Mensagens e imagens disseminadas diariamente pelas redes sociais reforçam: “Olhe para o lado bom das coisas”; “Ignore a tristeza e siga em frente”; “Seja positivo”. Ditas assim, parecem inofensivas ou até mesmo encorajadoras. No entanto, quando impostas a todos e em todo e qualquer episódio da vida, elas podem revelar o que está sendo estudado e foi denominado por especialistas da área da saúde como “positividade tóxica”. “O pensamento positivo é mais do que um estilo de vida, é um negócio que há muito tempo movimenta milhões, desde comunidades ditas alternativas até perigosas seitas, workshops ou vivências, cursos transformadores ou livros de autoajuda, presentes em massa nas grandes cadeias de livrarias e, mais recentemente, todo tipo de tutoriais online”, observa o psicanalista Paulo Carvalho, professor de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
E esse fenômeno, como destaca Carvalho, foi potencializado pelas redes sociais, “onde mostrar-se é muito mais importante do que realmente ser”. Nessa cultura, ressalta o professor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Kupermann, “os incomodados, aqueles que não gozam da vida que têm, são rapidamente considerados doentes, sutil ou explicitamente afastados dos holofotes da visibilidade e convidados a tratar da sua ‘negatividade’ com medicamentos e psicologias positivas”. Como delimitar as fronteiras entre o agir conscientemente de maneira positiva e o agir de forma negacionista em prol de um comportamento “positivo”? Afinal, o que é a positividade tóxica?
Não há dúvida de que uma atitude positiva e otimista pode ser saudável. A alegria já foi considerada por médicos e filósofos como um afeto poderoso, um antídoto para a tristeza e a dor, e até mesmo uma virtude. Mas só quando se trata de uma alegria genuína, um estado de fato experimentado. O problema é quando essa atitude se torna uma obrigação, independente do que realmente se sente. Essa crença que um inabalável estado feliz e otimista é alcançável, saudável e adequado mesmo diante das dificuldades da vida tem sido chamado de positividade tóxica.
No fundo, a positividade tóxica se refere ao estabelecimento de mais um padrão de normalidade, que causa sofrimento e consequentemente estresse. Segundo o filósofo francês Georges Canguilhem, sempre que uma norma é estabelecida, há um julgamento de valor virtual. Neste caso, o polo positivo, que abarca valores desejáveis como a vida saudável, a prosperidade e a felicidade plena, é definido em oposição ao outro polo, o negativo, no qual são despejadas as experiências humanas, desvalorizadas pela sociedade. Dito de outro modo, essas últimas não são necessariamente experiências negativas em si, mas assim definidas numa relação com a norma.
Já a positividade não passaria de um tipo ideal ou uma referência sem realidade empírica, cuja única razão de ser é estabelecer um parâmetro mais elevado do que a existência. A finalidade desse parâmetro é, na maioria das vezes, motivar algum tipo de consumo: cartilhas do bem viver, mas também roupas e acessórios, aparelhos eletrônicos, procedimentos estéticos, bens que são símbolos de status, experiências vip, entre outras promessas de felicidade.
O pensamento positivo é mais do que um estilo de vida, é um negócio que há muito tempo movimenta milhões, desde comunidades ditas alternativas até perigosas seitas, workshops ou vivências, cursos transformadores ou livros de autoajuda, presentes em massa nas grandes cadeias de livrarias e, mais recentemente, todo tipo de tutoriais online. Assim, não se trata de um fenômeno criado pelas redes sociais, mas sobretudo potencializado por elas, onde mostrar-se é muito mais importante do que realmente ser.
Além disso, mostrar-se sempre positivo coaduna com a exigência de produtividade, típica da sociedade capitalista e, de modo particularmente especial, com o american way of life (estilo de vida americano). Positivo é sinal de bem-sucedido e, segundo essa lógica, também atrairia o sucesso. A atitude sempre positiva seria, portanto, aquela própria dos vencedores. Essa ideia recobre não apenas os privilégios e as condições materiais de base, como também os esforços e sacrifícios feitos em nome dessa mesma prosperidade. Otimismo dificilmente substitui formação acadêmica de qualidade, cursos de especialização e atualização, rede de contatos profissionais, disciplina, muitas horas dedicadas ao trabalho etc.
Pode-se cogitar, inclusive, sobre uma espécie de pensamento mágico fantasioso: “Basta pensar positivo que tudo ficará bem”; “Basta parecer feliz e saudável que assim serei”. Tal atitude positiva, em princípio, não faz mal, mas também não substitui o cuidado de si necessário para preservar, aumentar ou restabelecer a saúde, por exemplo.
Parece que está em jogo o chamado princípio do prazer, segundo o qual tudo que causaria algum tipo de desprazer seria motivo de fuga ou negação. Contudo, a repressão psíquica de desejos e sentimentos exige um alto dispêndio de energia e, muitas vezes, o conteúdo reprimido acaba retornando na forma de sintomas, como já nos ensinou Freud, há mais de cem anos. Ou seja, reprimir sentimentos considerados negativos, como raiva e tristeza, pode ser muito nocivo à saúde mental, com efeitos nefastos também para a saúde do corpo.
A tristeza, por mais desagradável que seja, pode ser a expressão de uma necessidade psíquica. Está intimamente relacionada ao luto. E o luto é uma reação normal e necessária à perda de uma pessoa querida, ou mesmo da pátria, da liberdade ou de um ideal. Como não se entristecer, pelo menos um pouco, quando estamos rodeados de tantas perdas humanas durante uma pandemia tão arrasadora, como a que vivemos atualmente?
É quase como se vivêssemos num cenário onde é proibido estar triste. Entretanto, a tristeza ou negatividade que preocupa é aquela excessiva e permanente ou quando chega a impedir a realização das atividades cotidianas. Ela não deve ser ignorada ou soterrada por uma infinidade de práticas esportivas da moda, compras frenéticas, festas “hypadas” ou viagens a localidades “instagramáveis”. Pelo contrário. Eis aí um sinal que é necessário procurar algum tipo de ajuda psicológica.
Outro problema desse tipo de compartilhamento massivo de um ideal positivo inalcançável é que as pessoas tendem a se comparar umas com as outras. As mídias sociais não são o único meio, mas se tornaram um recurso praticamente irresistível para uma constante comparação que pode gerar muito sofrimento. Como aceitar seus momentos menos positivos quando outros exalam tanta felicidade?
Numa cultura em que não se pode demonstrar os afetos genuínos, as pessoas, mesmo constantemente expostas, sentem-se profundamente solitárias. É muito comum escutar no consultório, dos pacientes em análise, que eles só podem realmente se abrir, falar de determinados assuntos que os angustiam ali nas sessões, pois seus seguidores, contatos, colegas, amigos e até mesmo familiares não toleram afetos negativos e logo recomendariam que eles reforçassem sua atitude positiva. Assim, esse ideal compartilhado, ao invés de cumprir o que promete, acaba se tornando mais um motivo de solidão e sofrimento.
Há décadas as seções de “autoajuda” das livrarias ao redor do mundo são as mais concorridas. Com as vendas online, a literatura que nos ensina a fazer amigos, liderar equipes de trabalho, emagrecer, comunicarmo-nos sem mal-entendidos, conquistar amantes, manter casamentos e enriquecer, continua sendo um sucesso. Esse fenômeno é sincrônico com o estágio avançado do capitalismo que vigora em nossas sociedades, o neoliberalismo, que tem como balizas subjetivas as concepções de que o indivíduo é o responsável único pelo seu sucesso – necessitando ser um verdadeiro “empreendedor de si” –, e que esse mesmo sucesso tem como métricas a popularidade e a riqueza, segundo as quais é definido o valor merecido por cada um de nós.
Com o advento da internet e com a disseminação ilimitada das redes sociais esse fenômeno foi bastante incrementado. Se os livros de autoajuda – ou os tablets que os continham – eram acessados na cama antes de dormir ou em momentos de lazer ou inação, como o tempo despendido em transportes públicos ou aviões, as redes sociais se imiscuíram em todos os minutos em que olhamos para a tela de um celular. Ou seja, somos bombardeados ininterruptamente por imagens de pessoas mais ou menos conhecidas “desfrutando” as delícias da nossa vida civilizada. Fotografias de pratos apetitosos, selfies de gente ativa, magra e saudável correndo ou malhando, de aglomerações festivas nas quais reluzem multidões de dentes clareados, de lolitas expondo sua beleza executando coreografias a um passo da pornografia.
Desse modo, um antropólogo extraterrestre que tomasse conhecimento dos habitantes do planeta neste início do século 21 por meio do Instagram e do TikTok provavelmente pensaria que se deparou com uma espécie imortal, imune à doença e à dor, que se dedica a celebrar um novo Deus da alegria que habita as mãos de cada terrestre na forma de um retângulo luminoso e, por vezes, barulhento.
Se o parágrafo acima roubou um sorriso do leitor, é porque foi bem-sucedido em ilustrar – de forma caricatural, evidentemente – o fenômeno da positividade tóxica que caracteriza a cultura contemporânea globalizada, na qual somos exigidos ao trabalho ininterrupto para, como recompensa, consumir os bens que nos são por ela oferecidos e que têm como propósito promover a felicidade perene. Nessa cultura, os incomodados, aqueles que não gozam da vida que têm, são rapidamente considerados doentes, sutil ou explicitamente afastados dos holofotes da visibilidade e convidados a tratar da sua “negatividade” com medicamentos e psicologias positivas, evitando qualquer risco de contaminarem a onda de felicidade que assola o parque de diversões neoliberal.
Um exemplo para tornar mais claro o problema é o do célebre personagem da nossa cultura cômica popular, o Juquinha, aquele aluno que sempre constrange a professora com obscenidades no final da piada. Ora, o mote dessas anedotas é o conflito inexorável indicado por Freud entre os sacrifícios impostos pela vida civilizada – representada pela autoridade da professora – e os desejos insatisfeitos de cada um de nós, encarnados pelo Juquinha.
No cenário atual, o mais provável é que o Juquinha fosse diagnosticado com TDAH (Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) e medicado com Ritalina! Sim, nas nossas sociedades contemporâneas o aluno se tornou um consumidor e deve escolher, avaliar e aprovar a escola. E ai daquele que decide não querer “amar” a vida escolar… A positividade tóxica começa a ser ensinada bem cedo às nossas crianças.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han descreveu o fenômeno segundo o qual a sociedade de desempenho contemporâneo nos exige uma vigília e uma dedicação permanente à nossa persona pública. O sujeito contemporâneo teria incorporado uma instância de auto avaliação bastante severa tornando-se uma espécie de patrão de si mesmo – uma exacerbação do que Freud chamou de superego tirânico ainda na primeira metade do século 20. De fato, vive-se com o sentimento de uma espada sobre a cabeça; com os estados nacionais cada vez mais submetidos à lógica do mercado, deixamos de confiar no amparo e na segurança social, o que aumentou consideravelmente o sentimento de angústia e desalento, tornando-nos escravos do nosso próprio esforço e desempenho.
Com a pandemia da Covid-19, o que foi, no início, a promessa de um distanciamento das injunções sociais se tornou o pesadelo, uma intrusão inédita para aqueles que puderam permanecer e trabalhar em casa. Os universos da escola e do trabalho invadiram o espaço antes protegido da casa, e o número de horas dedicadas às tarefas públicas aumentou consideravelmente. E-mails e [mensagens no] WhatsApp eram enviados a qualquer hora do dia e da noite; fins de semana e feriados foram desconsiderados.
A presença do trabalho recaiu sobre nós como se fosse uma entidade sobrenatural onipresente, e a queixa de cansaço passou a ser escutada diariamente. Nesse sentido, o que Byung-Chul Han descreveu antes da pandemia se tornou profecia: o burnout, antes restrito às empresas, invadiu a vida privada de crianças e adultos, configurando uma verdadeira sociedade do cansaço.
O Brasil de Mário de Andrade, que tinha na preguiça uma virtude anticolonial e anticristã, se tornou símbolo mundial de uma nação exaurida pelo acréscimo de sofrimento causado pelo negacionismo institucionalizado e pela confusão geral provocada pelas declarações irresponsáveis do presidente e de membros do governo, que dificultam, se não impedem, o trabalho de luto de milhares de cidadãos que perderam parentes e amigos dentre as mais de 600 mil mortes de brasileiros causadas pela Covid-19.
De fato, como realizar o penoso trabalho de luto quando estamos imersos em um ambiente negacionista? O negacionismo é a mais recente e nefasta figura da positividade tóxica; e também a mais letal. Ao menosprezarem, como estratégia para se desresponsabilizarem das suas funções públicas, o potencial mortal do novo coronavírus e a importância das medidas sanitárias de proteção, os discursos proclamados por membros do governo brasileiro tiveram como efeito perverso a responsabilização e a culpabilização das vítimas, de acordo com o mecanismo da identificação com o agressor formulado pelo psicanalista Sándor Ferenczi.
Ou seja, as pessoas adoecidas pela “gripezinha”, bem como seus familiares, experimentaram um “mais-sofrimento” por estarem doentes (e por morrerem, se fosse possível a um morto sentir culpa ou vergonha), como uma espécie de reificação tupiniquim da “seleção natural” darwiniana, segundo a qual as espécies menos adaptadas merecem desaparecer em prol do triunfo das mais adaptadas. Esse fenômeno dificulta a elaboração das perdas – que foram muitas, não apenas de vidas, mas de empregos, relações pessoais etc. – e do trabalho de luto necessário àqueles para os quais a vida continua e deve retomar seu curso criativo.
Nesse sentido, percebe-se que a positividade tóxica negacionista incrementa o narcisismo de todos e compromete a experiência da empatia no nosso tecido social. Recapitulando o que vimos com relação ao way of life (estilo de vida) positivo tóxico imposto pela ordem neoliberal: se todo sucesso ou fracasso é concebido como mérito individual, se não temos com quem contar senão com nós mesmos, se o Estado se desresponsabiliza pelos cidadãos mais vulneráveis, se as perdas ou mesmo a morte é experimentada como fracasso pessoal, nossa sensibilidade em relação ao sofrimento do outro se vê bastante diminuída. Afinal, seu sofrimento é naturalizado como efeito previsível da sua incompetência, enquanto o nosso sucesso é o resultado do nosso mérito pessoal. Isso até que o espelho da positividade neoliberal nos faça reconhecer no outro, nós mesmos, amanhã.
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