paraisópolis, onde mora], por exemplo, fez a foto de capa do livro com imagens do Baile do Bega.
A ideia de escrever e publicar esse livro foi a de construir uma ponte entre o que é produzido na universidade sobre funk e as pessoas do funk. Quero retribuir o que as periferias me ensinaram.
A EDIÇÃO DE ABRIL/24 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de ABRIL/24 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.