Povos indígenas e o ensino da escuta

27/11/2024

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 Márcia Wayna Kambeba – Graduada em Geografia (UEA), Mestre em Geografia (UFAM), Doutoranda em Estudos Linguísticos – (UFPA), poeta, escritora, palestrante de assuntos indígenas e ambiental, contadora de histórias, compositora, educadora, pesquisadora do seu próprio povo.

Ilustrações de Aline Bispo – Multiartista visual, ilustradora, curadora do Acervo Ibirapitanga e colunista do Nós, mulheres da periferia. Em suas produções, investiga temáticas que cruzam a miscigenação brasileira, gênero, sincretismos religiosos e étnicos. Tem obras expostas e/ou presentes em importantes acervos de arte brasileira.

Os povos indígenas sabem que a escuta é fundamental para o aprendizado. Desde criança somos ensinados a silenciar para ouvir mais do que falar. Na escuta contemplativa da natureza, a criança vai aprendendo com os passos, as árvores, o rio e com tudo que está à sua volta. Deixar a criança na mata para aprender com os pássaros pelo processo da escuta é necessário, levar a criança para compreender os ensinamentos do rio contribui para que a criança cresça confiante de si e nas águas e consiga sobreviver as adversidades da vida na sua caminhada.

Na sociedade não-indígena falta tempo para ouvir. A vontade é de falar mais e ouvir menos. Na cultura Omágua/Kambeba por exemplo se aprende a falar e ouvir, só que nessa se ouve mais e falamos menos. A esse processo de escuta profunda vamos chamar de kumiça-jenó (“falar e ouvir”). Falam os anciões e escutam os mais jovens.  

Vamos escutar o rio? Meu pai na aldeia em que nasci me levava todos os dias para escutar a natureza, íamos juntos aprender os ensinamentos do rio. Mas, o rio fala? O rio tem memória de ancião, sabedoria de tataravô, e para ter essa conexão, precisamos de uma escuta dedicada e atenta, específica, eu diria, das vozes que ecoam das profundezas da terra, do fundo dos rios e das entranhas das matas, vozes da natureza. Os povos indígenas compreendem e sabem manter essa boa relação, tanto que, de cócoras, ficávamos por horas, eu e meu pai, contemplando e ao mesmo tempo ouvindo o solapamento das águas nas barrancas da aldeia. 

No meu entendimento de menina eu não compreendia por que tínhamos que ficar horas acocorados olhando o rio. Mais tarde entendi que meu pai, no silêncio contemplativo, me ensinava que o rio tem uma pedagogia e é preciso saber ouvir. É preciso querer escutar, ter concentração para compreender as sabedorias que provém da natureza. Treinados na profundeza de escutar o outro estaremos aptos a ouvir os sábios anciões por horas sem interrupção. 

Ilustração de Aline Bispo sobre escuta e povos indígenas
Ilustração: Aline Bispo

Outro exemplo que partilho se dá na cidade, quando deixei a aldeia e fui viver com minha família. Minha avó Assunta me dizia: “vá ouvir as histórias de seu bisavô”. Ainda menina não entendia bem o porquê de ter que ouvir todo dia meu avô contar as mesmas narrativas, mas obedecia. Hoje compreendo que minha avó não queria que eu perdesse os ensinamentos e as práticas aprendidas na aldeia Belém do Solimões, onde a criança tem que ouvir os mais velhos. As histórias de meu avô e minha avó hoje me ajudam a não perder o foco da caminhada rumo a terra sem males e fortalece minha afirmação e identidade contribuindo para literatura que produzo.

Na aldeia Tururucari-Uka, do povo Omágua/Kambeba, as crianças têm aulas de escuta das narrativas contadas e recontadas pelos anciões. Sempre à tardinha as crianças vão chegando e se sentando perto do ancião para ouvir as histórias, e ficam prestando atenção para não perder um detalhe. Os adultos também chegam para dessa roda participar. Essa prática é um exercício para quem desaprendeu a ouvir mais do que falar.  


Na escuta contemplativa da natureza, a criança vai aprendendo com os passos, as árvores, o rio e com tudo que está à sua volta.


Vivemos tempos agitados onde o barulho da vida na cidade atrapalha nossa concentração e nos impede de buscarmos uma conexão e aprendermos com a simplicidade das coisas que estão presentes no território, em casa, pertinho, ao nosso redor. Estamos sempre com muita pressa e por isso vivemos uma vida inquieta, perdemos a ligação com a espiritualidade e já não ouvimos os ensinamentos de nossos avós, anciões e sábios. Nem a comunicação com a natureza se busca ter. Um pássaro que canta apresenta signos de comunicação, uma territorialidade com a natureza, tem espírito de realeza, traz mensagens e presságios para partilhar com o humano. Estamos no tempo da tecnologia, da internet e da comunicação virtual. Isso, a meu ver, tem impactado na nossa sociedade que já cresce sem paciência para escutar narrativas necessárias para a vida.   

Os povos indígenas são detentores de uma profunda sabedoria, guardada por longos séculos como legado e que é transmitida através das narrativas, da oralidade, formando uma roda que representa a circularidade do tempo, porque na cultura indígena o tempo não é linear e sim circular, obedecendo as orientações da natureza. É preciso ouvir para entender os signos de comunicação que a natureza usa para se comunicar. É preciso respeitar o tempo das coisas e o tempo do saber de cada pessoa. O canto do pássaro pode significar sinais bons ou ruins e isso vai depender do tipo de pássaro que se apresentar pelo caminho. Essa sabedoria está presente no entendimento de sagrado que os povos indígenas têm. As rezas, cantos de benzimento, rituais, tudo isso é singular para cada povo.   

Nessa circularidade, a escuta é necessária para fortalecer nossa identidade de povo, compreendendo que a escuta pode ser também uma estratégia de resistência para que não se perca a essência de viver em comum unidade na partilha do que é necessário para o fortalecimento da nossa existência e assim se possa criar um território da afetividade e da escuta contemplativa. Precisamos silenciar mais do que falar para ouvir os entes que, num diálogo de mundos, se comunicam com aqueles que buscam profundamente essa comunhão.  


Precisamos silenciar mais do que falar para ouvir os entes que, num diálogo de mundos, se comunicam com aqueles que buscam profundamente essa comunhão.  


Lembro de quando morava na aldeia Belém do Solimões, no Alto Solimões (AM), me sentava debaixo da maqueira da minha avó para ouvir seus ensinamentos sem interromper seu raciocínio e quando dava meia-noite um assobio fino e forte tomava conta da aldeia e minha avó dizia apressada: “É a Matinta. Vamos dormir, a Matinta está visitando a aldeia”. A história continuava no dia seguinte sempre à noite. Ter tempo para ouvir as narrativas dos anciões é fundamental para manutenção de nossa memória viva, pois, ainda vivemos tempos de memoricídio que se traduz no extermínio da memória e isso é um agravante para que nossos jovens e crianças não tenham memória de um tempo passado. Entender o passado é fundamental para projetar bem o hoje.

Trouxe para exemplificar a figura da Matinta que é uma encantada da floresta. Contam nossos anciões que ela é uma mulher comum como tantas mulheres que vivem próximo aos rios, cuida da natureza e está sempre disposta a ajudar a quem precisa de um benzimento. Ela pode ser uma anciã, ter uma idade mais jovem, pode ser uma pajé. A questão é que ela foi encantada e recebeu a missão de proteger a natureza das várias formas de violência. Na cultura indígena, a Matinta não é bruxa, ela faz o bem sempre a quem procura o bem. Mas, se alguém faz o mal à natureza, ela trata de dar a punição necessária. Eu particularmente acredito na presença da Matinta porque ouvi seus assobios e sempre escuto narrativas de quem diz ter visto uma Matinta nesse século XXI. Nas minhas escritas literárias a Matinta é figura marcante e sempre vem como protetora da floresta, porque foi assim que eu ouvi de minha avó.  

Partilho um momento como educadora em que fui dar aula na aldeia Caruci do povo Arapium. O cacique e o pajé, ambos meus alunos, escolheram os locais de nossa prática de campo. Então, saímos cedo, iniciei com um momento nosso no rio, uma escuta coletiva como fazia meu pai comigo. Depois seguimos em direção à casa da dona Zenaide sempre abeirando o rio. Chegando, havia um recorte de rio, formando um pequeno lago dentro da imensidão de água que tínhamos a frente. Ali eles pararam e disseram: “é aqui a casa da dona Zenaide”. Foi uma surpresa para mim, um presente. Estavam me apresentando o território do sagrado deles, e ficamos em silêncio por um tempo, a pedido do pajé, e depois me pediram que conversasse com ela essa encantaria. Ouvir o rio para os Arapium é ouvir os entes, os encantados, as vozes que brotam de pontos sagrados e que se confia e acredita.  

Por fim, saber escutar necessita de treino, se ensina, e as crianças ainda pequenas são ensinadas por seus pais. Eles deixam a criança na mata e de longe ficam acompanhando para que elas aprendam a ouvir o canto dos pássaros, os sons de outros bichos e crie uma estratégia de comunicação. 


A conversa é uma forma de treinar a escuta de quem nos ouve. O que precisamos é desenvolver ferramentas que proporcionem uma conversa em que o outro tenha interesse no assunto.


Durante o período de contato, houve um período de proibição do uso das línguas indígenas, inclusive do nheengatu. Quem fosse encontrado falando na língua materna era surrado ou morto. As mulheres indígenas criaram uma estratégia para transmissão dos saberes, elas cochichavam no ouvido dos seus filhos e netos e catando piolho iam repassando ensinamentos e a língua materna também. Por isso, muitos povos mantêm o hábito de catar piolho para contar sobre fatos importantes ou mesmo sobre o dia que passou, além de ser um ato de acolhimento e cuidado.  

Que possamos praticar a arte de escutar o outro com atenção e aprender com os ensinamentos. Sempre me perguntam: como fazer a criança da cidade ter curiosidade ou vontade de ouvir, a exemplo das crianças da aldeia? Meu pensamento é que possamos começar conversando com elas, contando histórias não só para fazê-las dormir, mas para treinar sua escuta e atenção, e certamente o interesse virá. A conversa é uma forma de treinar a escuta de quem nos ouve. O que precisamos é desenvolver ferramentas que proporcionem uma conversa em que o outro tenha interesse no assunto. Aí está o desafio. Escutar faz bem ao coração. 

Ilustração: Aline Bispo

Memória viva


Minha velha avó
Quero ouvir tuas memórias
Saber de tuas histórias
Guardadas no coração
Conte como sobreviveu
Ao genocídio do invasor
Ao governo da língua
Que proibiu a fala Tupi
E nos obrigou a aprender o português
Diga minha velha
Tuas estratégias de persistência
Sussurrada no ouvido
Numa escuta de resistência
Quero ser continuidade
Desse Brasil Pindorama
Desse povo que clama
Invasão nunca mais!
Resistência já!
É preciso escutar
Para saber o que falar
Ter memória para contar
Nesse tempo linear
Ouvir uma velha samaúma
Contar de sua aflição
Por ver tantas árvores
Cortadas pela exploração
Ouvir o rio
Que em velho se tornou
Tirar seu chapéu de carnaúba
E na proa da canoa
Contar causos de encantador
Silenciar para escutar
O choro da terra
A dor de ser cortada
Por fronteiras de mineração
Fruto da ganância e ambição
Escutar os encantados
A Matinta assobiar
Ouvir do Curupira
Conselhos do bem-viver
Entender que sou um ente
Que precisa ouvir e aprender
É preciso escutar
É preciso silenciar
Para ter sabedoria
Para ouvir basta calar
E deixar o sagrado ensinar
Salve a memória contada
A escuta que educa
pelos saberes dos anciões
Salve os livros de memória
Que estão guardados no coração
E se abrem para falar segredos de geração a geração

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