Dentro do tema Exercícios do Cuidar na Primeira Infância – Políticas Públicas, o Cuidar de Quem Cuida traz o texto de Laureane Costa, psicóloga e pesquisadora sobre a prevenção à violência sexual contra crianças, chamando a participação da sociedade como um todo no entendimento dessa questão ainda pouco implementada enquanto políticas públicas de proteção e garantia de direitos das crianças, assim como de formação aos profissionais que atuam com este público.
Laureane Lima Costa
A violência sexual contra crianças é um assunto difícil de abordar, embrulha o estômago e desperta um misto de raiva e tristeza. Você também sente isso? Mesmo que seja duro entrar em contato com esse tema, peço que me acompanhe nessa conversa, pois encarar que essa realidade existe é o primeiro passo para transformá-la.
O fato principal e talvez mais doloroso que precisamos reconhecer é que, geralmente, o abusador não é um desconhecido com aparência estranha e estereótipo de perigoso como a figura do “homem do saco” sobre o qual costumamos instruir as crianças para tomarem cuidado.
“Quem é então o abusador?”, você pode estar se perguntando.
Em quase 70% dos casos, o abusador é alguém do convívio da criança, muitas vezes, alguém por quem ela sente carinho e confiança, alguém que se aproveita disso para coagi-la e abusar dela. A contradição aí posta, de uma relação supostamente de proteção, mas de extremo desequilíbrio de poder, favorece a manutenção do silêncio. Do silêncio da criança. Do silêncio dos demais adultos próximos. Até mesmo do nosso silêncio, possivelmente. Dados do Ministério da Saúde revelam que mais da metade (51,2%) das vítimas de violência sexual na infância têm de 1 a 5 anos de idade e cerca de 70% dos abusos ocorrem na casa da vítima ou do abusador. Assim, a casa, ao invés da rua, se apresenta como o local de maior perigo, sobretudo para as meninas. Das vítimas de violência sexual, 74,2% são meninas e 25,8% são meninos. Por outro lado, mais de 80% dos abusadores sexuais são homens. O que essa disparidade desperta em você?
A casa reproduz o desequilíbrio de poder da sociedade em que vivemos, que educa o homem para dominar, educa a mulher para se submeter e educa a criança para obedecer a ambos, sem questionar. A violência sexual contra crianças reflete as desigualdades de gênero, de geração e também de classe. Embora o abuso ocorra em todas as camadas sociais, o abusador branco e rico tem mais chances de que seu segredo permaneça escondido por mais tempo. As crianças estão ainda mais vulneráveis nessa pandemia que temos enfrentado, com plano de vacinação demasiadamente lento, sobretudo para as crianças. Desde o início da pandemia da covid-19, houve uma diminuição significativa das denúncias de abuso ou negligência. O que não quer dizer que a incidência de violência diminuiu, o que diminuiu foi a oportunidade de identificação e denúncia, já que muitas crianças ficaram em casa por até cerca de dois anos – e as escolas e centros comunitários de convivência são os principais parceiros de identificação e denúncia da violência contra crianças.
Como você está se sentindo ou o que você está pensando até aqui?
Eu preciso que você tenha esperança de que é possível mudar essa realidade. “Como?”, talvez você esteja se perguntando. É complexo, admito, pois precisamos de intervenções em várias frentes. O passo inicial demos aqui, reconhecemos que a violência sexual contra crianças existe, que as crianças menores são as vítimas mais frequentes e que o abusador é uma pessoa comum, geralmente homem e da convivência da criança.
Agora, precisamos do Estado comprometido com a garantia dos direitos das crianças, o que perpassa pelo fortalecimento da rede de proteção e investimento nos serviços públicos, gratuitos e de qualidade. Precisamos de uma educação crítica e reflexiva, na escola e fora dela, que questione a distribuição desigual de poder e, assim, rejeite a hierarquização das pessoas – pois é isso que autoriza que a menina seja considerada propriedade do homem adulto, objeto ao invés de sujeito.
Precisamos falar sobre educação sexual, nos dispor a compreender o que ela realmente é e desfazer as mentiras que só beneficiam os abusadores. Para isso, pode ser que precisemos nos reeducar sexualmente, lembrando de que forma aprendemos a pensar sobre o corpo, o nosso e o das outras pessoas, resgatando na memória se aprendemos e como aprendemos a identificar relações respeitosas e desrespeitosas.
Desse modo, vamos conseguir conversar com as crianças com honestidade, responsabilidade e delicadeza sobre o corpo humano, ajudá-las a nomear as partes íntimas. Lembrá-las, sempre que oportuno, que elas têm o direito de recusar qualquer tipo de contato e de quaisquer pessoas em seu corpo – isso não significa ser mal-educada. Precisamos ajudá-las a identificar uma pessoa responsável, com a qual possam contar quando precisarem.
Precisamos também uns dos outros, para que façamos um compromisso pelo rompimento do silêncio. Assim, poderemos ser as pessoas responsáveis com as quais as crianças poderão contar quando precisarem.
Lembre-se: em caso de suspeita de violência contra crianças e adolescentes, disque 100. Ou use os aplicativos Direitos Humanos Brasil ou SOS Brasil Criança.
Referências:
ABRAPIA [Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência]. Abuso sexual: mitos e realidade. Petrópolis: Autores & Agentes & Associados, 2002.
ARAÚJO, M. F. violência e abuso sexual na família. Psicologia em Estudo, v. 7, n. 2, p. 311, 2002.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Análise epidemiológica da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2011 a 2017. Boletim Epidemiológico, v. 49, n. 27, p. 1-17, 2018.
FIOCRUZ [Fundação Oswaldo Cruz]. Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia covid-19: violência doméstica e familiar na covid-19. Ministério da Saúde, 2020.
SANTOS, B. R., IPPOLITO, R. Guia de referência: construindo uma cultura de prevenção à violência sexual. São Paulo: Childhood Brasil, 2009.
SPAZIANI, R. B., MAIA, A. C. B. Educação para a sexualidade e prevenção da violência sexual na infância: concepções de professoras. Revista Psicopedagogia, v. 32, n. 97, p. 6171, 2015.
UM crime entre nós. Direção de Adriana Yañez. Videocamp, 2020. Documentário (59 min.).
Laureane Marília de Lima Costa: psicóloga, consultora em Saúde e Educação Sexual, especialista em Psicoterapia Analítico-Comportamental (IGAC), mestra em Educação (PPGE/UFJ). Coautora do jogo “Trilha da Proteção”, que compõe os materiais didáticos do livro Pipo e Fifi. Pesquisa a interlocução dos campos da Educação Sexual Emancipatória e dos Estudos Feministas da Deficiência. Desenvolve projetos de prevenção ao sexismo, ao heterossexismo, ao capacitismo e de violência sexual.
Cuidar de Quem Cuida é uma ação realizada pelo Sesc São Paulo desde 2018 e, atualmente, tem duração de sete meses, entre setembro e março. O objetivo é sensibilizar e inspirar pessoas, comunidades e instituições sobre assuntos relativos aos cuidadores e cuidadoras de bebês e crianças de 0 a 6 anos e as implicações do ato de cuidar.
As temáticas acolhem assuntos transversais referentes às diversas realidades do cenário contemporâneo, trazendo ao debate contextos e construções sociais para serem revisitados. Na 1ª edição (2018/2019), o tema Paternidades foi o norteador das reflexões. Na 2ª edição (2019/2020), foi escolhido o tema Maternidades. A 3ª edição (2020/2021) trouxe como tema Redes de apoio e cuidados que, em decorrência da complexa realidade da pandemia COVID-19, contou com a produção de conteúdos online, assim como a 4ª edição (2021/2022), Exercícios do Cuidar na Primeira Infância – Políticas Públicas.
Saiba mais sobre o Cuidar de Quem Cuida em: sescsp.org.br/cuidardequemcuida
#cuidardequemcuida_Sesc
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Crédito da ilustração: Paloma Santos
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