Presença ancestral

01/11/2024

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A força da arte de Léa Garcia, estrela que primou pela representatividade nos palcos e nas telas  

Por Manuela Ferreira 

Leia a edição de NOVEMBRO/24 da Revista E na íntegra

Nos anos 1960, a televisão brasileira dava, ainda, seus primeiros passos. Nesse período, os programas eram exibidos ao vivo e as telenovelas começavam a se consolidar como o principal produto da dramaturgia do país – para se tornarem, pouco depois, um dos expoentes da cultura nacional. O espaço para atrizes e atores negros era, contudo, escasso, e os papeis oferecidos costumavam reforçar estereótipos. Foi nesse cenário desafiador que emergiu Léa Garcia (1933-2023), uma artista de talento inquestionável e um dos nomes pioneiros a desbravar novos caminhos para a representatividade negra na TV, cinema e teatro. Sua trajetória, no entanto, já era marcante àquela altura. Em 1959, ela havia conquistado plateias por sua atuação no clássico Orfeu Negro, dirigido pelo francês Marcel Camus (1912-1982) e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro e da Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano.  

Pelo trabalho, a intérprete foi indicada à Palma de melhor atriz. Nas sete décadas de carreira que viriam a partir daquele momento, diversos outros prêmios e homenagens a esperavam. Mas sua contribuição às artes foi muito além, e se refletiu especialmente na popularização das telenovelas, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. “Léa Garcia, Ruth de Souza (1921-2019), Chica Xavier (1932-2020), Milton Gonçalves (1933-2022), Jacyra Silva (1940-1995), Zeni Pereira (1994-2002) e Zezé Motta, entre outros nomes, contribuíram para – com muita garra, determinação e talento –, mostrar o Brasil aos brasileiros, em meio a um período em que se encobria a presença negra em nossa sociedade”, analisa o pesquisador, consultor e escritor Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP).  

Entre cenas e lutas  

Segundo Alencar, ainda que em número pequeno, foi esse coletivo de talentos que ajudou a fomentar a telenovela brasileira na indústria cultural, promovendo sua modernização e uma importante propagação do Brasil no mercado estrangeiro. “Devemos a esse grupo o que vemos hoje em nossa teledramaturgia: o caldeirão racial que formou o Brasil e que constitui a sociedade de nosso país”, reflete o pesquisador. Léa Garcia, conforme explica Alencar, se destacava por atuações sólidas, nas quais imprime força e carisma com o olhar e o corpo esguio, seja através de personagens como Elza, de Selva de Pedra (1972), Dalva, de Assim na Terra como no Céu (1970) ou a inesquecível vilã Rosa, de Escrava Isaura, produzida pela TV Globo em 1976.  

“Por trás de marcantes interpretações, construídas com paixão, estava a leitura meticulosa da mulher e atriz, misturando diversas estéticas da arte de representar. Ora mergulhando com a memória emotiva de Constantin Stanislavski (1863-1938), ora criticando a atitude de uma personagem, a exemplo do proposto por Bertolt Brecht (1898-1956). Mas sempre falando e exprimindo suas emoções com o corpo, a parecer uma discípula de Jerzy Grotowski (1933-1999)”, esmiúça Alencar. Para ele, outro ponto alto da diversificada carreira da artista foi o papel da cantora e dançarina Josephine Baker (1906-1975) no lendário musical Piaf – A vida de uma estrela da canção, de 1983, imortalizado pela atriz Bibi Ferreira (1922-2019) no papel principal, e com direção de Flávio Rangel (1934-1988). “Todo esse processo artístico contribuiu para formar e impactar a construção da representatividade negra na teledramaturgia em geral. Em síntese, o que vemos hoje é fruto do ontem plantado com extrema dedicação e talento por nomes como Léa Garcia”, afirma o pesquisador.  

Sementes e frutos  

Os primeiros contatos de Léa Garcia com as artes cênicas aconteceram por intermédio de outra de suas paixões: a literatura. Filha de um bombeiro e de uma costureira, foi uma garota que se interessava pelos livros e pela escrita. Na adolescência, por incentivo do então namorado, o dramaturgo, diretor e ativista Abdias Nascimento (1914-2011), Léa mergulhou na leitura das tragédias gregas. Anos depois, a jovem subiu aos palcos pela primeira vez na montagem de Rapsódia Negra (1952), de autoria de Abdias Nascimento e encenada pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), histórica companhia cujo objetivo era promover a valorização da cultura afro-brasileira, ao passo que discutia questões raciais e sociais por meio do teatro.   


Léa Garcia e Abdias Nascimento, ativista, diretor e dramaturgo com quem foi casada, na peça Todos os filhos de Deus têm asas, no início da década de 1950.
Foto: Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã 

Em cena, a artista dançava e declamava fragmentos do poema “O Navio Negreiro”, do escritor baiano Castro Alves (1847-1871). Com o TEN, Léa Garcia estabeleceu sua vinculação com a militância antirracista. Isso norteou a recusa por alguns papeis estigmatizantes ao longo de sua carreira e a opção por narrativas, em sua maioria, de mulheres fortes e corajosas, a exemplo das personagens Cipriana, do filme Ganga Zumba (1963), dirigido por Cacá Diegues, e Laura, da série Arcanjo Renegado (2020), dos diretores José Júnior e Renan Ribeiro. Do casamento com Nascimento vieram os filhos Henrique Christovão Garcia do Nascimento e Abdias do Nascimento Filho. Seu terceiro filho, o empresário, produtor e diretor Marcelo Garcia, por sua vez, é fruto da relação com Armando Aguiar.   

Memórias permanentes  

Em depoimento à série Cada Voz, do Itaú Cultural, gravado em agosto de 2022, Léa Garcia fez uma reflexão enfática sobre como a questão racial seguia perpassando seu fazer artístico. “Eu não encontrei grandes dificuldades para atuar enquanto atriz. Encontrei discriminações. Encontrei preconceitos dentro das empresas televisivas, teatrais e cinematográficas (…). O racismo, no Brasil, não é declarado; ele é camuflado. É diferente. Eu senti discriminação, por exemplo, na rua. Isto é uma constante até agora. Se eu encosto, sem querer, em uma pessoa que não é negra ou tida como ‘branco brasileiro’, ela vê meu braço, encosta na bolsa. E, de repente, dão de cara com a atriz, e (a situação) se modifica. Se eu não fosse atriz, a discriminação continuaria”, disse.   

Nas recordações da atriz Maria Ceiça, Léa Garcia possuía muitas facetas: a atriz de brilho único, pioneira; a mãezona de todos, disposta a cuidar e dar afeto às pessoas que a rodeavam e a mulher dona de um bom humor peculiar e de irônicas e perspicazes observações sobre a vida. “Tenho saudades imensas das nossas conversas e risadas. Ela sempre deu de ombros e seguiu em frente, sendo ‘ela mais ela’, diante dos preconceitos que surgiam. Sei que a vida da Léa não foi fácil, como não é fácil a vida de atrizes brasileiras negras’, pontua Maria Ceiça.   

Tenho saudades imensas das nossas conversas e risadas. Ela sempre deu de ombros e seguiu em frente, sendo “ela mais ela”, diante dos preconceitos que surgiam. Sei que a vida da Léa não foi fácil, como não é fácil a vida de atrizes brasileiras negras.

Maria Ceiça, atriz

Léa Garcia (à direita) em cena de filme Orfeu Negro (1959), pelo qual foi indicada ao prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes no ano de estreia: o filme faz parte da mostra Léa Garcia – 90 anos, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB-RJ). Foto: Mostra Léa Garcia – 90 Anos / Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB-RJ) 

Dentre as muitas histórias compartilhadas pelas amigas, Ceiça destaca uma memória divertida: a ocasião em que Léa Garcia deu um “chá de cadeira” em um dos atores mais cobiçados do cinema norte-americano. “Ela contava que na época em que esteve em Cannes, o astro Sidney Poitier (1927-2022) ficou encantadíssimo por ela e a convidou para jantar. Apesar de maravilhada com o convite, acabou se atrasando, talvez por ter sido convidada para outro evento. E, quando finalmente chegou, ele disse que ela estava muito atrasada para o encontro, levantou-se e foi embora. Essa frustração de não ter jantado com o Poitier marcou a vida da Léa por muito tempo, mas ela contava esta história rindo, gargalhando e dando de ombros. Ela era isso, dava de ombros para os tropeços. Essa era a Léa Garcia”, define Maria Ceiça.  

Caminhos do futuro  

“Vi minha mãe atuar pela primeira vez aos quatro anos, no teatro. Depois a vi na novela Acorrentados, de 1969. Sentava na frente da televisão para assistir, quando chegava o horário da novela. Foi assim que entendi que, quando ela não estava comigo, estava gravando. Como éramos muito agarrados, para ela sair de perto de mim, tinha que ser escondido. Sempre foi emocionante assistir à minha mãe. Tenho a mesma emoção, desde criança até hoje”, conta Marcelo Garcia. É ele o mantenedor do acervo da atriz, a quem acompanhava de perto em seus últimos anos, período em que a mãe, embora octogenária, seguia trabalhando de forma ativa e ainda recebia diversos convites para atuar.   

“Dona Léa nunca parou. Atuou em cinema e televisão até o fim da vida. Mesmo após alguns meses acamada, por consequência de uma fratura na bacia, ela retomou o ritmo aos poucos, à medida em que se recuperava. Era muito vaidosa e tinha muitos planos futuros, entre eles a participação na nova versão da novela Renascer (2024)”, revela Marcelo Garcia. A despedida do tablado aconteceu em novembro de 2022, quando a atriz subiu ao palco do Sesc Santana, com o espetáculo A Vida Não É Justa. Ao seu lado estava outro ícone das artes cênicas, o ator Emiliano Queiroz (1936-2024). Entre os atuais projetos em homenagem ao legado da atriz está uma biografia, de autoria do pesquisador Mauro Alencar. A obra deve explorar a trajetória da artista sob a perspectiva de seu filho Marcelo. Outro livro, lançado em 2023, Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita: a trajetória e o protagonismo de Léa Garcia (Editora UEA), do professor e pesquisador Julio Claudio da Silva, também lança luzes sobre os trabalhos da artista.  

Já o cineasta Joel Zito Araújo está à frente da produção do documentário Léa Garcia, eu mesma. Joel Zito, por sua vez, dirigiu uma das grandes atuações da carreira da artista: o filme Filhas do Vento (2005), no qual ela contracenava com as atrizes Ruth de Souza, Taís Araújo e Maria Ceiça. Pelo trabalho, Léa Garcia foi homenageada no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, onde recebeu o Troféu Candango de melhor atriz coadjuvante, além de ter sido agraciada com o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Reconhecimentos não apenas pelo seu talento, mas também pela sua luta, tão fundamental na história do país.  

Por trás de marcantes interpretações, construídas com paixão, estava a leitura meticulosa da mulher e atriz, misturando diversas estéticas da arte de representar.

Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) 

A atriz em cena do filme O Forte (1974), dirigido e escrito por Olney São Paulo, exibido na retrospectiva Léa Garcia – 90 anos, em cartaz no CCBB-RJ até 4/11. Foto: Mostra Léa Garcia – 90 Anos / Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB-RJ)

Resistência e celebração  

Programações ao longo do mês inspiram reflexões e ações de artistas negros em diferentes linguagens em defesa da equidade racial  

Pioneira na luta por mais visibilidade negra nas artes, Léa Garcia questionou estruturas racistas e se tornou um dos ícones da resistência e da representatividade. Por meio de uma programação diversa, o mês da Consciência Negra no Sesc convida à reflexão sobre as histórias, a cultura e as lutas dessa população no Brasil. No Sesc Sorocaba, o projeto Iorubrá chega à décima edição, valorizando as contribuições africanas para a cultura brasileira e celebrando o protagonismo negro em oficinas, espetáculos e vivências.   


A encenação de Uma Leitura dos Búzios também faz parte da programação do SescTV no especial Consciência Negra, exibido neste mês. Foto: Matheus José Maria

O especial Consciência Negra no SescTV traz o documentário Jards (2013), do cineasta Eryk Rocha, que celebra a vida e o processo criativo do cantor e músico Jards Macalé. Já Histórias e Rimas, de 2009, conduz o espectador pelas narrativas de artistas de rap no Brasil e nos Estados Unidos. A direção é de Rodrigo Giannetto. Ao acompanhar o processo de composição do segundo disco do cantor e compositor Mateus Aleluia, o filme Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã (2020) conecta sua obra musical a memórias afetivas, explorando diferentes lugares e temporalidades. A encenação Uma Leitura dos Búzios, dirigida por Marcio Meirelles e Rafael Sacramento Grilo, por sua vez, oferece uma visão crítica sobre a Conjuração Baiana, a partir de texto de Mônica Santana e sob direção musical de João Milet Meirelles.  

SOROCABA

Iorubrá

Oficinas, espetáculos e vivências celebram as contribuições africanas na cultura brasileira.  

De 1º a 30/11. Mais informações em sescsp.org.br/sorocaba  

Especial Consciência Negra   

Jards (2013) – Direção: Eryk Rocha

Dia 15/11. Sexta, 22h.  

Histórias e Rimas (2009) – Direção: Rodrigo Giannetto  

Dia 16/11. Sábado, 22h.  

Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã (2020) – Direção: Tenille Bezerra  

Dia 22/11. Sexta, 22h.  

Uma Leitura dos Búzios – Direção: Marcio Meirelles e Rafael Sacramento Grilo  

Dia 23/11. Sábado, 22h.  

Mais informações: sesctv.org.br

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