Por André Nader
Psicólogo e pesquisador das áreas de saúde pública, saúde mental, reforma psiquiátrica, psicanálise e política. É autor do livro “O não ao manicômio: fronteiras, estratégias e perigos”, lançado em 2019.
Quando falamos no movimento de luta contra os manicômios e de reforma da psiquiatria no Brasil, precisamos, primeiramente, contextualizar as razões que produziram a necessidade de tais embates. Essa é uma longa história, com início há muitos séculos, e pode ser contada de diferentes formas: é a história de como a humanidade foi transformando as formas de perceber e nomear a loucura (que hoje chamamos de doença mental) e, com isso, os modos de lidar com ela.
Michel Foucault (1926 – 1984), um importante filósofo francês estudioso dessa (e de outras) histórias, quando aborda esse tema, escolhe começar contando sobre uma pintura de um navio: Stultifera Navis, de Hieronymus Bosch (1450 – 1516). Pintada por volta do ano 1495, a tela retrata um navio no qual todos aqueles classificados como insensatos eram reunidos e postos a navegar sem ponto de chegada certo, mas sempre pelo mesmo motivo: serem enviados para o mais longe possível. Foucault começa sua história revelando-nos duas importantes questões.
A primeira diz respeito ao conceito de loucura: louco era (e segue sendo, como discutiremos a seguir) aquele considerado um problema para as cidades. O filósofo nos mostra como todos os que incomodavam, pelos mais diversos motivos (e preconceitos), eram exilados. E já temos aqui o segundo ponto explicitado pelo francês, que escolhe começar sua história justamente no momento em que nasceram as práticas de exclusão da loucura, ou melhor, exclusão daqueles que eram vistos como problemas para as cidades.
A pintura de Bosch serve como ilustração de uma racionalidade e de um conjunto de práticas que Foucault explicita com riqueza de detalhes quando conta de outro momento da história, datado em meados do século XVI e nomeado como a época da Grande Internação.
Até o início do século XVI o maior representante da exclusão na Europa era o leproso. Era ele que tinha como destino grandes instituições afastadas das cidades e denominadas Hospitais Gerais que basicamente funcionam como locais para isolar os doentes das pessoas sadias. Com o declínio dessa doença, esses espaços começaram a ficar vazios, mas não por muito tempo. Rapidamente, e perpetuando os estigmas da lepra, esses locais passaram a ser ocupados por novas figuras: o pobre, o incapaz de trabalhar, a prostituta, o andarilho e o insano. Esse é o momento, segundo Foucault, em que “a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade” (Foucault, 2010, p. 114).
Nasce uma relação que se perpetua até hoje. Se fizermos um salto geográfico e histórico, saindo da Europa e rumando para o Brasil quatro séculos adiante, mais especificamente no ano de 1961, temos a famosa reportagem da revista O Cruzeiro intitulada “Sucursal do Inferno”. Nela o fotógrafo Luiz Alfredo, em companhia de seu parceiro, o repórter José Franco, foram recebidos pelas freiras que trabalhavam no Hospital Psiquiátrico Colônia, na cidade mineira de Barbacena, e fizeram o primeiro registro de memórias do horror. Foram três centenas de fotos registrando, em preto e branco, cenas abomináveis: pessoas nuas bebendo água do esgoto próximo a banheiros coletivos repletos de fezes e urina; urubus espreitavam o pátio em meio a um cheio detestável; em uma sala, corpos mortos em estado avançado de putrefação; noutra, feno fazia às vezes de camas tanto para as pessoas, quanto para as baratas e ratos que andavam pelo ambiente. Parte dessas fotos e diversas histórias estão reunidas no livro de Daniela Arbex denominado Holocausto Brasileiro.
Neste livro, e em outros documentos, descobrimos o horror no que se transformou o ato de exclusão da loucura. Descobrimos ainda, na esteira de Foucault, como a loucura é, na verdade, um nome genérico para dizer de todos que, por algum motivo, incomodavam. Revelou-se que por trás do rótulo de doença mental, o que se exilava no manicômio eram diversas figuras que incomodavam àqueles que detinham algum poder: filhos gays, indisciplinados ou usuários de drogas, esposas incomodadas com a traição, amantes grávidas, parentes em litígio por heranças, inimigos políticos e muitos outros.
Esse é um modo de contar a história do porquê se fez necessário lutar contra essas instituições de internamento, chamadas genericamente de manicômios, e contra a lógica de cuidado da psiquiatria (que reduz questões sociais a rótulos diagnósticos). Mas esse modo, que escolhe comparar o horror manicomial com a segregação ocorrida nos campos de concentração europeus, deixa de fora parte importante da história brasileira.
É isso o que nos ensina Rachel Gouveia Passos, quando nos lembra que deveríamos contar essa história incluindo outro navio junto ao de Bosch: o navio negreiro. Coincidentemente, a edição da revista o Cruzeiro que trazia a denúncia a respeito do horror manicomial foi lançada no dia 13 de maio de 1961, exatos 73 anos após a abolição da escravatura. As fotos de Luiz Alfredo, muito mais negras do que brancas, revelam o que há muito já se sabe: a abolição no Brasil foi uma falsa libertação de negras e negros. Vivemos em um país no qual o racismo é uma questão social de primeira relevância e está entranhada nas mais diferentes esferas, incluindo no campo da saúde mental.
A história da exclusão social da loucura no Brasil mistura-se e confunde-se com a história do racismo em nosso país e é urgente contá-las desse modo, para que nossos esforços de luta contra os manicômios e de reforma da psiquiatria considerem as particularidades da formação social brasileira. Como ensina Rachel Passos: “Se for para nos inspirarmos, que possamos ampliar a nossa lente e identificarmos que os hospitais psiquiátricos no Brasil são um grande reflexo dos navios negreiros, lugar esse que muitos morreram no anonimato, sem dignidade e impedidos de manifestarem sua existência.”
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