*Por Geraldo Varjabedian
Nascer no litoral, morar perto do mar, gostar de comer peixe ou ter paixão pelo sol e pelo mar até podem despertar certa identidade e pertencimento. Porém, ser caiçara é reconhecer que a caiçaridade resiste em um conjunto de saberes, tradições, hábitos e costumes, ou seja, a cultura dessas comunidades tradicionais remanescentes, sua história e a realidade de seus descendentes.
Outra visão de mundo
Uma cultura riquíssima, saberes ancestrais, modos de vida simples e de baixíssimo impacto ambiental, fundamentados na subsistência, a partir de um amplo conhecimento da natureza, permitiram que os caiçaras resistissem aos ciclos finais da colonização, à atividade portuária, à especulação imobiliária, à urbanização do litoral e ao turismo predatório. Sobreviveram e sobrevivem à lamentável degradação do mar, dos manguezais e da Mata Atlântica. Os povos tradicionais caiçaras resistiram e ainda resistem a uma visão de mundo muito diferente da sua. Como outros povos do mundo, são os sobreviventes do que a Antropologia define como “a visão de quem considera os hábitos culturais de seu grupo superiores aos hábitos culturais dos demais” – o etnocentrismo.
Povos tradicionais caiçaras: reconhecimento e resistência
“O povo caiçara se encontra no litoral desde o século XVIII e tem como principais atividades econômicas a pesca artesanal e a agricultura de subsistência” – Antonio Carlos Diegues, antropólogo.
Segundo a Constituição Federal do Brasil, “povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
Historicamente, as comunidades caiçaras lutaram e ainda lutam por subsistência, a partir da pesca e plantio em roças, com conhecimento dos solos e da vegetação litorânea. É um modo de vida peculiar em sua interação com o tempo e o trabalho.
A relação dos caiçaras com a natureza é intensa, suas atividades cotidianas envolvem inúmeros esforços e organização coletiva, além de conhecimento do clima, do mar, da vida marinha, dos manguezais e da vegetação litorânea, incluindo os saberes sobre espécies vegetais comestíveis, medicinais e outras, próprias para produzir – artesanalmente – casas, barcos, remos, instrumentos musicais e outros utensílios.
Uma cultura ganha respeito à medida em que superamos o que não sabemos sobre ela. E é o que não sabemos que produz os preconceitos. Daí a importância de conhecermos e valorizarmos a cultura caiçara, e compreendermos sua visão de mundo.
O toque da rabeca ou da viola; a dança, a música, as tradições; os “causos”, os conhecimentos sobre construção de embarcações e navegação; a relação com a natureza, a espiritualidade, as práticas de saúde; a forma de produzir alimentos, a gastronomia caiçara, enfim – são partes vitais dessa cultura a ser conhecida, reconhecida e valorizada. Porque resiste!
“Causos” são histórias transmitidas oralmente, de geração em geração, geralmente de forma lúdica e detalhada, e estão entre os principais instrumentos de preservação e disseminação da cultura caiçara.
A pesca e as práticas ancestrais de subsistência dos povos caiçaras, em contraponto à pesca industrial e às monoculturas alimentares, podem representar referências e caminhos importantes para a sustentabilidade e para os processos de adaptação e resiliência às mudanças climáticas. São séculos de aprendizado com aplicação ao dia a dia, numa relação respeitosa e equilibrada com a natureza e seu tempo.
Preservar essa cultura implica repensarmos a forma como a comparamos com a cultura urbana e não litorânea, inclusive nas relações de trabalho, alimentação, saúde e na forma como lidamos com o tempo, em compasso com a natureza. Temos urgência em compreender que somos nós – seres urbanos –, nossos modos de produção e consumo que estão sendo questionados mundialmente, em nome do futuro das próximas gerações.
A humanidade está buscando modelos que produzam menos devastação ambiental, menos desigualdade, maior respeito a todas as formas de vida e menos, muito menos contaminação por resíduos.
Povos tradicionais indígenas, caiçaras e quilombolas podem representar importantes referências para transformações urgentes de nossos modos de vida. É preciso reconhecer que as mudanças climáticas, o aquecimento e a acidificação do oceano, a devastação contínua do meio ambiente e a contaminação do planeta por resíduos são consequências de um modelo econômico equivocado, que já não pode ser tomado como referência de futuro.
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